volta para a index
Aluísio de Azevedo
Casa de Pensão
A Condessa Vésper
O Cortiço
O Coruja
Demônios
O Esqueleto
Filomena Borges
Fritzmac
Girândola de Amores
O Homem
O Japão
Uma Lágrima de Mulher
O Livro de uma Sogra
Mattos, Malta ou Matta?
A Mortalha de Alzira
O Mulato
O Touro Negro

O Cortiço




VII

E assim ia correndo o domingo no cortiço até às três da tarde, horas em que chegou mestre Firmo, acompanhado pelo seu amigo Porfiro, trazendo aquele o violão e o outro o cavaquinho.

Firmo, o atual amante de Rita Baiana, era um mulato pachola, delgado de corpo e ágil como um cabrito; capadócio de marca, pernóstico, só de maçadas, e todo ele se quebrando nos seus movimentos de capoeira. Teria seus trinta e tantos anos, mas não parecia ter mais de vinte e poucos. Pernas e braços finos, pescoço estreito, porém forte; não tinha músculos, tinha nervos. A respeito de barba, nada mais que um bigodinho crespo, petulante, onde reluzia cheirosa a brilhantina do barbeiro; grande cabeleira encaracolada, negra, e bem negra, dividida ao meio da cabeça, escondendo parte da testa e estufando em grande gaforina por debaixo da aba do chapéu de palha, que ele punha de banda, derreado sobre a orelha esquerda.

Vestia, como de costume, um paletó de lustrina preta já bastante usado, calças apertadas nos joelhos, mas tão largas na bainha que lhe engoliam os pezinhos secos e ligeiros. Não trazia gravata, nem colete, sim uma camisa de chita nova e ao pescoço, resguardando o colarinho, um lenço alvo e perfumado; à boca um enorme charuto de dois vinténs e na mão um grosso porrete de Petrópolis, que nunca sossegava, tantas voltas lhe dava ele a um tempo por entre os dedos magros e nervosos.

Era oficial de torneiro, oficial perito e vadio; ganhava uma semana para gastar num dia; às vezes, porém, os dados ou a roleta multiplicavam-lhe o dinheiro, e então ele fazia como naqueles últimos três meses: afogava-se numa boa pândega com a Rita Baiana. A Rita ou outra. "O que não faltava por aí eram saias para ajudar um homem a cuspir o cobre na boca do diabo!" Nascera no Rio de Janeiro, na Corte; militara dos doze aos vinte anos em diversas maltas de capoeiras; chegara a decidir eleições nos tempos do voto indireto. Deixou nome em várias freguesias e mereceu abraços, presentes e palavras de gratidão de alguns importantes chefes de partido. Chamava a isso a sua época de paixão política; mas depois desgostou-se com o sistema de governo e renunciou às lutas eleitorais, pois não conseguira nunca o lugar de continuo numa repartição pública - o seu ideal! -Setenta mil-réis mensais: trabalho das nove às três.

Aquela amigação com a Rita Baiana era uma coisa muito complicada e vinha de longe; vinha do tempo em que ela ainda estava chegadinha de fresco da Bahia, em companhia da mãe, uma cafuza dura, capaz de arrancar as tripas ao Manduca da Praia. A cafuza morreu e o Firmo tomou conta da mulata; mas pouco depois se separaram por ciúmes, o que aliás não impediu que se tornassem a unir mais tarde, e que de novo brigassem e de novo se procurassem. Ele tinha "paixa" pela Rita, e ela, apesar de volúvel como toda a mestiça, não podia esquecê-lo por uma vez; metia-se com outros, é certo, de quando em quando, e o Firmo então pintava o caneco, dava por paus e por pedras, enchia-a de bofetadas, mas, afinal, ia procurá-la, ou ela a ele, e ferravam-se de novo, cada vez mais ardentes, como se aquelas turras constantes reforçassem o combustível dos seus amores.

