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José de Alencar
O Guarani
A Viuvinha
Cinco Minutos

Cinco Minutos

II

Quinze dias se passaram depois de minha aventura.

Durante este tempo é escusado dizer-lhe as extravagâncias que fiz.

Fui todos os dias a Andaraí no ônibus das sete horas, para ver se encontrava a minha desconhecida; indaguei de todos os passageiros se a conheciam, e não obtive a menor informação.

Estava a braços com uma paixão, minha prima, e com uma paixão de primeira força e de alta pressão, capaz de fazer vinte milhas por hora.

Quando saía, não via ao longe um vestido de seda preta e um chapéu de palha que não lhe desse caça, até fazê-lo chegar à abordagem.

No fim descobria alguma velha ou alguma costureira desjeitosa, e continuava tristemente o meu caminho, atrás dessa sombra impalpável, que eu procurava havia quinze longos dias, isto é, um século para o pensamento de um amante.

Um dia estava em um baile, triste e pensativo, como um homem que ama uma mulher e que não conhece a mulher que ama.

Recostei-me a uma porta, e daí via passar diante de mim uma miríade brilhante e esplêndida, pedindo a todos aqueles rostos indiferentes um olhar, um sorriso, que me desse a conhecer aquela que eu procurava.

Assim preocupado, quase não dava fé do que se passava junto de mim, quando senti um leque tocar meu braço, e uma voz que vivia no meu coração, uma voz que cantava dentro de minha alma, murmurou:

- Non ti scordar di me!...

Voltei-me.

Corri um olhar pelas pessoas que estavam junto de mim, e apenas vi uma velha que passeava pelo braço de seu cavalheiro, abanando-se com um leque.

- Será ela, meu Deus? pensei eu horrorizado.

E, por mais que fizesse, os meus olhos não se podiam destacar daquele rosto cheio de rugas.

A velha tinha uma expressão de bondade e de sentimento que devia atrair a simpatia; mas naquele momento essa beleza moral, que iluminava aquela fisionomia inteligente, pareceu-me horrível e até repugnante.

Amar quinze dias uma sombra, sonhá-la bela como um anjo, e por fim encontrar uma velha de cabelos brancos, uma velha coquette e namoradeira!

Não, era impossível! Naturalmente a minha desconhecida tinha fugido antes que eu tivesse tempo de vê-la.

Essa esperança consolou-me; mas durou apenas um segundo.

A velha falou, e na sua voz eu reconheci, apesar de tudo, apesar de mim mesmo, o timbre doce e aveludado que ouvira duas vezes.

Em face da evidência não havia mais que duvidar. Eu tinha amado uma velha, tinha beijado a sua mão enrugada com delírio, tinha vivido quinze dias de sua lembrança.

Era para fazer-me enlouquecer ou rir; não me ri nem enlouqueci, mas fiquei com um tal tédio e um aborrecimento de mim mesmo que não posso exprimir.

Que peripécias, que lances, porém, não me reservava ainda esse drama, tão simples e obscuro!

Não distingui as primeiras palavras da velha logo que ouvi a sua voz; foi só passado o primeiro espanto que percebi o que dizia.

- Ela não gosta de bailes.

- Pois admira, replicou o cavalheiro; na sua idade!

- Que quer! não acha prazer nestas festas ruidosas, e nisto mostra bem que é minha filha.

A velha tinha uma filha, e isto podia explicar a semelhança extraordinária da voz. Agarrei-me a esta sombra, como um homem que caminha no escuro.

Resolvi-me a seguir a velha toda a noite, até que ela se encontrasse com sua filha; desde este momento era o meu fanal, a minha estrela polar.

A senhora e o seu cavalheiro entraram na saleta da escada. Separado dela um instante pela multidão, ia segui-la.

Nisto ouço uma voz alegre dizer da saleta:

- Vamos, mamã!

Corri, e apenas tive tempo de perceber os folhos de um vestido preto, envolto num largo burnous de seda branca, que desapareceu ligeiramente na escada.

Atravessei a saleta tão depressa como me permitiu a multidão, e, pisando calos, dando encontrões à direita e à esquerda, cheguei enfim à porta da saída.

O meu vestido preto sumiu-se pela portinhola de um cupê, que partiu a trote largo.

Voltei ao baile desanimado; a minha única esperança era a velha; por ela podia tomar informações, saber quem era a minha desconhecida, indagar o seu nome e a sua morada, acabar enfim com este enigma, que me matava de emoções violentas e contrárias.

Indaguei dela.

Mas como era possível designar uma velha da qual eu só sabia pouco mais ou menos a idade?

Todos os meus amigos tinham visto muitas velhas, porém não tinham olhado para elas.

Retirei-me triste e abatido, como um homem que se vê em luta contra o impossível.

De duas vezes que a minha visão me tinha aparecido, só me restavam uma lembrança, um perfume e uma palavra!

Nem sequer um nome!

A todo momento parecia-me ouvir na brisa da noite essa frase do Trovador, tão cheia de melancolia e de sentimento, que resumia para mim toda uma história.

