O Mulato

17

E passaram se três meses. Ana Rosa, ao contrário do que era de esperar, parecia mais tranqüila; a vigilância contra ela diminuíra consideravelmente: o cônego fosse por cálculo ou fosse por cumprimento de dever, guardara o segredo da confissão. A casa de Manuel havia, enfim, recaído na sua moma e profunda tranqüilidade burguesa.

De tudo isto Raimundo recebera parte fielmente; e deliberou jogar a última cartada. Escreveu à amante, marcando o dia da fuga. Ana Rosa adoeceu de contente. A coisa seria no próximo domingo; ele faria um carro esperá-la ao canto da rua e uma vez que estivessem juntos, fugiriam para lugar seguro. O raptor não seria facilmente reconhecido, porque as barbas lhe transformavam de todo a fisionomia. "No entanto, dizia ele na carta domingo, às oito da noite hora em que teu pai costuma conversar na botica do Vidal quando os vizinhos e caixeiros ainda estão no passeio e tua avó aos cuidados da Mônica que é nossa, nessa ocasião um sujeito barbado vestido de preto, associará junto à tua porta uma música tua conhecida. Esse sujeito sou eu. Ao meu sinal descerás cautelosamente e sem risco algum. O resto fica por minha conta, a casa que nos há de receber e o padre que nos casará, estarão nesse momento à nossa disposição. Ânimo! e até domingo as oito horas da noite."

"P.S. - Toda a cautela é pouca!..."

Ana Rosa durante os poucos dias que faltavam para a fuga, não fazia mais do que sonhar

se na futura felicidade; estava sobressaltada e ao mesmo tempo radiante de satisfação; mal se alimentava, mal dormia, cheia de uma impaciência frenética que lhe dava vertigens de febre. No egoísmo da sua alegria materna suportava de mau humor as poucas amigas que a procuravam ou os velhos companheiros de Manuel, que às vezes apareciam para jantar. Mas ninguém parecia, nem por sombras desconfiar dos seus planos; ao contrário em casa falava-se, à boca cheia na obediência daquela boa filha tão resignada à vontade do pai, e cochichava-se devotamente sobre o salutar efeito da confissão. Maria Bárbara resplandecia de triunfo e como os outros da família, redobrava de solicitudes para com a neta; Ana Rosa era tratada como uma criança convalescente de moléstia mortal, cercavam-na de pequenas delicadezas e mimos amorosos, evitavam-lhe contrariedades. Perdoavam-lhe os caprichos e as rabugices. O cônego, malgrado o que sabia, nunca se lhe mostrara tão paternal e tão meigo. E o Dias, o inalterável Dias, ia surdamente ganhando certo predomínio sobre seus colegas, que principiavam já respeitá-lo como patrão, porque viam iminente o seu casamento com Ana Rosa.

- Está de dentro! Está ali, está entrando pra sociedade!... rosnavam os caixeiros do Pescada, depois de comentar os novos ares com que a menina tratava Luís.

Ela com efeito, agora o acolhia com menos repugnância; uma vez chegou mesmo a sorrir para ele. Este sorriso, porém, tão mal entendido por todos, nada mais era do contentamento de quem observa o precipício por onde passou e do qual se considera livre.

O fato, porém, é que Manuel andava satisfeito de sua vida. Ouviam-no cantarolar ao serviço; viam-no à porta dos vizinhos, sem chapéu, às vezes em mangas de camisa, a chacotear ruidosamente, afogado em risos; e à noite, em casa, quando chegava o cônego, agora ferrava-lhe sempre um abraço.

- Você é um homem dos diabos, seu compadre. Você é quem as sabe todas!...

- Davus sum non Cepidus!...

A panelinha discutia em particular o grande acontecimento."Quem seriam os padrinhos?... Quais seriam os convidados?... Como seria o enxoval?... Como seria o banquete?..." E, em breve, por toda província, falou-se no próximo casamento da filha do Pescada. Comentaram-no, profetizando boas e más conseqüências; riram-se muito de Raimundo; elogiaram, em geral , o procedimento de Ana Rosa: "Sim senhor! pensou como moça de juízo!..." Todos os amigos da casa começaram a preparar-se para a festa, antes mesmo do convite. O Rosinha do Santos andava pouco depois preocupado com o improviso de uma poesia, com que contava reabilitar-se do seu fiasco no dia de São João; o Freitas desfazia-se em discursos, aprovando o fato , mas lastimando Raimundo, cujos artigos e cujos versos ele apreciava convictamente; o Casusa verberava contra os portugueses, furioso porque uma brasileira tão bonita e tão mimos fosse cair nas mãos de um puça fedorento; Amância e Etelvina perdiam horas a boquejar sobre o caso, insistindo a viúva em que, só vendo, acreditaria em semelhante casamento. Afiaçavam por toda a parte que a festa seria de arromba; diziam, com assombro respeitoso, que haveria sorvetes, e constava até que o Pescada, só para aquele dia, ia fazer funcionar do novo a máquina de gelo de Santo Antônio.