O amigo que Firmo trazia aquele domingo em sua companhia, o Porfiro, era mais velho do que ele e mais escuro. Tinha o cabelo encarapinhado. Tipógrafo. Afinavam-se muito os dois tipos com as suas calças de boca larga e com os seus chapéus ao lado; mas o Porfiro tinha outra linha: não dispensava a sua gravata de cor saltando em laço frouxo sobre o peito da camisa; fazia questão da sua bengalinha com cabeça de prata e da sua piteira de âmbar e espuma, em que ele equilibrava um cigarro de palha.

Desde a entrada dos dois, a casa de Rita esquentou. Ambos tiraram os paletós e mandaram vir parati, "a abrideira para muqueca baiana". E não tardou que se ouvissem gemer o cavaquinho e o violão.

Ao lado chegava também o homem da das Dores, com um companheiro do comércio; vinham vestidos de fraque e chapéu alto. A Machona, Nenen e o Agostinho, já de volta do seu passeio à cidade, lá estavam ajudando. Ficariam para o rega-bofe.

Um rumor quente, de dia de festa, ia-se formando naquele ponto da estalagem.

Tanto numa casa, como na outra, o jantar seria às cinco horas. Rita "botou" vestido branco, de cambraia, encanudado a ferro. Leocádia, Augusta, o Bruno, o Alexandre e o Albino jantariam com ela no número 9; e no número 8, com a das Dores, ficariam, além dos parentes desta, Dona Isabel, Pombinha, Marciana e Florinda.

Jerônimo e sua mulher foram convidados para ambas as mesas, mas não aceitaram o convite para nenhuma, dispostos a passar a tarde ao lado um do outro, tranqüilamente como sempre, comendo em boa paz o seu cozido à moda da terra e bebendo o seu quartilho de verde pela mesma infusa.

Entretanto, os dois jantares vizinhos principiaram ruidosos logo desde a sopa e assanharam-se progressivamente.

Meia hora depois vinha das duas casas uma algazarra infernal. Falavam e riam todos ao mesmo tempo; tilintavam os talheres e os copos. Cá de fora sentia-se perfeitamente o prazer que aquela gente punha em comer e beber à farta, com a boca cheia, os beiços envernizados de molho gordo. Alguns cães rosnavam à porta, roendo os ossos que traziam lá de dentro. De vez em quando, da janela de uma das casas aparecia uma das moradoras, chamando a vizinha, para entregar um prato cheio, permutando as duas entre si os quitutes e as petisqueiras em que eram mais peritas.

- Olha! gritava a das Dores para o número 9, diz à Rita que prove deste zorô, pra ver que tal o acha, e que o vatapá estava muito gostoso! Se ela tem pimentas, que me mande algumas!

Do meio para o fim do jantar o baralho em ambas as casas era medonho. No número 8 berravam-se brindes e cantos desafinados. O português amigo da das Dores, já desengravatado e com os braços à mostra, vermelho, lustroso de suor, intumescido de vinho virgem e leitão de forno, repotreava-se na sua cadeira, a rir forte, sem calar a boca, com a camisa a espipar-lhe pela braguilha aberta. O sujeito que a acompanhara fazia fosquinhas a Nenen, protegido no seu namoro por toda a roda, desde a respeitável Machona até ao endemoninhado Agostinho, que não ficava quieto um instante, nem deixava sossegar a mãe, gritando um contra o outro como dois possessos. Florinda, sempre muito risonha e esperta, divertia-se a valer e, de vez em quando, levantava-se da mesa, para ir de carreira levar lá fora ao número 12 um prato de comida à sua velha que, à última hora, vindo-lhe o aborrecimento, resolvera não ir ao jantar. À sobremesa o esfogueado amigo da dona da casa exigiu que a amante se lhe assentasse nas coxas e dava-lhe beijos em presença de toda a companhia, o que fez com que Dona Isabel, impaciente por afastar a filha daquele inferno, declarasse que sentia muito calor e que ia lá para a porta esperar mais à fresca o café.