Desde então não se representava uma só vez esta ópera que eu não fosse ao teatro, ao menos para ter o prazer de ouvi-la repetir.

A princípio, por uma intuição natural, julguei que ela devia, como eu, admirar essa sublime harmonia de Verdi, que devia também ir sempre ao teatro.

O meu binóculo examinava todos os camarotes com uma atenção meticulosa; via moças bonitas ou feias, mas nenhuma delas me fazia palpitar o coração.

Entrando uma vez no teatro e passando a minha revista costumada, descobri finalmente na terceira ordem sua mãe, a minha estrela, o fio de Ariadne que me podia guiar neste labirinto de dúvidas.

A velha estava só na frente do camarote, e de vez em quando voltava-se para trocar uma palavra com alguém sentado no fundo.

Senti uma alegria inefável.

O camarote próximo estava vazio; perdi quase todo o espetáculo a procurar o cambista incumbido de vendê-lo. Por fim achei-o, e subi de um pulo as três escadas.

O coração queria saltar-me quando abri a porta do camarote e entrei.

Não me tinha enganado; junto da velha vi um chapeuzinho de palha com um véu preto rocegado, que não me deixava ver o rosto da pessoa a quem pertencia.

Mas eu tinha adivinhado que era ela; e sentia um prazer indefinível em olhar aquelas rendas e fitas, que me impediam de conhecê-la, mas que ao menos lhe pertenciam.

Uma das fitas do chapéu tinha caído do lado do meu camarote, e, em risco de ser visto, não pude suster-me e beijei-a a furto.

Representava-se a Traviata, e era o último ato; o espetáculo ia acabar, e eu ficaria no mesmo estado de incerteza.

Arrastei as cadeiras do camarote, tossi, deixei cair o binóculo, fiz um barulho insuportável, para ver se ela voltava o rosto.

A platéia pediu silêncio; todos os olhos procuraram conhecer a causa do rumor; porém ela não se moveu; com a cabeça meio inclinada sobre a coluna, em uma lânguida inflexão, parecia toda entregue ao encanto da música.

Tomei um partido.

Encostei-me à mesma coluna, e em voz baixa balbuciei estas palavras:

- Não me esqueço!

Estremeceu, e, baixando rapidamente o véu, conchegou ainda mais o largo burnous de cetim branco.

Cuidei que ia voltar-se, mas enganei-me; esperei muito tempo, e debalde.

Tive então um movimento de despeito e quase de raiva; depois de um mês que eu amava sem esperança, que eu guardava a maior fidelidade à sua sombra, ela me recebia friamente.

Revoltei-me.

- Compreendo agora, disse eu em voz baixa e como falando a um amigo que estivesse a meu lado, compreendo por que ela me foge, por que conserva esse mistério; tudo isto não passa de uma zombaria cruel, de uma comédia, em que eu faço o papel de amante ridículo. Realmente é uma lembrança engenhosa! Lançar em um coração o germe de um amor profundo; alimentá-lo de tempos a tempos com uma palavra, excitar a imaginação pelo mistério; e depois, quando esse namorado de uma sombra, de um sonho, de uma ilusão, passear pelo salão a sua figura triste e abatida, mostrá-lo a suas amigas como uma vítima imolada aos seus caprichos, e escarnecer do louco! É espirituoso! O orgulho da mais vaidosa mulher deve ficar satisfeito!

Enquanto eu proferia estas palavras, repassadas de todo o fel que tinha no coração, a Charton modulava com a sua voz sentimental essa linda ária final da Traviata, interrompida por ligeiros acessos de uma tosse seca.

Ela tinha curvado a cabeça e não sei se ouvia o que eu lhe dizia ou o que a Charton cantava; de vez em quando as suas espáduas se agitavam com um tremor convulsivo, que eu tomei injustamente por um movimento de impaciência.

O espetáculo terminou, as pessoas do camarote saíram, e ela, levantando sobre o chapéu o capuz de seu manto, acompanhou-as lentamente.

Depois, fingindo que se tinha esquecido de alguma coisa, tornou a entrar no camarote, e estendeu-me a mão.

- Não saberá nunca o que me fez sofrer, disse-me com a voz trêmula.

Não pude ver-lhe o rosto; fugiu, deixando-me o seu lenço impregnado desse mesmo perfume de sândalo e todo molhado de lágrimas ainda quentes.

Quis segui-la; mas ela fez um gesto tão suplicante que não tive ânimo de desobedecer-lhe.

Estava como dantes; não a conhecia, não sabia nada a seu respeito; porém ao menos possuía alguma coisa dela; o seu lenço era para mim uma relíquia sagrada.

Mas as lágrimas? Aquele sofrimento de que ela falava? O que queria dizer tudo isto?

Não compreendia; se eu tinha sido injusto, era uma razão para não continuar a esconder-se de mim. Que queria dizer este mistério, que parecia obrigada a conservar?

Todas estas perguntas e as conjeturas a que elas davam lugar não me deixaram dormir.

Passei uma noite de vigília a fazer suposições, cada qual mais desarrazoada.

Capítulo I - Capítulo III