Mas o domingo fatal, que Raimundo destinara a fuga, chegou finalmente. Por sinal que foi um dia bem aborrecido para a gente do Manuel, porque o cônego não apareceu, como de costume, para a palestra, e ninguém sabia por onde andava Dias. O jantar correu frio, sem pessoas de fora, mas em boa disposição de humor; à mesa, o negociante fez várias considerações sobre o futuro da filha; mostrou-se bom e alegre com o seu corpo de Lisboa; acudiram-lhe anedotas já conhecidas da família; vieram-lhe pilhérias a respeito de casamento; disse, a brincar com a filha, que havia de arranjar-lhe para noivo o Tinoco ou o major Cotia. Ela ria-se exageradamente; estava corada, muito inquieta e nervosa; tinha vontade de acariciar o pai, abraçá-lo, beijá-lo, despedir-se dele. À sobremesa, sentiu um desejo absurdo de contar-lhe com franquesa todo os seus planos, e pedir-lhe, pela última vez, a sua aprovação a favor de Raimundo.

Às seis horas entrou D. Amância; ainda os encontrou no café. Ana Rosa teve uma pontada no coração. "Que contratempo!..." A velha declarou que estava cansada, vinha ofegante; pediu que a deixassem repousar um pouco.

- Que estafa a sua, credo! Subir oito ladeiras no mesmo dia!...

- Oito, hein?...

E Ana Rosa mordia os beiços, sorrindo contrariada.

- Contadinhas! É de estrompar uma criatura!

E conversaram largamente sobre as ladeiras do Maranhão.

- Então aquela do Vira Mundo!... Benza-te Deus!

- Não é pior do que a do Largo do Palácio...

- Deixe estar que a desta sua rua, seu Manuel, também tem o que se lhe diga!...

- E a da Rua do Giz?...

- Um inferno! resumiu a velha, ainda arquejante. Ter a gente de estar sempre a subir e a descer como uma coisa danada! Cruzes!

A conversa continuou, tomando para Ana Rosa um caráter assustador. Amância parecia disposta a dar à língua; não se despregaria dali tão cedo. Os caixeiros recolhiam

se já, e a rapariga tremia de impaciência. "Diabo daquela velha não se poria ao fresco?... " Qual!

O tempo corria.

Manuel declarou daí a pouco, que não saia de casa. Foi buscar os seus jornais portugueses e pôs-se a ler, à mesa de jantar, na varanda.

A pequena quase disparava. Correu para o seu quarto, fula de raiva, chorando. "Também, diabo! tudo parecia conspirar contra ela!... "

O relógio bateu uma badalada. Eram sete e meia Ana Rosa soltou um murro na cabeça. "Diabo!"

Manuel bocejava. Amância parecia resolvida a não sair.

Ana Rosa voltou à varanda; tinha as mãos frias; o coração queria saltar-lhe de dentro. Sentia uma impaciência saturada de medo; seu desejo era gritar, descompor aquele estafermo da velha, pô-la na rua, aos empurrões, "que fosse amolar a avó!" Semelhantes obstáculos à sua fuga pareciam-lhe uma injustiça, uma falta de consideração; vinha lhe vontade até de queixar-se ao pai; de protestar contra aquelas contrariedades que a faziam sofrer.

Decorreu um quarto de hora. Manuel levantou-se, espreguigando-se com os jamais na mão.

- Bom! D. Amância dá licença!...

E recolheu-se ao quarto, para dormir.

- Ah!

Ana Rosa criou alma nova; teve vontade de abraçar o pai, agradecendo-lhe tamanha fineza.

- Eu também já me vou chegando... disse Amânca. E ergueu-se.

- Já?... balbuciou a moça, por delicadeza.

A visita tornou a assentar-se; a outra sentiu ímpetos de estrangulá-la.

Maria Barbara veio do quarto, e entabulou conversa com a amiga Ana Rosa arfava

- Diabo!

Faltavam cinco para as oito. Amância levantou-se afinal, e despediu-se.

- Ora graças a Deus!...

Maria Bárbara foi até o corredor.

- Olhe, gritou a Sousellas. Não se esqueça, hein?... Três pingos de limão e uma colherzinha de água de flor de laranja.... Santo remédio! Ainda é receita da nossa defunta Maria do Carmo!.

E desceu.

Mas, já debaixo, voltou, chamando por Mana Bárbara.

- Olhe, Babu!

Ana Rosa quase perde os sentidos.

Deixou-se cair em uma cadeira.

- É verdade você não sabe de uma?...- Pois não lhe ia esquecendo?...- A Eufrasinha estava de namoro com um estudante do Liceu?...

- Que estouvada!...

- Um menino de quinze anos, criatura!

E contou toda a história, puxando pelos comentários, e esticando-os.