Em casa de Rita Baiana a animação era inda maior. Firmo e Porfiro faziam o diabo, cantando, tocando bestialógicos, arremedando a fala dos pretos cassanges. Aquele não largava a cintura da mulata e só bebia no mesmo copo com ela; o outro divertia-se a perseguir o Albino, galanteando-o afetadamente, para fazer rir à sociedade. O lavadeiro indignava-se, dava o cavaco". Leocádia, a quem o vinho produzira delírios hilaridade, torcia-se em gargalhadas, tão fortes e sacudidas que desconjuntavam a cadeira em que ela estava; e, muito lubrificada pela bebedeira, punha os pesados pés sobre os de Porfiro, roçando as pernas contra as dele e deixando-se apalpar pelo capadócio. O Bruno, defronte dela, rubro e suado como se estivesse a trabalhar na forja, falava e gesticulava sem se levantar, praguejando ninguém sabia contra quem. O Alexandre, à paisana, assentado ao lado da mulher, conservava quase toda a sua seriedade e pedia que não fizessem tanto barulho porque podiam ouvir da rua. E notou, em voz misteriosa, que o Miranda tinha vindo já espiar por várias vezes da janela do sobrado.

- Que espie as vezes que quiser! bradou a Rita. Pois então a gente não é senhora de estar um domingo em casa a seu gosto e com os amigos que entender?!... Que vá pro diabo que o lixe! Eu não como nem bebo do que é dele!

Os dois mulatos e o Bruno também eram da mesma opinião. "Pois então! Desde que se não ofendia, nem prejudicava a safardana nenhum com aquele divertimento, não havia de que falar!"

- E que não entiquem muito, ameaçou o Firmo, que comigo é nove! E o trunfo é paus!

O Porfiro exclamou:

- Se se incomodam com a gente... os incomodados são os que se mudam! Ora pistolas!

- O domingo fez-se pra gozar!... resmungou o Bruno, deixando cair a cabeça nos braços cruzados sobre a mesa.

Mas ergueu-se logo, cambaleando, e acrescentou, despindo o braço direito até o ombro:

- Eles que se façam finos, que os racho!

O Alexandre procurou acalmá-lo, dando-lhe um charuto.

Em uma outra casinha do cortiço acabava de estalar uma nova sobremesa, engrossando o barulho geral: era o jantar de um grupo de italianos mascates, onde o Delporto, o Pompeo, o Francesco e o Andréa representavam as principais figuras. Todos eles cantavam em coro, mais afinados que nas outras duas casas; quase, porém, que se lhes não podia ouvir as vozes, tantas e tão estrondosas eram as pragas que soltavam ao mesmo tempo. De quando em quando, de entre o grosso e macho vozear dos homens, esguichava um falsete feminino, tão estridente que provocava réplica aos papagaios e aos perus da vizinhança. E, daqui e dali, iam rebentando novas algazarras em grupos formados cá e lá pela estalagem. Havia nos operários e nos trabalhadores decidida disposição para pandegar, para aproveitar bem, até ao fim, aquele dia de folga. A casa de pasto fermentava revolucionada, como um estômago de bêbedo depois de grande bródio, e arrotava sobre o pátio uma baforada quente e ruidosa que entontecia.

O Miranda apareceu furioso à janela, com o seu tipo de comendador, a barriga empinada para a frente, de paletó branco, um guardanapo ao pescoço e um trinchante empunhado na destra, como uma espada.

- Vão gritar pra o inferno, com um milhão de raios! berrou ele, ameaçando para baixo. Isto também já é demais! Se não se calam, vou daqui direito chamar a policia! Súcia de brutos!

Com os berros do Miranda muita gente chegou à porta de casa, e o coro de gargalhadas, que ninguém podia conter naquele momento de alegria, ainda mais o pôs fora de si.

- Ah, canalhas! O que eu devia fazer era atirar-lhes daqui, como a cães danados!

Uma vaia uníssona ecoou em todo o pátio da estalagem, enquanto em volta do negociante surgiam várias pessoas, puxando-o para dentro de casa.

- Que é isso, Miranda! Então! Estás agora a dar palha?...

- O que eles querem é que encordoes!...

- Saia daí papai!

- Olhe alguma pedrada, esta gente é capaz de tudo!

