volta para a index
Aluísio de Azevedo
Casa de Pensão
A Condessa Vésper
O Cortiço
O Coruja
Demônios
O Esqueleto
Filomena Borges
Fritzmac
Girândola de Amores
O Homem
O Japão
Uma Lágrima de Mulher
O Livro de uma Sogra
Mattos, Malta ou Matta?
A Mortalha de Alzira
O Mulato
O Touro Negro

Girândola de Amores

I

O RAPTO

Clorinda acabava de pôr o seu véu de noiva e, de costas para o espelho, olhava por sobre o ombro a cauda do vestido.

A velha Januária pregava-lhe com muita solicitude o último alfinete dourado, e, como representasse para ela o papel de mãe, repetia-lhe baixinho, com a voz comovida e os óculos embaçados pelas lágrimas, os invariáveis conselhos adequados à situação.

Aos pés de Clorinda, ajoelhada no tapete, uma mucama arranjava-lhe cuidadosamente a barra do vestido, compunha e ordenava os folhos e desfazia e ajeitava as pregas do cetim.

E a noiva, toda enlevada na cerimônia daquela roupa, sorria sem saber de quê e sentia enrubescerem-se-lhe as faces por uma delicada previsão do seu pudor.

Estava linda assim toda de branco, com o seu longo véu de filó, que lhe envolvia o busto gracioso, deixando todavia perceber o doce relevo da cabeça, engrinaldada de pálidas flores de laranjeira.

Tinha os olhos azuis, muito transparentes, a tez de uma brancura imaculada, os cabelos entre louro e castanho, os dentes adoráveis e a boca um mimo cor-de-rosa.

Terminado o vestuário, a mucama saiu da alcova para saber se o noivo já tinha chegado. E a velhinha, a sós com a pupila, cruzou as mãos na cintura e ficou a olhar para ela, longamente, com a expressão carinhosa de quem se revê num filho.

Ah! a pobre velha Januária também fora bem bonita e também fora noiva no seu tempo! Aquele corpinho vergado de existência e deformado pela velhice, provocara outrora desejos desenfreados e acendera em mais de um peito paixões tempestuosas.

Triste viagem é a da vida, que termina sempre por um naufrágio; ou da qual ainda ninguém saiu sem levar a mastreação partida, o farol apagado, e as velas estraçalhadas pelos terríveis vendavais que se encontram no caminho. Um por um, vamos deixando esparsos pelas correntes revoltosas da existência todos os dotes com que nos amaram, e todos os bens com que íamos avassalando os corações alheios. E ao cabo da viagem, sem dentes, sem cabelos, sem brilho nos olhos, com a pele encarquilhada e as pernas trôpegas, ficamos a esperar o túmulo, esquecidos e desprezados no mundo, como o casco inútil do navio que naufragou na costa e vai aos poucos despindo as cavernas e mostrando a quilha.

O contraste entre as duas mulheres que estavam na alcova - uma tão fresca e bela, outra tão fraca e decrépita, levava o espírito àquelas considerações.

As duas quedaram-se a cismar por algum tempo; a velha embevecida a olhar para o passado; a moça a sonhar-se nas felicidades futuras. E como dois viajantes que. se encontram no mesmo porto, um a partir, outro a voltar, as duas sorriam; mas o sorriso da que ia era todo de esperanças, enquanto o da outra só transpirava desilusão e cansaço.

- Por que está tão triste, máezinha? perguntou a moça, tomando as mãos da velha.

- Nem eu sei... respondeu esta, procurando disfarçar o constrangimento. Talvez seja nervoso, mas sinto alguma coisa no coração, alguma coisa que me oprime!

- Não se deixe levar por essas cismas!... Lembre-se de que hoje é o dia do meu casamento...

- É por isso mesmo... E acrescentou, mudando de tom: E verdade! E o noivo, já teria chegado?

A mucama entrou na alcova para dizer que ainda não.

Esta demora ia sendo já comentada na sala de jantar pela madrinha de Clorinda e algumas amigas de D. Januária.

- Não fora bonito da parte do noivo fazer-se esperar daquele modo! Eram já quatro horas da tarde e o casamento estava marcado para as cinco!...

Parou uma carruagem à porta, e quase todos correram a ver quem chegava.

- Deve ser ele, considerou a madrinha, armando um sorriso. Mas teve logo de desarmá-lo, vendo entrar o comendador Portela, velho amigo da casa.