Ana Rosa, assentada na varanda, em uma cadeira de balanço, rufava com as unhas nos dentes.

- Bem, bem adeus minha vida!

E Amância beijocou a cara de Maria Bárbara

- Até que enfim!

Ana Rosa correu logo ao quarto Raimundo recomendara-lhe que não levasse nada, absolutamente nada, de casa, que ele estava preparado e prevenido para recebê-la, relógio pingou, inalteravelmente oito badaladas roucas. Maria Bárbara afastara-se para o interior da casa; Manuel continuava a dormir no seu quarto. E daí a instantes, no silêncio da varanda, ouviu-se o assovio forte de Raimundo, entoando um trecho italiano.

Ana Rosa cujo coração fazia do seu peito um círculo de ginástica apanhou trêmula as salas e, com uma ligeireza de pássaro que foge da gaiola, desceu a escada na ponta dos pés, atirando-se lá embaixo nos braços de Raimundo, que a esperava nos primeiros degraus.

Mas, ao transporem a porta da nua, ela soltou um grito, e o rapaz estacou, empalidecendo. Do lado de fora, o cônego Diogo e o Dias, acompanhados por quatro soldados de policia, saíram ao seu encontro, cortando-lhes a passagem.

Dias, só por si, era um pobre pedaço de asno, incapaz da mínima sutileza de inteligência e pouco destro na pontaria dos seus raciocínios; posto, porém, ao serviço do cônego Diogo, tornara-se uma arma perigosa, de grande alcance e maior certeza. Guiado pelo mestre, o imbecil nunca tinha deixado de espreitar, sempre desconfiado e atento, sondando tudo aquilo que lhe parecia suspeito, acordando, muita vez, por alta noite, para ir, tenteando as trevas, espiar e escutar, na esperança de descobrir alguma coisa. As furtivas conversas de Ana Rosa com a preta Mônica quando esta voltava da fonte não lhe passaram despercebidas e por aí chegou ao conhecimento da correspondência de Raimundo, desde logo as primeiras cartas.

- Devo apoderar-me delas... não é verdade? perguntou ao padre.

- Nada! Por ora não! É cedo ainda!... respondeu Diogo.

E este continuava a freqüentar assiduamente a casa do compadre sempre muito solicito pela saúde da sua afilhada, informando-se, com paternal interesse, das mais pequeninas coisas que lhe faziam respeito, querendo saber quais os dias em que ela comia melhor, quais em que se sentia alegre ou triste, quando chorava, quando se enfeitava, quando acordava tarde e quando rezava. Como bom velho amigo da família exigia que lhe dessem contas de tudo, e Manuel as dava de bom grado satisfeito por ver que as coisas iam voltando aos seus eixos e que a sua casa recaia na primitiva tranqüilidade. O cônego nem por sombra, lhe revelara o segredo da confusão de Ana Rosa, temendo como solidário do Dias, que o negociante, em conjuntura tão feia esquecesse tudo e preferisse casar a filha com o homem que a desvirtuara. Quanto ao seu protegido, também não lhe quadrou dizer lhe a verdade, porque receava que o caixeiro, por escrúpulo ou por medo do rival, desistisse do casamento... Ora, desitindo o Dias, Diogo estaria em maus lençóis, porque Ana Rosa casava-se logo com Raimundo e ele ficaria sujeito a vingança deste, a quem temia, e com razão, depois daquela pequena conferência à volta de São Brás. "Sei perfeitamente, raciocinava o finório, que o traste não tem nenhuma prova contra mim, mas convém-me, a todo custo , fazê-lo sair do Maranhão!... Seguro morreu de velho!... O que o prende aqui é a esperança de obter ainda Ana Rosa; esta, uma vez casada com o basbaque do Dias, irá, mas o marido , dar um passeio à Europa, e o outro musca-se naturalmente. Mas se por acaso, quiser antes de ir, desmoraliza-me perante o público, todos lançarão à palavra conta do despeito e, além de ridículo, ficará tido como um caluniador!..." E, esfregando as mãos, satisfeito com os seus desígnios, concluía: "Quem o mandou meter-se de gorra cá com o degas!..."

Assim, nas ocasiões em que Dias ia preveni-lo da chegada de uma nova carta de Raimundo, o cônego tratava de estudar, olho de mestre, a impressão que ela deixava no ânimo de afilhada e, vendo o alvoroço em que a rapariga ficara com a última, apressou-se em dizer ao caixeiro:

- Chegou a vez, eu amigo, é agora! Atire-se! Precisamos desta carta!

- E por que nunca precisamos das outras?... perguntou Luís estupidamente.

- Por quê?... Ora eu lhe digo... (Você pilhou-me em boa maré!). As outras cartas eram simples palavrórios de namoro; n valia a pena arriscar-se a gente por elas; demais, minha afilhada podia a vir desconfiar de uma coisa, redobraria de cuidado, e agora a aquisição desta, que nos é imprescindível, não seria tão fácil como há de ser, compreende?