E via-se de relance Dona Estela, com a sua palidez de flor meia fanada, e Zulmira, lívida, um ar de fastio a fazê-la feia, e o Henriquinho, cada vez mais bonito, e o velho Botelho, indiferente, a olhar para toda esta porcaria do mundo com o profundo desprezo dos que já não esperam nada dos outros, nem de si próprios.

- Canalhas! repisava o Miranda.

O Alexandre, que fora de carreira enfiar a sua farda, apresentou-se então e disse ao negociante que não era prudente atirar insultos cá pra baixo. Ninguém o tinha provocado! Se os moradores da estalagem jantavam em companhia de amigos, lá em cima o Miranda também estava comendo com os seus convidados! Era mau insultar, porque palavra puxa palavra, e, em caso de ter de depor na policia, ele, Alexandre, deporia a favor de quem tivesse razão!...

- Fomente-se! respondeu o negociante, voltando-lhe as costas.

- Já se viu chubregas mais atrevido?! exclamou Firmo, que até ai estivera calado, à porta da Rita, com as mãos nas cadeiras, a fitar provocadoramente o Miranda.

E gritando mais alto, para ser bem ouvido:

- Facilita muito, meu boi manso, que te escorvo os galhos na primeira ocasião!

O Miranda foi arrancado com violência da janela, e esta fechada logo em seguida com estrondo.

- Deixa lá esse labrego! resmungou Porfiro, tomando o amigo pelo braço e fazendo-o recolher-se à casa da mulata. Vamos ao café, é o que é, antes que esfrie!

Defronte da porta de Rita tinham vindo postar-se diversos moradores do cortiço, jornaleiros de baixo salário, pobre gente miserável, que mal podia matar a fome com o que ganhava. Ainda assim não havia entre eles um só triste. A mulata convidou-os logo a comer um bocado e beber um trago. A proposta foi aceita alegremente.

E a casa dela nunca se esvaziava.

Anoitecia já.

O velho Libório, que jamais ninguém sabia ao certo onde almoçava ou jantava, surgiu do seu buraco, que nem jabuti quando vê chuva.

Um tipão, o velho Libório! Ocupava o pior canto do cortiço e andava sempre a fariscar os sobejos alheios, filando aqui, filando ali, pedindo a um e a outro, como um mendigo, chorando misérias eternamente, apanhando pontas de cigarro para fumar no cachimbo, cachimbo que o sumítico roubara de um pobre cego decrépito. Na estalagem diziam todavia que Libório tinha dinheiro aferrolhado, contra o que ele protestava ressentido, jurando a sua extrema penaria. E era tão feroz o demônio naquela fome de cão sem dono, que as mães recomendavam às suas crianças todo o cuidado com ele, porque o diabo do velho, quando via algum pequeno desacompanhado, punha-se logo a rondá-lo, a cercá-lo de festas e a fazer-lhe ratices para o engabelar, até conseguir furtar-lhe o doce ou o vintenzinho que o pobrezito trazia fechado na mão.

Rita fê-lo entrar e deu-lhe de comer e de beber; mas sob condição de que o esfomeado não se socasse demais, para não rebentar ali mesmo.

Se queria estourar, fosse estourar para longe!

Ele pôs-se logo a devorar, sofregamente, olhando inquieto para os lados, como se temesse que alguém lhe roubasse a comida da boca. Engolia sem mastigar, empurrando os bocados com os dedos, agarrando-se ao prato e escondendo nas algibeiras o que não podia de uma só vez meter para dentro do corpo.

Causava terror aquela sua implacável mandíbula, assanhada e devoradora; aquele enorme queixo, ávido, ossudo e sem um dente, que parecia ir engolir tudo, tudo, principiando pela própria cara, desde a imensa batata vermelha que ameaçava já entrar-lhe na boca, até as duas bochechinhas engelhadas, os olhos, as orelhas, a cabeça inteira, inclusive a sua grande calva, lisa como um queijo e guarnecida em redor por uns pêlos puídos e ralos como farripas de coco.

