volta para a index
Aluísio de Azevedo
Casa de Pensão
A Condessa Vésper
O Cortiço
O Coruja
Demônios
O Esqueleto
Filomena Borges
Fritzmac
Girândola de Amores
O Homem
O Japão
Uma Lágrima de Mulher
O Livro de uma Sogra
Mattos, Malta ou Matta?
A Mortalha de Alzira
O Mulato
O Touro Negro

O Coruja

X

Enquanto isto se dava, Branca, aflita e estrangulada de indignação, chegava a casa.

Enfiou logo para seu quarto e, atirando a capa à criada, disse-lhe com a voz trêmula:

- Chama o João ou o Caetano, aquele que se aprontar mais depressa. É preciso entregar quanto antes uma carta, que vou escrever.

E, depois de esgotar de um trago um copo dágua, assentou-se à secretária e escreveu o seguinte com a mesma precipitação com que bebera:

Conselheiro. - Se V. Exa. preza sua honra de homem casado, vá imediatamente à rua do Catete n. 15 e aí encontrará sua mulher nos braços do marido de quem lhe faz esta denúncia.

E declarou a hora e o dia em que era escrito o bilhete, sem contudo expor a sua assinatura. Depois, meteu a folha de papel em um envelope e sobrescritou-a.

- Leve imediatamente esta carta ao seu destino. É muito perto daqui. Não se demore.

O criado saiu e ela se atirou à cama soluçando. No fim de alguns minutos ergueu-se de novo; teve um instante de arrependimento, mas sacudiu logo os ombros, chamou pela criada já com a voz firme, despiu-se, recomendou que dissessem ao marido, no caso que este perguntasse por ela, que se achava indisposta e não queria falar a ninguém. Em seguida fechou por dentro a porta do seu quarto e recolheu-se ao leito, aguardando a explosão que julgava ter provocado com a carta dirigida ao conselheiro.

Criança! pensava ter lançado uma faísca na pólvora, e a faísca tinha apenas se cravado na lama.

A carta, segundo a declaração do criado que a levara, foi entregue em mão própria. S. Exa. abriu-a leu-a imperturbavelmente, rasgou-a depois e disse ao portador:

- Está entregue.

Só no dia imediato foi que Branca se encontrou com o esposo; estranhou muito não lhe descobrir na fisionomia a mais ligeira sombra de contrariedade e procurou não deixar igualmente transparecer na sua o menor vestígio das amarguras que desde a véspera sofria.

Baldado esforço! O marido, logo às primeiras palavras que trocou com ela, perscrutou que alguma coisa a constrangia e empregou os meios de descobrir o que era.

- Nada! Nervoso! respondia a pobre senhora, disfarçando as lágrimas.

- Não, não; tens seja lá o que for. É que não queres dizer.

- Ilusão, pura ilusão tua! De que posso eu me queixar? Sou a mais feliz das criaturas! Nada me falta: tenho o teu amor, tenho a estima de meus amigos, vejo-te prosperar, crescer! Que mais desejo?

Teobaldo aproximou-se dela para lhe dar um beijo; Branca fugiu com o rosto.

- Que significa esta recusa? perguntou ele.

- Não sei, mas não posso agora suportar as tuas carícias.

- E por que?

- Caprichos dos nervos, naturalmente..

- Tu então repeles os meus beijos, Branca?

- Sim, e peço-te que não insistas em querer saber a razão por quê.

- E até quando durará o tal capricho de teus nervos?

- Não sei; é natural que durem enquanto eu viver.

- Confesso que te estranho. Tu, que eras tão meiga, tão amorosa para comigo...

- É exato. Vê como a gente se transforma de um momento para outro.

- Mas é indispensável que haja uma causa para semelhante transformação.

- Não sei; apenas te afianço que não contribuí absolutamente para ela.

- Se tens alguma razão de queixa contra mim, melhor será que falas logo com franqueza. Ao menos dar-me-ás o direito da defesa.

- Razão de queixa? Mas, valha-me Deus! seria uma injustiça, uma tremenda injustiça à tua bondade, ao teu caráter e a todos os teus princípios de moral. Queixar-me? Que idéia! Pois se jamais fui tão lealmente amada e tão dignamente respeitada por ti...

- Não te compreendo, nem te reconheço. Estás irônica.

- Não; estou simplesmente orgulhosa de ser tua esposa. Pressinto que caminhas para um futuro brilhante; as tuas relações não podem ser melhores: o conselheiro adora-te, o conselheiro! um homem de bem às direitas, um velho respeitável por todos os motivos!

- E é a verdade o que dizes...

- Oh! verdade pura. Estou convencida de que o teu comparecimento à sessão de ontem, há de ainda mais engrandecer-te aos olhos dele. Não há dúvida que vais em uma carreira por todos os motivos invejável!

- Branca, disse Teobaldo, com ar muito sério, se tens algum ressentimento contra mim, peço-te de novo que fales abertamente. Não sei em que possa eu ter incorrido no teu desagrado; a minha consciência está tranqüila, mas desejo apagar de teu espírito toda e qualquer sombra de suspeita, de que me julgues merecedor.

- Já disse que não tenho acusação nenhuma a fazer.

- Mas então por que te mostras tão diferente do que és; por que estás desse modo?

- De que modo? Eu nunca me vi de tão bom humor!

- És cruel filha!