Mas a verdadeira causa não revelou o disfarçado. O cônego não queria que o caixeiro lesse as primeiras cartas de Raimundo, por dois motivos: um porque temia que este fizesse em alguma delas qualquer revelação a respeito do crime de São Brás; e segundo, porque receava que incidentalmente se referisse a elas ao interessante estado de Ana Rosa. O certo, porem, é que semelhante medida, facilitou, sem dúvida, a posse da carta, em que Raimundo marcava o dia de fuga. O caixeiro, engodando o Benedito com uma cédula de dez mil réis, mesmo instantes; copiou-a logo, restituiu-a, e correu à casa de Diogo.

Então, os dois aliados, senhores já nos planos do inimigo trataram de cortar-lhe o vôo, recorrendo à polícia, que lhes forneceu quatro praças.

O escândalo, como era de prever, reuniu povo na Rua da Estrela, e Manuel acordou sobressaltado aos gritos da sogra, da Brígida e da Mônica, que sem darem por falta de Ana Rosa, assustavam-se com a presença dos soldados e com o alvoroço da gentalha acumulada a porta do sobrado. Maria Bárbara, toda safrapantada, correu aos gritos para seu quarto e, abraçando-se a um santo, encafuou-se na rede, porque não estava em suas mãos ver fardas e baionetas "sentia logo um formigueiro pelas pernas e o estômago nu embrulho! Credo!"

Raimundo, entretanto não descoroçoou com a situação e subia a escada, sem hesitar, levando consigo Ana Rosa, meio desfalecida. Em cima, deu cara a cara com Manuel, e estacou, fitando-se os dois com a mesma firmeza, porque cada um tinha plena consciência dos seus atos. O padre e o caixeiro subiram em seguida acompanhados pelos soldados.

Juntos todos, a situação tornou-se difícil; o silêncio coalhava em torno deles, imobilizando

os. Afinal o cônego puxou pelo seu farto lenço de seda da Índia, assoou-se com enstrondo e declarou, depois uma máxima que, na qualidade de amigo e compadre do pai de Ana Rosa, entendeu de sua obrigação evitar o criminoso rapto que o Sr. Dr. Raimundo, ali presente, tentara perpetrar contra um dos membros daquela família.

A rapariga voltara a si com as palavras do padrinho e escutava-o de cabeça baixa, ainda amparada ao ombro de Raimundo.

- Eu ia por minha vontade... murmurou ela, sem levantar os olhos. Fugia com meu primo, porque esse era o único meio de casar com ele.

- E o senhor, como se explica?... perguntou o cônego a Raimundo, com autoridade.

- Não me defendo, nem aceito o juiz: apenas declaro que esta senhora nenhuma responsabilidade tem no que se acaba de passar. O culpado sou eu: bem ou mal, entendi, e entendo, que hei de casar com ela e para isso empregarei todos os meios.

Ana Rosa ia dizer alguma coisa, o cônego atalhou:

- Vamos todos cá pra dentro!

E, depois de despedir os soldados, seguiram para a saia, de cuja entrada Maria Bárbara os espiava, ainda corrida e espantadiça do susto.

- Agora que estamos em família, acrescentou ele, fechando as portas, resolvamos, como homens de boa e só justiça, o que nos cumpre fazer em tão melindrosa situação!... Hodie mihi, cras tibi!... Seu Manuel, primeiro você! Tem a palavra!

Manuel passeava ao comprido da casa. Parou, fazendo face ao sofá, onde estavam todos, e dirigiu-se ao grupo. O pobre homem tinha uma grande tristeza na fisionomia; transparecia-lhe no olhar a sua perplexidade, impondo o respeito e a compaixão, que nos inspiram as dores resignadas. Percebia-se que lhe faltavam as palavras, e que o infeliz lutava para expor as suas idéias de um modo fiel e claro. Afinal, voltou-se para o cônego e declarou que estimava bastante vê-lo, naquele momento, ao seu lado. "O compadre fora sempre o seu guia, o seu companheiro, o seu melhor amigo, como, ainda uma vez, acabava de prová-lo. Ficasse pois e ouvisse, que era da família!" Depois, pediu à sogra que se aproximasse. "A presença dela e a sua opinião eram igualmente imprescindíveis."

E passou ao caixeiro: "Ali o seu Dias também devia ficar porque não representava um simples empregado, que Manuel tinha no armazém; representava um colega zeloso, um futuro sócio, que em breve devia fazer parte dos seus por direito, que de fato já o era, havia muito tempo. Achavam-se por conseguinte na maior intimidade, e ele, para descargo da sua consciência, podia falar com franqueza ao Dr. Raimundo e dizer-lhe tudo, pão

pão, queijo queijo, o que pensava a respeito do ocorrido!"