Firmo propôs embebedá-lo, só para ver a sorte que ele daria. O Alexandre e a mulher opuseram-se, mas rindo muito; nem se podia deixar de rir, apesar do espanto, vendo aquele resto de gente, aquele esqueleto velho, coberto por uma pele seca, a devorar, a devorar sem tréguas, como se quisesse fazer provisão para uma outra vida.

De repente, um pedaço de carne, grande demais para ser ingerido de uma vez, engasgou-o seriamente. Libório começou a tossir, aflito, com os olhos sumidos, a cara tingida de uma vermelhidão apoplética. A Leocádia, que era quem lhe ficava mais perto, soltou-lhe um murro nas costas.

O glutão arremessou sobre a toalha da mesa o bocado de carne já meio triturado.

Foi um nojo geral.

- Porco! gritou Rita, arredando-se.

- Pois se o bruto quer socar tudo ao mesmo tempo! disse Porfiro. Parece que nunca viu comida, este animal!

E notando que ele continuava ainda mais sôfrego por ter perdido um instante:

- Espere um pouco, lobo! Que diabo! A comida não foge! Há muito ai com que te fartares por uma vez! Com efeito!

- Beba água, tio Libório! aconselhou Augusta.

E, boa, foi buscar um copo de água e levou-lho a boca.

O velho bebeu, sem despregar os olhos do prato.

Arre diabo! resmungou Porfiro, cuspindo para o lado. Este é mesmo capaz de comer-nos a todos nós, sem achar espinhas!

Albino, esse, coitado! é que não comia quase nada e o pouco que conseguia meter no estômago fazia-lhe mal. Rita, para bolir com ele, disse que semelhante fastio era gravidez com certeza.

- Você já começa, hein?... balbuciou o pobre moço, esgueirando-se com a sua xícara de café.

- Olha, cuidado! gritou-lhe a mulata. Pouco café, que faz mal ao leite, e a criança pode sair trigueira!

O Albino voltou para dizer muito sério à Rita que não gostava dessas brincadeiras.

Alexandre, que havia acendido um charuto, depois de oferecer outros, galantemente, aos companheiros, arriscou, para também fazer a sua pilhéria, que o sonso do Albino fora pilhado às voltas com a Bruxa no capinzal dos fundos da estalagem, debaixo das mangueiras.

Só a Leocádia achou graça nisto e riu a bandeiras despregadas. Albino declarou, quase chorando, que ele não mexia com pessoa alguma, e que ninguém, por conseguinte, devia mexer com ele.

- Mas afinal, perguntou Porfiro, é mesmo exato que este pamonha não conhece mulher?...

- Ele é quem pode responder! acudiu a mulata. E esta história vai ficar hoje liquidada! Vamos lá, ó Albino! confessa-nos tudo, ou mal te terás de haver com a gente!

- Se eu soubesse que era para isto que me chamaram não tinha vindo cá, sabe? gaguejou o lavadeiro, amuado. Eu não sirvo de palito!

E ter-se-ia retirado chorando, se a Rita não lhe cortasse a saída, dizendo, como se falasse a uma criatura do seu sexo, mais fraca do que ela:

- Ora não sejas tolo! Deixa-te ficar ai! Se deres o cavaco é pior!

Albino limpou as lágrimas e foi sentar-se de novo.

Entretanto, a noite fechava-se, refrescando a tarde com o sudoeste. Bruno roncava no lugar em que tinha jantado. A Leocádia passara livremente a perna para cima da de Porfiro, que a abraçava, bebendo parati aos cálices.

Mas o Firmo lembrou que seria melhor irem lá para fora; e todos, menos o Bruno, dispuseram-se a deixar a sala, enquanto o velho Libório! pedia a Alexandre um cigarro para despejar no cachimbo. Servido, o filante desapareceu logo, correndo ao faro de outros jantares. Rita, Augusta e Albino ficaram lavando a louça e arrumando a casa.