O comendador entrou apressado, a pedir mil perdões pela demora.

- Queria vir antes, mas um negócio de alta importância exigira a sua presença.

E, segundo o seu costume, pôs-se logo a falar de si, das suas grandes preocupações comerciais, do dinheiro que tinha naquele momento arriscado em várias transações perigosíssimas, e, afinal, da prosperidade da sua casa, do bom trato que dava aos seus empregados, do projeto de desenvolver certas indústrias e de criar certos estabelecimentos importantes.

- Bons desejos não me faltam! afirmava ele a rir imodestamente.

E, como se achasse ali em um meio relativamente acanhado, empertigava ainda mais a cabeça, remetia para a frente a barriga e com o polegar levantava pretensiosamente a gola condecorada de sua casaca.

- Vai-se fazendo pela vida! vai-se fazendo! repisava ele, sempre com o mesmo riso.

Deram cinco horas, e o noivo nada de aparecer!

- E de mais! exclamou a madrinha, que afinal perdera a paciência e abrira a falar abertamente contra aquela demora grosseira e imperdoável.

Os ânimos foram-se a pouco e pouco sobressaltando. Havia já no comendador um risinho velhaco de má fé, e a noiva, sem querer sair da alcova, sentiu avultar-lhe na garganta um novelo estranho que a sufocava.

A madrinha expedira secretamente um portador à casa do noivo. O portador voltara, declarando que o Sr. Gregório, havia coisa de uma hora, saíra para a casa da noiva em companhia de um senhor velho e de boa aparência que o fora buscar. E declarou mais que na porta da rua estava um cocheiro, que viera da casa do Sr. Gregório, com a recomendação de esperá-lo aí.

Ninguém mais se animou a dar palavra, à exceção da madrinha, que nunca perdia ocasião de falar mal dos homens.

- Todos eles lêem pela mesma cartilha! considerou ela, trejeitando um ar desdenhoso. Bem fiz eu em nunca tomar a sério semelhante gente! Nada! Antes só do que mal acompanhada! Prefiro ficar solteira toda a vida!

- Descanse, D. Josefina, que ninguém a contrariará! respondeu um sujeitinho magro e ativo, que parecia muito empenhado no bom êxito do casamento.

Nisto foram interrompidos pelo padrinho do noivo, o Dr. Roberto, que vinha da igreja, farto, como os outros que lá estavam, de esperar pelos desposados.

- Pois se ele ainda nem apareceu por cá!... exclamou a madrinha, vermelha de cólera.

- Não veio?! Gregório não apareceu ainda?! disse o doutor muito admirado. Parece incrível!

- Pois é a pura verdade!

- Ter-lhe-ia sucedido alguma coisa?! Estará ele doente?!

- Se está doente não sei, gritou a terrível madrinha; em casa é que lhe afianço que não está, porque agora mesmo mandei lá saber!

- Mas como então se explica tudo isto? Eu às três e meia estive com Gregório, e disse-me ele que ia preparar-se para o casamento.

E o doutor, depois de refletir um instante, tomou o chapéu e saiu, com a intenção de procurar o amigo.

Daí a pouco, todas as pessoas que esperavam pelos noivos na igreja, invadiram a casa de D. Januária, e começou-se então a tratar francamente do escândalo.

Clorinda desfez-se do véu e da grinalda, pediu à mãe adotiva que fechasse a porta da alcova, e depois atirou-se-lhe nos braços a chorar desorientadamente.

Entretanto, Gregório, o causador inconsciente de todo aquele desgosto, acabava nessa ocasião de ser carregado, sem sentidos, por dois lacaios de libré escura, para uma sala de bela aparência, na Tijuca.

Acompanhava-o um homens de uns cinqüenta anos, alto, magro, todo vestido de negro, barba inteira dividida no queixo, ar distinto e maneiras extremamente delicadas.

Ao chegarem à sala, o homem magro disse aos lacaios que depusessem Gregório sobre um divã, e ordenou que um deles fosse chamar a condessa.

Apareceu então uma senhora já velha, sumamente simpática, aspecto fino e bem educado.

- Então! disse o cavalheiro à condessa, apontando para Gregório, que, irrepreensivelmente vestido de casaca, continuava prostrado no divã. Os lacaios afastaram-se discretamente.