E, depois de uma pausa, declarou que, desde o momento em que pensara no casamento de sua filha, fora sempre com sentido no futuro e na felicidade dela. "Não fossem supor que ele queria casá-la com algum príncipe encantado ou com algum sábio da Grécia!... Não senhor! o que queda era dá-la a um homem de bem e trabalhador como ele; mas, com os diabos! que fosse branco e que pudesse assegurar um futuro tranqüilo e decente para os seus netos! Vai ele então - pensou no Dias; lá lhe dizia não sei o que por dentro que ali estava um bom marido para Anica.

Um belo dia, descobriu da parte do rapaz certa inclinação por ela e ficara satisfeito, prometendo logo, com os seus botões, dar-lhe sociedade na casa, se porventura se realizasse o casamento... Ora, bem viam os circunstantes, que, em tudo aquilo, Manuel só tinha em vista o bem da rapariga... nem acreditassem que houvesse por aí pais tão desnaturados que chegassem a desejar mal para os seus próprios filhos! Qual o quê, coitados! o que às vezes queriam era prevenir o mal, que só depois havia de aparecer! Como agora poderia ele, que só tinha aquela, que só possuía a sua Anica, que a educara o melhor que pudera, que embranquecera a cabeça a pensar na felicidade daquela filha; ele, que lhe fazia todas as vontades, todos os caprichos! ele, que seria capaz dos maiores sacrifícios por amor daquela menina!.. como poderia pois contrariá-la causar-lhe mal, só por gosto?. . Então os senhores achavam que isso tinha cabimento?... Ele desejava vê-la casada, por Deus que desejava! não a criara pra feira!... mas, com um milhão de raios, desejava vê-la casada em sua companhia! Queria vê-la feliz, satisfeita, cercada de parentes e amigos; mas, boas! na sua terra, ao lado de seu pai! Ora essa! pois então um homem por estar velho, já não tinha direito ao carinho de seus filhos?... Ou quem sabe, se a filha por estar mulher já não devia saber do pai? - Morre p'r'aí, calhamaço, que me importa a mim! - Não! que isso também Deus não mandava!... Queria ir se embora? queria deixar o pobre velho ali sozinho sem ter quem lhe quisesse bem sem ter quem tratasse dos seus achaques?... podia ir! Que fosse! mas esperasse um instante' que ele fechasse os olhos primeiro, sua ingrata!"

E Manuel, enxugando os olhos na manga do paletó concluiu com a voz trêmula:

- Ai têm os senhores o que eu pensava fazer; porem vai o diabo chega do Rio um meu sobrinho bastardo um filho do defunto mano José com a preta Domingas, que foi sua escrava! Como era de esperar visto que sempre me encarreguei dos negócios de meu irmão e ultimamente dos de meu sobrinho, hospedei-o cá em casa Raimundo afeiçoou-se à minha filha ela a modos que lhe correspondeu, ele vem pede-ma em casamento; vou eu - nego-lha! Ele quer saber o porquê e eu dou-lhe a razão com franqueza! Pois bem! Vejam! este homem deixa de fazer uma viagem, que, para me iludir, fingiu que ia fazer, e, depois de andar por aí a esconder-se de todos, falta à sua palavra de honra, e...

- Senhor, gritou Raimundo.

- Senhor, não! que vossemecê deu-me a sua palavra em como nunca procuraria casar com Anica! Por conseguinte digo e sustento: depois de ter faltado à sua palavra de honra vem astuciosamente raptar minha filha! Será isto legal?! Não haverá nos códigos desta terra uma pena para semelhante abuso?!

- Há, disse o rapaz, reconquistando o sangue frio, há, quando o delinqüente se nega a reparar o delito com o casamento.. Eu, porém, não desejo outra coisa!...

- Iche! disparatou Mana Bárbara, saltando em frente. Casar minha neta com filho de uma negra?! Você mesmo não se enxerga!

Manuel sentiu-se embaraçado.

- Apelo, suplicou, para a consciência de cada um! Coloquem-se no meu lugar e digam o que fariam!... Mas parece-me que nós o que devemos é acabar com isto e evitar um escândalo maior! Compreendo perfeitamente que o Dr. Raimundo não tem culpa da sua procedência e' como é um homem de juízo e de bastante saber, espero que a pedido de nós todos, deixará o Maranhão quanto antes!...

- Amém!... aprovou o cônego

- E eu, desde já, propôs Luís. obedecendo a um sinal do guia peço a mão da senhora D. Anica

- Não quero! exclamou Ana Rosa, ainda mesmo que Raimundo me abandone!

- É uma injustiça que me faz, observou este último à moça. Sei perfeitamente cumprir com os meus deveres!

- Como com os seus deveres?!... interrogou Maria Bárbara, refilando os dentes.

- Sim, minha senhora com os meus deveres!

- Então o senhor não parte, definitivamente?! interveio Manuel.

