O Coruja XVIII
Enquanto Teobaldo dançava, ouvia música e conversava em casa do comendador Rodrigues de Aguiar, o pobre Coruja via-se em papos de aranha com os nervos da Ernestina, cuja crise não fora tão passageira como afiançara aquele.
De mais a mais, o Caetano havia saído logo em seguida ao amo e nessa noite recolhera-se mais tarde que de costume; teve André por conseguinte de servir de enfermeiro à rapariga, sem licença de abandoná-la um só instante, porque as convulsões histéricas e os espasmos se repetiam nela quase que sem intermitência.
Foi uma noite de verdadeira luta para ambos; o rapaz, apesar da riqueza dos seus músculos, nem sempre lhe podia conter os ímpetos nervosos. A infeliz escabujava como um possesso; atirava-se fora da cama, rilhando os dentes, trincando os beiços e a língua, esfrangalhando as roupas, em um estrebuchamento que lançava por terra todos os objetos ao seu alcance. No fim de algumas horas o Corja sentia o corpo mais moído do que se o tivessem maçado com uma boa carga de pau.
Além de que, a sua nenhuma convivência com mulheres e o seu natural acanhamento, mais penosa e critica tornavam para ele aquela situação. Ernestina cingia-se-lhe ao corpo, peito a peito, enterrando-lhe as unhas na cerviz, mordendo-lhe os cabelos, refolgando-lhe com ânsia sobre o rosto, como em um supremo desespero de amor. E André, tonto e ofegante, sentia vertigens quando seus olhos topavam as trêmulas e agitadas carnes da histérica, completamente desvestidas nas alucinações do espasmo.
Às quatro horas da madrugada, quando Teobaldo chegou do baile, ele ainda estava de pé e a enferma parecia ter afinal sossegado e adormecido.
- Que! exclamou aquele. Pois ainda trabalhas?
- Schit! Qual trabalho... respondeu Coruja, pedindo silencio com um gesto. Passei a noite às voltas com a Ernestina... Ah! não imaginas... ataques sobre ataques!... Pobre rapariga! Não faças bulha... Creio que ela agora está dormindo...
- Impressionou-se naturalmente com o que eu lhe disse à tarde... Ora! não fosse importuna!
- Coitada!
- Bem, disse Teobaldo, mas recolhe-te ao quarto e trata de descansar; eu fico aqui. Vai.
- Mas não te deitas?
- Tenho ali aquele sofá; não te incomodes comigo. Vai para a cama, que deves estar caindo de cansaço. Adeus.
O Coruja notou que o amigo trazia qualquer preocupação.
- Sentes alguma coisa? perguntou-lhe.
- Ao contrário: há muito tempo não me acho tão bem disposto.
- Então boa noite.
- Até amanhã.
Coruja recolheu-se ao quarto e o outro pôs-se a passear na sala, enquanto se despia; depois chegou à porta da alcova, encarou com um gesto de tédio o to prostrado de Ernestina e voltou logo o rosto, como se tivesse medo de acordá-la com o seu olhar.
Todo ele era só uma idéia: - a filha do comendador. Branca não lhe saía da imaginação; tinha ainda defronte dos olhos aquele sorriso que ela lhe deu à janela; sentia ainda entre as suas a sua tremula mãozinha e nos ouvidos a música das últimas palavras que lhe ouviu.
- Adorável! adorável! repetia ele.
E foi para a mesa em mangas de camisa e começou a escrever versos sentimentais.
Ouviam-se, no silencio fresco da madrugada, o bater inalterável do relógio e os bufidos suspirados de Ernestina, que parecia dormir um sono de ébrio.
- Que mulher impertinente !... considerou ele, atirando com a pena e deixando pender para trás a cabeça a fitar o teto.
E pensou:
- Quando eu me lembro que a esta criatura nada falta - casa, rendimentos, criados, e que ela se vem meter aqui, possuída de esperanças injustificáveis... nem sei que juízo forme a seu respeito!... Será isto o verdadeiro amor?.. . Talvez, mas, se assim é, arrenego dele, porque não conheço coisa mais insuportável!... Ainda se ela não fosse tão desengraçada!... tão tola!... Mas, valha-me Deus! nunca vi mulher mais ridícula quando tem ciúmes; ainda não vi ninguém fazer cara tão feia para chorar!... Se ela fosse jeitosa ao menos; mas não tem gosto para nada, não sabe pôr um vestido, não sabe por um chapéu; e, em vez de endireitar com o tempo, parece que vai ficando cada vez mais estúpida! Não! Definitivamente é uma mulher impossível, apesar de toda a sua dedicação!