Lá fora o coro dos italianos se prolongava numa cadência monótona e arrastada, em que havia muito peso de embriaguez. Junto à porta de várias casas faziam-se grupos de pessoas assentadas em cadeiras ou no chão; mas a roda da Rita Baiana era a maior, porque fora engrossada pelos convivas da das Dores. O fumo dos cachimbos e dos charutos elevava-se de toda a parte. Decrescera o ruído geral; fazia-se a digestão; já ninguém discutia e todos conversavam.

Acendeu-se o lampião do pátio. Iluminaram-se diversas janelas das casinhas.

Agora, no sobrado do Miranda é que era o maior barulho. Saia de lá uma terrível gritaria de hipes e hurras, virgulada pelo desarrolhar de garrafas de champanha.

- Como eles atacam!... observou Alexandre, já de novo sem farda.

- E, no entanto, reprovam que a gente coma o que é seu com um pouco mais de alegria! comentou a Rita. Uma súcia!

Falou-se então largamente a respeito da família do Miranda, principalmente de Dona Estela e do Henrique. A Leocádia afiançou que, numa ocasião, espiando por cima do muro, trepada num montão de garrafas vazias que havia no pátio do cortiço, vira a sirigaita com a cara agarrada à do estudante, aos beijos e aos abraços, que era obra; e assim que os dois deram fé que ela os espreitava, deitaram a fugir que nem cães apedrejados.

A Augusta Carne-Mole benzeu-se, com uma invocação à Virgem Santíssima, e o companheiro do amigo da das Dores, que insistia no seu namoro com a Nenen, mostrou-se muito admirado com a noticia, "supunha Dona Estela um modelo de seriedade".

- Qual! negou Alexandre. Isso por ai é tudo uma pouca-vergonha, que faz descrer um homem de si mesmo! Eu também já vi de uma feita bem boas coisas pela sombra dela na parede; mas não era com o estudante, era com um sujeito que lá ia às vezes, um barbado, careca e comido de bexigas. E a pequena vai pelo mesmo conseguinte...

Esta novidade produziu grande surpresa no grupo inteiro. Quiseram os pormenores e o Alexandre não se fez de rogado: o namoro da Zulmira era com um rapazola magro, de lunetas, bigode louro, bem vestido, que lhe rondava a casa à noite e às vezes de madrugada. Parecia estudante!

- O que eles têm feito? inquiriu a das Dores.

- Por enquanto a coisa não passa de namorico da janela para a rua. Conversam sempre naquela última do lado de lá de fora. Já os tenho apreciado quando estou de serviço. Ele fala muito em casamento e a pequena o quer; mas, pelo jeito, o velho é que lhe corta as asas.

- Ele não tem entrada na casa?

- Não! Pois isso é que eu acho feio...! Se ele quer casar com a menina, devia entender-se com a família e não estar agora daqui debaixo a fazer-lhe fosquinhas!

- Sim, intrometeu-se o Firmo; mas não vê que aquele mesmo, o Miranda, vai dar a filha a um estudante! Guarda-a para um dos seus... Quem sabe até se o bruto não tem já de olho por ai algum cafezista pé-de-boi!... Eu sei o que é essa gente!

- Por isso é que se vê tanta porcaria por esse mundo de Cristo! disse a Augusta. Filha minha só se casará com quem ela bem quiser; que isto de casamentos empurrados à força acabam sempre desgraçando tanto a mulher como o homem! Meu marido é pobre e é de cor, mas eu sou feliz, porque casei por meu gosto!

- Ora! Mais vale um gosto que quatro vinténs!

Nisto começou a gemer à porta do 35 uma guitarra; era de Jerônimo. Depois da ruidosa alegria e do bom humor, em que palpitara àquela tarde toda a república do cortiço, ela parecia ainda mais triste e mais saudosa do que nunca:

"Minha vida tem desgostos,
Que só eu sei compreender...
Quando me lembro da terra
Parece que vou morrer..."

E, com o exemplo da primeira, novas guitarras foram acordando. E, por fim, a monótona cantiga dos portugueses enchia de uma alma desconsolada o vasto arraial da estalagem, contrastando com a barulhenta alacridade que vinha lá de cima, do sobrado do Miranda.