- Juro que não me retirarei do Maranhão, sem ter casado com sua filha! respondeu o rapaz, calmo e resoluto.

- E eu declaro, berrou a velha, que você não há de casar com minha neta enquanto eu viva for!

- E eu retiro a minha bnção de minha afilhada, se ela não obedecer a sua família... reforçou o cônego.

Raimundo cravou-lhe um olhar, que perturbou o padre.

E Ana Rosa ergueu-se, levantando a cabeça. Brilhava-lhe no rosto, embaciado pelas lágrimas, o reflexo de uma grande e dolorosa resolução. Todas as vistas se voltaram para ela; estava pálida e comovida, seus lábios tremiam; mas afinal, vencendo a onda vermelha do pudor que a sufocava, balbuciou:

- Tenho por força de casar com ele... Estou grávida!

Foi um choque geral. Até o próprio cônego, para quem o estado da moça não era segredo pasmou de ouvi-la. Manuel caiu sobre uma cadeira, fulminado com os olhos abertos, arquejante. O Dias fez-se da cor de um cadáver. E Raimundo cruzou os braços; enquanto Maria Bárbara espumando de raiva saltava para junto da neta, escondendo-a com o corpo, como se quisesse defendê-la do amante.

- Nunca! Nunca! bramiu a fera. Grávida?... Embora! Antes morta ou prostituída!...

- Pchit... fez o cônego. E disse em tom misterioso e suplicante:

- Mais baixo! .. mais baixo!... Olhe que a podem ouvir da rua, D. Babita! ...

- Tu estás de barrida?... exclamou por fim Manuel, erguendo-se, vermelho de cólera.

E arrancou para a filha com os punhos cerrados.

Raimundo repeliu-o, sem lhe dar palavra

- O senhor é um malvado, invectivou o pobre pai, afastando-se para um canto a soluçar.

O rapaz foi ter com ele e pediu-lhe humildemente que o perdoasse e lhe desse Ana Rosa por esposa.

O negociante não respondeu e pôs-se a praguejar entre lágrimas.

- Calma! calma! aconselhou o cônego, passando-lhe o braço no ombro. Vamos ver o que se pode arranjar!... só para a monte não há remédio... Mente'm hominis spectate, non frontem!...

- Arranjem lá seja o que for, menos o casamento de minha neta com um negro!

- Sim senhora, D. Maria Bárbara... Mínima de malis!...

E o cônego, depois de tomar uma pitada, voltou-se cortesmente para o Dias:

- O senhor, ainda há pouco, pediu a meu compadre a mão de minha afilhada, não é e verdade?

- Sim senhor.

- Pois o seu pedido está de pé e eu lhe darei a resposta amanhã à tarde. Pode retirar-se.

- Por um.

Diogo não lhe deu tempo para mais. Conduziu-o até à ponta e segredou-lhe rapidamente:

- Espere por mim no canto da Prensa. Vá!

O Dias fez um cumprimento e saiu.

O cônego tornou a meio da sala, para dirigir-se a Raimundo.

- Quanto aqui ao Sr. Doutor, diz que está disposto a reparar o seu cor-e.

- É exato.

- Sim senhor, é muito natural. É muito bonito até!... Mas,... continuou, estalando os lábios, diz por outro lado o meu compadre, diz a senhora D. Maria Bárbara e diz este seu humilde servo, que V. Sª não está no caso de reabilitar ninguém!... Suspecta malorum beneficia!... O que V Sª chama reparação, longe de salvar, prejudicaria a aviltada ainda mais a vitima!...

- Canalha! gritou Raimundo, perdendo de todo a paciência e agarrando o padre pelo pescoço - Esmago-te aqui mesmo bandido!

E repulsou-o das mãos, com medo de matá-lo.

Manuel e a sogra acudiram, cheios de indignação contra Raimundo; enquanto o cônego puxava para o lugar a sua volta de rendas e endireitava a batina, resmungando:

- Espere lá, meu amigo! isto não vai à força!... Hoo avetart Deus... Sabemos perfeitamente que V. Sª é muito boa pessoa... Apre! Mas... há de concordar que não tem o direito de pretender a mão de minha afilhada! Nem a murros me obrigará a negar que o senhor é...

- Um cabra! concluiu a velha com um berro. E um filho da negra Domingas! alforriado à pia! É um bode! É um mulato!

- Mas afinal, com todos os diabos! a que pretendem chegar? gritou Raimundo, batendo com o pé. Desembuchem!

- É que, respondeu o cônego, inalteravelmente; nós, para evitarmos que o escândalo prossiga, vamos oferecer-lhe de n ovo o único alvitre a seguir, e olhe que poderíamos, sem mais delongas, processá-lo em regra, se assim o entendêssemos!... Mas... para que negar?... não acreditamos que o senhor abusasse da inocência desta menina!... aquela declaração de há pouco nada mais foi do que um simples estratagema, urdido por V. Sª, com o fim de realizar os seus intentos. Enganou-se! Sabemos que ela está tão pura como dantes! O que se tem a fazer, por conseguinte, é isto: O doutor vai retirar-se quanto artes desta terra, retirara-se imediatamente, sob pena de ser justiçado corno o entendermos melhor!