E, para se divertir, pôs-se a lembrar as asneiras dela. Ernestina não dizia nunca "eu fui", era "eu foi"; pronunciava pãos, razães, tostãos e gostava muito de preceder com um a certos verbos, como divertir, divulgar, reunir, retirar e outros; como também não pronunciava as letras soltas no meio da palavra. "Obstáculo" em sua boca era ostáculo, "obsta" era osta e assim por diante. E a respeito dos tempos do verbo? Se ela queria dizer "entremos", dizia entramos e vice-versa; perguntava - "tu fostes? - tu fizestes?" Uma calamidade!
Além disso, ultimamente dera para engordar, por tal forma que parecia ainda mais baixa e mais desairosa.
Não era feiazinha de rosto, isso não; mas em toda a sua fisionomia, como no resto, não se encontrava um só traço original, distinto, impressionável. Vestia-se, calçava-se e penteava-se como toda a gente, e só conversava a respeito de vulgaridades, sem ter nunca uma frase própria; rindo quando repetia uma pilhéria já muito estafada, e desconfiando sempre que lhe diziam qualquer coisa que ela não entendesse. Uma lesma!
E Teobaldo a fazer estas considerações; e ela lá dentro a ressonar, agitada de vez em quando pelo sonho; ora gemendo, ora articulando palavras incompletas e destacadas.
- O bonito será se ela adoece deveras aqui em casa!... considerou ele. Era só o que faltava!
E, notando que amanhecia, ergueu-se da mesa, lavou-se, mudou de roupa e tomou um cálice de conhaque. Já de chapéu e de bengala, ia a sair, quando Ernestina se remexeu na cama, depois assentou-se e perguntou com a voz muito quebrada e fraca:
- És tu, Teobaldo?
- Que deseja? interrogou ele secamente.
- Não te recolhes?
- Não, porque me tomaram a cama.
- Não sejas mau.
- Ora!
- Para que me tratas desse modo?... Estou tão incomodada, tão doente... Se soubesses como tenho sofrido!...
- Sofre por teima! A senhora podia perfeitamente estar em sua casa, feliz e tranqüila.
- É exato; a culpa é minha. Que horas são?
- Amanhece.
- Que? Pois já se passou a noite inteira? Ah! agora me recordo que estive sem sentidos.
- Adeus.
- Vais sair?
- Vou.
- Por que não te demoras um pouco? Faze-me um bocado de companhia...
- Não, filha, preciso sair. Adeus.
- Escuta: foste sempre ao baile?
- Fui.
- Divertiste-te muito?
- Sim.
- Namoraste?
- Adeus.
- Vem cá.
Ele se aproximou dela com má vontade.
- Acho-te tão aborrecido, meu amor; não me trates com essa indiferença.
- Se lhe parece!
- Que?
- Que não devo estar aborrecido.
- Por minha causa?
- Naturalmente.
- Pois então vai-te embora, vai! Nunca mais te aborrecerei!
Teobaldo apertou-lhe a mão. Ela pediu-lhe um beijo, ele negou-lho e saiu cantarolando um trecho de ópera.
Logo que se perdeu no corredor a voz do moço, Ernestina ergueu-se e foi, amparando-se aos móveis e à parede, até à mesa, onde estavam, ao lado do candeeiro de petróleo ainda aceso, os versos há pouco escritos por Teobaldo. Leu-os, chorou e, assentando-se no lugar em que ele estivera, tornou da pena e lançou em uma folha de papel o seguinte, pouco mais ou menos:
Declaro que sou a única autora de minha morte e declaro também que reconheço por meu legitimo herdeiro o Sr. Teobaldo Henrique de Albuquerque, morador nesta casa. O meu testamento, no qual lego-lhe todos os meus bens, acha-se nas notas de tabelião Ramos.
Datou, assinou, pôs a folha de papel sobre a cômoda e, tornando à mesa, agarrou o candeeiro, desatarrachou-lhe a griseta, lançou esta para o lado sem lhe apagar a torcida e, julgando-se cheia de resolução, levou aos lábios o reservatório de querosene.