"Terra minha, que te adoro,
Quando é que eu te torno a ver?
Leva-me deste desterro;
Basta já de padecer."

Abatidos pelo fadinho harmonioso e nostálgico dos desterrados, iam todos, até mesmo os brasileiros, se concentrando e caindo em tristeza; mas, de repente, o cavaquinho do Porfiro, acompanhado pelo violão do Firmo, romperam vibrantemente com um chorado baiano. Nada mais que os primeiros acordes da música crioula para que o sangue de toda aquela gente despertasse logo, como se alguém lhe fustigasse o corpo com urtigas bravas. E seguiram-se outras notas, e outras, cada vez mais ardentes e mais delirantes. Já não eram dois instrumentos que soavam, eram lúbricos gemidos e suspiros soltos em torrente, a correrem serpenteando, como cobras numa floresta incendiada; eram ais convulsos, chorados em frenesi de amor; música feita de beijos e soluços gostosos; carícia de fera, carícia de doer, fazendo estalar de gozo.

E aquela música de fogo doidejava no ar como um aroma quente de plantas brasileiras, em torno das quais se nutrem, girando, moscardos sensuais e besouros venenosos, freneticamente, bêbedos do delicioso perfume que os mata de volúpia.

E à viva crepitação da música baiana calaram-se as melancólicas toadas dos de além-mar. Assim à refulgente luz do trópicos amortece a fresca e doce claridade dos céus da Europa, como se o próprio sol americano, vermelho e esbraseado, viesse, na sua luxúria de sultão, beber a lágrima medrosa da decaída rainha dos mares velhos.

Jerônimo alheou-se de sua guitarra e ficou com as mãos esquecidas sobre as cordas, todo atento para aquela música estranha, que vinha dentro dele continuar uma revolução começada desde a primeira vez em que lhe bateu em cheio no rosto, como uma bofetada de desafio, a luz deste sol orgulhoso e selvagem, e lhe cantou no ouvido o estribilho da primeira cigarra, e lhe acidulou a garganta o suco da primeira fruta provada nestas terras de brasa, e lhe entonteceu a alma o aroma do primeiro bogari, e lhe transtornou o sangue o cheiro animal da primeira mulher, da primeira mestiça, que junto dele sacudiu as saias e os cabelos.

- Que tens tu, Jeromo?... perguntou-lhe a companheira, estranhando-o.

- Espera, respondeu ele, em voz baixa: deixa ouvir!

Firmo principiava a cantar o chorado, seguido por um acompanhamento de palmas.

Jerônimo levantou-se, quase que maquinalmente, e seguido por Piedade, aproximou-se da grande roda que se formara em torno dos dois mulatos. Ai, de queixo grudado às costas das mãos contra uma cerca de jardim, permaneceu, sem tugir nem mugir, entregue de corpo e alma àquela cantiga sedutora e voluptuosa que o enleava e tolhia, como à robusta gameleira brava o cipó flexível, carinhoso e traiçoeiro.

E viu a Rita Baiana, que fora trocar o vestido por uma saia, surgir de ombros e braços nus, para dançar. A lua destoldara-se nesse momento, envolvendo-a na sua coma de prata, a cujo refulgir os meneios da mestiça melhor se acentuavam, cheios de uma graça irresistível, simples, primitiva, feita toda de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher.

Ela saltou em meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como numa sofreguidão de gozo carnal, num requebrado luxurioso que a punha ofegante; já correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer toda, como se se fosse afundando num prazer grosso que nem azeite, em que se não toma pé e nunca se encontra fundo. Depois, como se voltasse à vida, soltava um gemido prolongado, estalando os dedos no ar e vergando as pernas, descendo, subindo, sem nunca parar com os quadris, e em seguida sapateava, miúdo e cerrado, freneticamente, erguendo e abaixando os braços, que dobrava, ora um, ora outro, sobre a nuca, enquanto a carne lhe fervia toda, fibra por fibra, tirilando.