Raimundo foi buscar o chapéu. O cônego atalhou-lhe à saída.

- Então! Que decide?

- Fomente-se! respondeu-lhe aquele, e encaminhou-se para Ana Rosa, que chorava, encostada à parede.

- Ainda nos resta um meio… A senhora é maior. Amanhã terás notícias minhas. Juro que serei seu esposo!

- E eu juro que sou tua! exclamou ela, lançando-se para acompanhá-lo até à ponta.

- Cale-se! ordenou Manuel, obrigando-a a retroceder com um empurrão.

- Bem!... resmungou o padre, logo que rendo saiu. Seja!...

Ana Rosa correu a fechar-se no quarto.

Manuel deixou-se cair numa cadeira, abafando nas mãos os seus soluços; Maria Bárbara continuou a praguejar, voltando agora contra o genro todo o seu desespero; e o cônego, indo ter, ora com um, ora com outro, procurava acalmá-los, prometendo arranjar tudo "Que se deixassem daquela arrelia. a situação não era também lá essas coisas!... Não valia a pena afligirem-se de semelhante modo!... Fiassem-se nele, que tudo se arranjaria decentemente!... O negócio da gravidez era uma patranha, engendrada à última hora!... Pois então, se houvesse nisso alguma verdade, a pequena não lha teria confessado?…

E daí a pouco descia a escada, rangendo nos degraus os seus sapatos de polimento.

- Aqui estou, senhor cônego, Podemos ir? Perguntou-lhe o Dias, no canto da Prensa logo que se reuniram.

- Espere! espere lá meu amigo! Para que lado seguiu o homem?

- Desceu o Beco da Prensa.

- Então temos ainda o que fazer por cá...

E dirigiu-se ao cocheiro de um carro que estacionava na esquina, falou-lhe em voz baixa, e o carro afastou-se.

- Bem, disse, tomando ao caixeiro, agora encomodarmo-nos aqui, por detrás deste lote de pipas.

- Para quê?

- Para não sermos vistos pelo cabra, quando passar.

E ficaram conspirando em voz baixa, até que Raimundo apareceu de volta na entrada do beco. Fora despedir um escaler, que estava lá embaixo às suas ordens, na praia. A luz do lampião da esquina bateu-lhe em cheio no rosto porque ele trazia o chapéu de feltro derreado para a nuca. Parou um instante, hesitando, procurou o seu cano, e afina! resolveu, com Um gesto de impaciência, descer para o lado da Praça do Comércio.

- Bom! murmurou misteriosamente o padre ao companheiro. Siga… mas em distância que não seja percebido... E, se ele demorar-se muito na rua, faça o que lhe disse! fome!

E passou-lhe, sem levantar o braço, um objeto, que o Dias teve escrúpulos em receber.

- Então?! insistiu Diogo.

- Mas...

- Mas o que?... Ora não seja besta! Tome lá!

O outro quis ainda recalcitrar, o cônego acrescentou:

- Não seja tolo! Aproveite a única ocasião boa, que Deus lhe oferece! Faça o que lhe disse - será rico e feliz! Audaces fortuna juvat!... Agradeça à Providência o meio fácil que lhe depara, e que estou vendo agora que você não merecia!... A maior parte dos homens poderosos tiveram. coitados! muito maiores provações para chegar aos seus fins! Ande daí não seja ingrato com a fortuna que o protege!... Também era só o que faltava, que, por um instante de medo infantil, você perdesse o trabalho de tantos anos!.. afianço-lhe, porém, que ele não teria para com você a mesma hesitação, como há de acontecer naturalmente te…

- Vossa Reverendíssima acha então que?…

- Acho não, tenho plena certeza! "Quem o seu inimigo poupa, nas mãos lha morre!" Mas, quando mesmo ele não o mate, será isto razão para que você não o extermine?… Ora, diga-me cá, mas fale com franqueza! você está ou não resolvido a casar com minha afilhada?...

- Estou sim senhor.

- Bem! Pois lembro-lhe somente que um homem de cor, u n mulato nascido escravo desvirtuou a mulher que vai ser sua esposa, e isto, fique sabendo representa para você, muito maior afronta que um adultério! Assiste-lhe, por conseguinte, todo o direito de vingar a sua honra ultrajada; direito este que se converte em obrigação perante a consciência e perante a sociedade!

- Mas...