Mal, porém, encheu a boca com o primeiro trago fugiu-lhe a coragem de suicidar-se e, já arrependida de tal propósito, arremessou de uma golfada sobre a mesa o venenoso líquido, que foi ter à torcida e logo se inflamou.
Ernestina, assustada com isto, arremessou nervosamente o candeeiro que tinha ainda nas mãos, e o petróleo derramou-se, inundando-a.
Então levantou-se uma grande chama que a envolveu toda. Ela soltou um grito e procurou ganhar a porta da sala; a chama recresceu com o deslocamento do ar.
A desgraçada conseguiu todavia chegar até onde estava André. O Coruja ergueu-se de pulo e viu, sem compreender logo, aquela enorme labareda irrequieta, que lhe percorria o quarto, a berrar desesperadamente.
Correu a socorrê-la; mas Ernestina acabava nesse momento de cair por terra, agonizante. Embalde ele procurava com os próprios punhos apagar-lhe as chamas do vestido.
Da sala até ali, por onde ela atravessava de carreira, viam-se na parede, de espaço em espaço, a forma de sua mão, desenhada com gordura derretida e pequenos pedaços de carne.
Três vizinhos haviam acudido do andar de baixo e procuraram esclarecer o fato; a carta, encontrada sobre a cômoda, tudo explicou. Em breve a casa encheu-se de gente do povo e empregados da Polícia.
Puxou-se o sofá para o meio da sala e nele se depois o corpo de Ernestina; não foi possível despi-lo totalmente dos farrapos que o cobriam, porque estes se tinham grudado às enormes feridas abertas pelo fogo. Toda ela, coitadinha, apresentava urna triste figura negra e esfolada em muitos pontos. Estava horrível; o cabelo desaparecera-lhe; os olhos eram duas orlas vermelhas e ensangüentadas; a boca, totalmente deslabiada, mostrava os dentes cerrados com desespero; e dos ouvidos sem orelhas e do nariz sem ventas escorria-lhe um líquido gorduroso e amarelento.
Um dos vizinhos, que era médico, passou logo o atestado de óbito e o Coruja tratou de dar as providencias para o enterro.
Teobaldo, ao entrar da rua às três da tarde, parou, sem ânimo de penetrar na sala, e, muito lívido, perguntou ao companheiro:
- Que é isto? Ela morreu?.
- Matou-se.
E André, carregando com ele para o seu quarto, narrou-lhe minuciosamente o ocorrido e disse-lhe depois:
- E o seu herdeiro és tu.
- Eu?!
- É exato. Deixou-te o que possuía. coitada!
E limpou as lágrimas.
- Diabo! exclamou Teobaldo, soltando um murro na cabeça. Diabo! Maldito seja eu!
O outro não queria consentir que ele visse o cadáver, mas Teobaldo repeliu-o e correu para junto de Ernestina. Atirou-se de joelhos ao lado dela e abriu a soluçar como um perdido.
- Desgraçado que eu sou! Desgraçado que eu sou!
E ergueu a cabeça para lhe dar um beijo na testa.
- Quem sabe, pensou ele, inundando-a de lágrimas, quem sabe se este mesmo beijo um pouco antes não teria te poupado à morte!... Criminoso que sou! Enquanto morrias aqui, abandonada e repelida por mim, que te não merecia; enquanto me lançavas com o teu último suspiro a tua benção e o teu perdão, eu te amaldiçoava e maldizia o teu afeto, sem ao menos compreende-lo!
Coruja veio arrancá-lo dali à força, e tão acabrunhado o achou depois do enterro que, para o consolar, lhe disse:
- Então, então, meu Teobaldo! O que está feito já não tem remédio! Nada lucras com ficar neste estado! Vamos! No fim de contas não tens culpa do que sucedeu!...
- Não é verdade, meu André? volveu o outro, apoderando-se das mãos do Coruja. Não é verdade que não sou um assassino perverso?... Não é verdade que, se a matei...
- Oh! tu não a mataste!.
- Sim, matei-a! Sei perfeitamente que fui a causa de sua morte; mas eu também não podia adivinhar que a minha indiferença a levasse a tal extremo!
- Decerto, decerto!
- Ah! sou um desgraçado! sou um ente maldito! Todos me cercam de carinhos e bondades, eu só os retribuo com o mal e com a ingratidão. Reconheço que sou amado demais! Reconheço que nada mereço de ninguém porque nada produzo em benefício de quem quer que seja! Deviam dar cabo de mim como se faz com os animais daninhos!