- Ah! exclamou ela, correndo para o desfalecido. Estou agora mais tranqüila!...

E, ajoelhando-se ao lado do divã em que estava o moço, tomou as mãos deste e ficou a observar-lhe a fisionomia.

Gregório era uma bela figura de vinte e três anos. Feições puras, bem conformado de corpo, um todo singularmente meigo e bondoso. O sono dava-lhe à fisionomia tal suavidade que o fazia parecer ainda mais moço do que era.

A condessa, depois de contemplá-lo por algum tempo, com muita ternura, passou-lhe a mão pelos cabelos e beijou-o na fronte.

- Veja, conde, disse ela ao homem vestido de preto; como é formoso!

- É o retrato da pobre Cecília! respondeu aquele com um ar pensativo.

E depois de uma pausa:

- Onde o devemos acomodar?

- Na sala amarela, disse a condessa, erguendo-se. O que me sobressalta um pouco é este sono. Não vá fazer-lhe mal...

- Pode ficar tranqüila, condessa, não lhe sucederá mal nenhum. E, se houvesse alguma novidade, bem sabe que o nosso médico é homem de inteira confiança.

Gregório foi conduzido para a sala amarela e só voltou a si às dez horas da noite.

Ao acordar, circunscreveu o olhar em torno. Todos os objetos que o cercavam lhe punham nos sentidos, ainda estonteados pelo sono, um estranho sabor de constrangimento e sobressalto.

E sem consciência do lugar em que estava, percorria demoradamente a vista pelas velhas tapeçarias suspensas da parede, pelos vários quadros, simetricamente dispostos nos intervalos das portas, e pelos móveis luxuosos, guarnecidos de metal amarelo, que pousavam elegantemente sobre a felpa macia do tapete, cintilando à luz aristocrática das velas. Seus olhos sindicavam de tudo aquilo com a insistência dos do juiz que interroga as testemunhas de um crime, mas nada correspondia ao inquérito, à exceção de um velho relógio de bronze, que, de um dos ângulos do aposento, lhe apontava as horas com o dedo de ouro e lhe dizia os segundos no seu coaxar monótono.

- O quê?! dez horas?! perguntou-lhe Gregório, impaciente por alguma explicação.

O relógio não respondeu, mas continuou a apontar para o X.

- Dez horas! exclamou o rapaz, levantando-se de um pulo. Só então lhe passara pelo espírito a idéia lúcida do seu malogrado casamento.

E todas as outras idéias, aproveitando a brecha que deixara a primeira, lhe invadiram turbulentamente o cérebro, como se até aí estivessem só à espera de que lhes abrissem a porta.

Perturbou-se a princípio, mas tratou logo de reconstruir pacientemente tudo o que fizera nesse dia. Dividiu as horas e deu a cada uma a sua aplicação justa; determinou o tempo gasto com o padre, com o cabeleireiro e com as pessoas em companhia de quem esteve; chegou a lembrar-se do assunto de suas conversas, o que dissera a tal e tal amigo, e recordou-se expressivamente da impressão que lhe assaltava de vez em quando o espírito, sempre que se imaginava no momento feliz de apoderar-se da noiva.

Esta idéia trouxe-lhe o mal-estar que nos causa a não realização de um projeto por muito tempo afagado. E Gregório, como se duvidasse ainda dos seus próprios raciocínios, procurou fixar bem nas horas que precederam de perto o momento em que lhe escapou a razão.

Às três e meia entrara na casa em que morava nas Laranjeiras, a gritar para o Jacó, seu criado, que lhe desse imediatamente o fato da casaca e lhe aprontasse um banho morno. Às quatro e meia, no ocasião de sair para ir buscar a noiva, Gregório lembrava-se perfeitamente de que um homem, de modos graves e distintos, se lhe apresentara em casa, pretextando interessar-se muito pelo futuro de Clorinda, falando sobre mil coisas concernentes ao casamento, entre muitos protestos de simpatia e de respeito. Esse homem depois insistiu com Gregório que aceitasse um lugar na sua carruagem e despediu a que já estava à porta. Gregório consentiu e tomou lugar ao lado dele. Recordava-se ainda de que, preocupado com a idéia do seu casamento, não atentara para a direção tomada pelo carro e que, em certa altura, na ocasião de abaixar-se para apanhar o claque que lhe caíra das mãos, o homem misterioso lhe passara rapidamente um lenço úmido no rosto, e Gregório perdera os sentidos.