Em torno o entusiasmo tocava ao delírio; um grito de aplausos explodia de vez em quando, rubro e quente como deve ser um grito saído do sangue. E as palmas insistiam, cadentes, certas, num ritmo nervoso, numa persistência de loucura. E, arrastado por ela, pulou à arena o Firmo, ágil, de borracha, a fazer coisas fantásticas com as pernas, a derreter-se todo, a sumir-se no chão, a ressurgir inteiro com um pulo, os pés no espaço, batendo os calcanhares, os braços a querer fugirem-lhe dos ombros, a cabeça a querer saltar-lhe. E depois, surgiu também a Florinda, e logo o Albino e até, quem diria! o grave e circunspecto Alexandre.

O chorado arrastava-os a todos, despoticamente, desesperando aos que não sabiam dançar. Mas, ninguém como a Rita; só ela, só aquele demônio, tinha o mágico segredo daqueles movimentos de cobra amaldiçoada; aqueles requebros que não podiam ser sem o cheiro que a mulata soltava de si e sem aquela voz doce, quebrada, harmoniosa, arrogante, meiga e suplicante.

E Jerônimo via e escutava, sentindo ir-se-lhe toda a alma pelos olhos enamorados.

Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que se não torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o açúcar gostoso; era o sapoti mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre feridas com o seu azeite de fogo; ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas pela saudade da terra, picando-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela música feita de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em torno da Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca.

Isto era o que Jerônimo sentia, mas o que o tonto não podia conceber. De todas as impressões daquele resto de domingo só lhe ficou no espírito o entorpecimento de uma desconhecida embriaguez, não de vinho, mas de mel chuchurreado no cálice de flores americanas, dessas muito alvas, cheirosas e úmidas, que ele na fazenda via debruçadas confidencialmente sobre os limosos pântanos sombrios, onde as oiticicas trescalam um aroma que entristece de saudade.

E deixava-se ficar, olhando. Outras raparigas dançaram, mas o português só via a mulata, mesmo quando, prostrada, fora cair nos braços do amigo. Piedade, a cabecear de sono, chamara-o várias vezes para se recolherem; ele respondeu com um resmungo e não deu pela retirada da mulher.

Passaram-se horas, e ele também não deu pelas horas que fugiram.

O circulo do pagode aumentou: vieram de lá defronte a Isaura e a Leonor, o João Romão e a Bertoleza, desembaraçados da sua faina, quiseram dar fé da patuscada um instante antes de caírem na cama; a família do Miranda pusera-se à janela, divertindo-se com a gentalha da estalagem; reunira povo lá fora na rua; mas Jerônimo nada vira de tudo isso; nada vira senão uma coisa, que lhe persistia no espírito: a mulata ofegante a resvalar voluptuosamente nos braços do Firmo.

Só deu por si, quando, já pela madrugada, se calaram de todo os instrumentos e cada um dos folgadores se recolheu à casa.

E viu a Rita levada para o quarto pelo seu homem, que a arrastava pela cintura.

Jerônimo ficou sozinho no meio da estalagem. A lua, agora inteiramente livre das nuvens que a perseguiam, lá ia caminhando em silêncio na sua viagem misteriosa. As janelas do Miranda fecharam-se. A pedreira, ao longe, por detrás da última parede do cortiço, erguia-se como um monstro iluminado na sua paz. Uma quietação densa pairava já sobre tudo; só se distinguiam o bruxulear dos pirilampos na sombra das hortas e dos jardins, e os murmúrios das árvores que sonhavam.

Mas Jerônimo nada mais sentia, nem ouvia, do que aquela música embalsamada de baunilha, que lhe entontecera a alma; e compreendeu perfeitamente que dentro dele aqueles cabelos crespos, brilhantes e cheirosos, da mulata, principiavam a formar um ninho de cobras negras e venenosas, que lhe iam devorar o coração.

E, erguendo a cabeça, notou no mesmo céu, que ele nunca vira senão depois de sete horas de sono, que era já quase ocasião de entrar para o seu serviço, e resolveu não dormir, porque valia a pena esperar de pé.

VI - VIII


----------x----------