Enlouqueceste, Teobaldo! Estás a dizer tolices!
- Não! replicou este, não! E em ti mesmo vejo a confirmação do que estou dizendo. És trabalhador, és perseverante, és digno de toda a felicidade, e, só por minha causa, não consegues ser feliz!
- Ao teu lado não posso ser infeliz, meu amigo.
- Ao meu lado és sempre tão desgraçado como eu! Ainda não conseguiste o teu casamento, ainda não conseguiste fazer o teu pecúlio, e tudo por que?..
Porque eu aqui estou! Já hoje não foste à tua obrigação; ontem gastaste o dia inteiro a cuidar desta pobre mulher que eu matei...
Coruja percebeu que eram inúteis as suas palavras de consolação, porque o desespero de Teobaldo estava ainda no período agudo, e, para distraí-lo, resolveu procurar casa no dia seguinte e tratar logo da mudança.
Aqueles fatos serviram para redobrar a irregularidade da vida de Teobaldo, porque vieram modificar as teorias deste sobre o amor da mulher e aqueceram-lhe durante algum tempo as algibeiras.
Foi por seu próprio pé à procura de Leonília que, não conseguindo realizar a premeditada viagem, havia tornado à existência primitiva e achava-se luxuosamente instalada como dantes. Contou-lhe todo o ocorrido e acabou pedindo-lhe perdão de se ter mostrado até aí tão indiferente grosseiro também com ela.
A cortesã estranhou a visita, mas não menos a estimou por isso, abençoando instintivamente do fundo da alma a morte da outra, que lhe restituía o amante.
Foi assim que Teobaldo voltou aos braços dela, entregando-se como por castigo, como para cumprir uma penitência, em honra à memória de Ernestina.
Todavia não se esqueceu de Branca; era esta a idéia verdadeiramente boa e consoladora de sua vida; era sua doce estrela de esperanças, o grande lago azul onde o seu pensamento ia descansar, quando votava desiludido dos prazeres ruidosos e prostrado pelo tédio da ociosidade.
Agora assistia à casa do comendador com mais freqüência e, uma vez em que se achou a sós com Branca, tomou-lhe as mãos e disse-lhe:
- Ah! Se eu pudesse lhe falar com franqueza...
- Mas...
- Sei que não tenho esse direito: a senhora nunca me autorizou a tal; muito me custa, porém, esconder por mais tempo o meu segredo... Oh! É um desgosto tão grande... tão profundo.
- Um desg0sto? creia que me penaliza essa notícia...
- Obrigado, no entanto...
- Mas, qual é o desgosto?
- Consente que lho confesse?
- Sim.
- Promete não ficar zangada comigo?
- Diga o que é.
- É o seu casamento.
- Com meu primo? Ora, isso ainda não está decidido.
- Mas estará em breve..
- Crê?
- É a vontade do comendador... e a senhora como filha dócil e obediente.
- Meu pai não seria capaz de casar-me contra a minha vontade...
- E é contra a sua vontade este casamento?
- O senhor já sabe que sim; mas não vejo onde esteja a causa do seu desgosto.
- É porque sou amigo de seu primo.. E desejava vê-lo casado comigo?...
- Ao contrário, e por isso que me desgosto.
- E por que não deseja vê-lo casado comigo?
- Porque...
- Diga.
- Porque a amo.
Branca estremeceu toda e quis fugir.
- Ouça-me, acrescentou Teobaldo, segurando-a pelos braços. Ouça e perdoe, minha doce esperança, minha vida! A senhora foi o meu bom anjo, foi a salvadora de minha alma; eu já me sentia perdido, gasto, morto; desde que a vi, reanimei-me como por encanto! Adoro-a, Branca, e basta uma palavra sua, uma única, para que eu seja o mais feliz ou o mais desgraçado dos homens!.
- Cale-te, Teobaldo!
- Não! Quero que me responda!...
- Mas que lhe hei de eu dizer?.
- Diga-me se devo ou não ter esperanças de ser amado pela senhora.
Ela quis escapar-lhe de novo; ele não deixou.
- Vamos! Fale.
- Sim... disse Branca afinal, corando muito e fugindo.
Anterior - Próximo
----------x----------
|