Só até aí chegavam as suas reminiscências. Havia por conseguinte em tudo aquilo um plano premeditado e posto em prática, do qual era ele a vítima, covardemente iludida e ludibriada. E Gregório por um impulso do orgulho, sentiu um estremecimento de cólera.

Estava neste ponto, quando se abriu a porta do quarto, deixando passar um dos lacaios que vimos às ordens do conde.

V. Exa. ordena alguma coisa? perguntou o fâmulo, curvando-se humildemente.

- Ordeno que me expliques o que faço aqui e onde estou!

- Infelizmente não posso...

- Nesse caso abre as portas, e eu irei procurar quem me responda.

- Infelizmente, também não posso franquear-lhe a saída...

- Visto isso estou preso?!...

- Não sei, não senhor.

- Então que diabo sabes tu?!

- Sei que estou aqui para servir a V. Exa.

- Obrigado pela solicitude, mas confesso que preferia, antes de mais nada, uma explicação do que quer dizer tudo isto.

E, depois de dirigir inutilmente mais algumas perguntas ao criado, declarou-lhe que podia retirar-se quando quisesse. E o pobre rapaz tomou a resolução de deixar que as coisas corressem por si.

- Eu não terei certamente de ficar aqui o resto de minha vida, considerava ele; por conseguinte, o melhor é aguardarmos tranqüilamente os acontecimentos.

O pior era a dúvida em que estava a respeito de Clorinda. Ter-lhe-ia também sucedido alguma coisa, ou, se nada sucedera, que não pensaria ela daquela estranha ausência de seu noivo?... E os amigos, e os padrinhos do casamento, e os convidados?!...

- Ora, que papel ridículo me obrigam a fazer! dizia ele, gesticulando sozinho; mas foi a pouco e pouco se habituando à sua estranha situação e, nestas circunstâncias, vestiu-se, calçou-se, acendeu um charuto, foi a uma biblioteca que havia no quarto, tirou um volume de versos e pôs-se a ler, disposto a esperar pelo que desse e viesse.

Reparou então que estava caindo de fraqueza e lembrou-se de que os sobressaltos do casamento não lhe permitiram jantar. Correu à campainha elétrica e tocou.

Apareceu logo o mesmo criado de há pouco.

- Dá-me o que cear, disse-lhe Gregório e acrescentou consigo: Ao menos ficarei entretido enquanto estiver comendo.

O criado voltou com uma ceia, caprichosamente preparada, e perguntou que vinho usava Gregório.

- Deixo isso à tua vontade. Traze o que entenderes.

Terminada a refeição, apareceu de novo o criado, perguntando, em nome do Sr. conde, se Gregório podia recebê-lo naquela ocasião.

- Pois não! respondeu o interrogado. Seja quem for esse Conde, ardentemente desejo entender-me com ele. Diz-lhe que estou absolutamente à sua disposição.

Pouco depois penetrava o conde no quarto. Gregório mediu-o de alto a baixo, sem se poder furtar a certa impressão de respeito cansada pelo ar do fidalgo.

- Muito boas noites, disse este entrando.

- Obrigado, respondeu o outro, curvando-se com delicadeza; mas, se me permite uma pergunta, tenha a bondade de dizer com quem tenho a honra de falar...

- Fala com o conde de S. Francisco, irmão da desvairada Cecília, falecida há quinze anos no convento de Santa Clara no Porto.

- Minha mãe?!

- Justamente, Sr. Gregório de Souto Maior; antes porém de lhe explicar as estranhas ocorrências desta tarde, tenho de declarar-lhe que foi para seu interesse que o constrangeram a entrar nesta casa. Era preciso evitar a todo transe o seu casamento com a menina Clorinda...

- Mas, por que, senhor?

- Ouça-me primeiro, e depois compreenderá tudo.

O conde puxou duas cadeiras, e convidou Gregório a assentar-se defronte dele.

- É natural que não lhe seja agradável ouvir a maior parte do que lhe vou relatar, principiou o velho, dando uma expressão benévola às suas palavras; como é natural também que nunca o fizesse, se a isso não fosse eu agora forçado pelas circunstâncias; mas cumpro um dever, e tanto me basta para completa tranqüilidade da minha consciência...

Gregório fez um gesto de assentimento e ouviu a escandalosa narração do seguinte:

Capítulo II

----------x----------