- Eu? Pois então o meu bom humor já é uma crueldade?... Ora! tem paciência; mas não sei que fizeste de tua lógica, chegas a ser incoerente! Até aqui tu me lançavas em rosto todos os dias as minhas tristezas, os meus ciúmes, as minhas repetidas queixas de amor; e agora exprobras-me, porque me sinto bem disposta e com vontade de rir. Hás de confessar que isto não é lógico!

- Pois é justamente a tua rápida transformação o que me impressiona e do que desejo saber o motivo.

- Oh! não tem que saber! É que caí em mim...

- Caíste em ti? Como assim?

- É que ontem eu via as coisas por um certo prisma e hoje as encaro por outro.

- Explica-te.

- Desfizeram-se as ilusões, dissolveram-se-me as fantasias; vejo o mundo e vejo as criaturas por um prisma talvez menos consolador, com a certeza, porém, mais justo, mais razoável e muito mais lúcido.

- Não compreendo onde queres chegar com isso...

- Não me compreendes? oh!

- Juro-te que não!

- Então ainda menos me compreendeste até hoje. Imagine o senhor meu esposo que eu, até agora, via a sociedade e os homens de um ponto de vista ideal, cheia de confiança e de boa-fé; mas era só meu, individual, próprio, escolhido a meu capricho, sem mescla do que nos ensina a experiência e a dura realidade dos fatos.

- Bem...

- Pois calcula que, de um momento para outro, senti rasgarem-se-me defronte dos olhos os véus da minha ignorância, e desde então vejo tudo às claras, vejo certo, posso julgar com justeza, dando a cada figura, a cada grupo, a cada ação e a cada fato o valor que lhe compete, a sua capacidade, a sua grandeza ou a sua pequenez, determinando os seus fins e calculando as suas intenções boas ou más.

- E a que deves tu essa milagrosa lucidez inesperada?

- Não sei, talvez a um sonho, que tive esta noite.

- Um sonho?

- É verdade. Adormeci ainda no meu ridículo estado de credulidade e sonhei que me achava entre todos os meus amigos e conhecidos; via-os a todos, como te estou vendo a ti, tão bons, tão afáveis e tão meigos! Mas, de súbito, senti unia grande agitação em torno de mim, olho espantada; então um singular espetáculo se apresenta: a máscara de cada um havia caído por terra e um grande montão de fisionomias misturava-se a meus pés, imóveis e frias como rostos de defunto. E todas aquelas figuras humanas, que acabavam de despir a máscara, começaram a rir e a escarnecer umas das outras, descaradamente, sem rebuços de delicadeza. E as mais vergonhosas confissões saíram de cada boca. Um gritava: "Eu finjo que te amo, mas no fundo eu te aborreço!" Outro dizia: "Afeto respeito à moral, mas a minha paixão verdadeira é a crápula e o aviltamento!" Este afiançava que lhe era indiferente o mundo inteiro e que só a sua própria pessoa o interessava; aquele outro declarava que o seu fim único era enganar o próximo em proveito de si mesmo; mais adiante ouvia-se dizer: "Eu, se não cometo certas baixezas, é só porque com isto atraso a minha vida"; outro protestava em como, se exercia algumas vezes o bem, era para que o glorificassem e acatassem; uma mulher gritava que se fingia virtuosa, porque era mais cômodo e vantajoso ser honesta do que dissoluta; ao lado dela um sujeito confirmava essas palavras, dizendo que a virtude na mulher é como a honra no homem - um passaporte para a consideração pública. E então vi deslizar por defronte de mim o mais estranho batalhão de monstros! Velhos sérios a fazerem momices de criança; crianças com os vícios e os achaques da velhice; vi homens feios e bons, outros maus e encantadores; vi o amor ao lado da ingratidão e do abandono; o ódio e a indiferença de braço dado à dedicação e ao sacrifício; vi a força ao lado da covardia; vi a franqueza e a incompetência ao lado da valentia e do atrevimento; vi o generoso perseguido; vi o egoísta aclamado; vi o preguiçoso triunfante; vi o trabalhador estendido no meio do caminho; vi a franqueza e a lealdade cobertas de ridículo e de vergonha e vi a hipocrisia, a mentira, a falsidade, recebendo o aplauso, a confiança e a veneração de todos. E, quando passei a mão pelo meu rosto, notei que este também já não era o mesmo, e vi aos meus pés a máscara da minha inocência, da minha boa-fé e da minha credulidade! Acordando, circunvaguei o olhar em torno de mim, evoquei a memória das pessoas conhecidas, examinei-as, uma por uma, e verifiquei que todas elas traziam cada qual a sua cara postiça.

- Até eu?

- Sim, até tu, hipócrita!

- E qual era minha máscara?

- Essa que tens agora.

- E a feição verdadeira?

- A de um homem vulgar, sem coração, sem talento e sem dignidade!

- Um homem vulgar, eu?

- Tão vulgar como o teu grande amigo, o conselheiro!

Teobaldo empalideceu ouvindo estas últimas palavras da mulher e abaixou os olhos defronte da enérgica serenidade que notou na fisionomia dela.

Depois quis toma-la pela cintura; Branca desviou-se lançando-lhe um gesto de desprezo:

Mas ouve! disse ele, deixa ao menos que eu me explique!

- Não é preciso! Nada mais há de comum entre nós dois...

Anterior - Próximo

----------x----------