- Imagine-se casado com Ana Rosa e o outro no gozo perfeito da vida; a criança, já se sabe, parecida com o pai... Pois bem! lá chega um belo dia em que o meu amigo, acompanhando sua família, topa na rua, ou dentro de qualquer casa, com o cabra! . Que papel fará você, seu Dias?. com que cara fica?. O que não dirão todos?... e vamos lá, com razão, com toda a razão! E a criança? a criança, se continuar a viver, o que não julgará do basbaque que a educou? .. Sim, porque, convença-se de uma coisa! com a existência de Raimundo, o filho deste virá fatalmente a saber de quem descendeu! Não faltará quem lhe declare!

- Isso é!

- Mas, apesar de tudo, se os partidos fossem iguais, ainda vá! Assim porém, não acontece; você conquistou a sua posição naquela casa com uma longa dedicação, com um esforço de todos os dias e de todos os instantes; você enterrou ali a sua mocidade e empenhou o seu futuro; você deu tudo, tudo do que dispunha, para receber agora o capital e os juros acumulados! E o outro? o outro é simplesmente um intruso que lhe surge pela frente, e um especulador de ocasião, é um aventureiro que quer apoderar-se daquilo que você ganhou! O que pois lhe compete fazer?-Repeli-lo! Fizeram-lhe todas as admoestações; ele insiste - mate-o! Qual é o direito dele? Nenhum! Um negro forro à pia não pode aspirar à mão de uma senhora branca e rica! E um crime! é um crime, que 0 facínora quer, a todo transe, perpetrar contra a nossa sociedade e especialmente contra a família, do homem a quem você se dedicou, uma família, que, por bem dizer, já é sua, porque o Manuel Pedro tem sido para você um verdadeiro pai, um amgo sincero, um protetor que devia merecer-lhe, ao menos, o sacrifício que você agora duvida fazer por ele! E uma ingratidão! nada mais, nada menos! Mas a justiça divina, seu Dias, nunca dorme! Deus tentou fazer de você um instrumento dos seus sagrados desígnios, e você se recusa Muito bem! Eu com isso nada mais tenho! é lá com a sua consciência!... Lavo as mãos! Como sacerdote, e como amigo do seu benfeitor, já fiz e já disse o que me cumpria; o resto não me pertence! Faça o que entender!

- Sim... mas...

- Apenas lhe observo o seguinte: ainda mesmo que Raimundo não consiga realizar o casamento com Ana Rosa, o que aliás é impossível, porque ela é maior e o outro tem por si a justiça, fique certo de que, enquanto viver aquele homem, a mãe do filho dele nunca fará o menor caso de você Isso é o que lhe afianço!

- Mas o pai pode obrigá-la a casar comigo.

- Não seja pedaço de asno, que uma rapariga naquelas condições não se casa senão por gosto próprio! mas, quando assim não fosse, aceitando a hipótese absurda de que o pai a obrigasse, isso então seria muito pior para você! Era só o Raimundo dizer, em qualquer tempo, a Ana Rosa "Vem cá!" e ela, a sua esposa, meu caro amigo, seguia-o logo, como um cachorrinho! Você sabe lá o que é a mulher para o primeiro homem que a possui, principalmente quando ele a emprenha?... E um animal com dono! Acompanha-o para onde ele for e fará somente o que ele bem quiser! E um autômato! Não se pertence! Não tem vontade sua! Casada com outro? Que importa! há de correr atrás do amante, segui-lo por todas as degradações! há de rir-se à custa do pobre marido! cobri-lo de vergonhas! há de ser a primeira a chamar-lhe nomes! Você, seu palerma, servirá unicamente para apimentar o prazer dos dois, dar-lhe um travo picante de fruto proibido, de pecado! E calcule, por um instante, as terríveis consequências da sua covardia; não pára aqui a negra cadeia das vergonhas que o esperam! Raimundo há de, mais cedo ou mais tarde, aborrecer da amante, como a gente se aborrece de tudo que é ilegal; passada a quadra das ilusões, desaparecerá o ardor que o prende a Ana Rosa e todo o seu sonho será conquistar uma posição brilhante na sociedade pois bem, desde que ele não possa associar a amiga às suas aspirações, às suas glórias políticas e literárias, ela se converterá num obstáculo à sua carreira, num estorvo para o seu futuro, num trambolho, a que ele, na primeira ocasião dará um pontapé, substituindo-a por uma esposa legitima, de quem tire partido para subir melhor! Então, Ana Rosa passará à segunda mão, depois à terceira, à quarta, à quinta; até que, por muito batida, resvale no lodo dos trapiches, na taverna dos marujos, em todo lugar, enfim, onde possa vender-se para matar a fome! E lembre-se bem que ela, por tudo isto, nunca deixará de ser sua mulher, sua senhora, recebida aos pés do altar, em face de Deus e dos homens! Ora diga-me pois, seu Dias, não lhe parece que evitar tamanhas calamidades é servir bem ao nosso criador e aos nossos semelhantes?... Ainda duvidará que pratica uma boa ação, removendo a causa única de tanta desgraça?.. Vamos, meu amigo, não seja mau, salve aquela ovelha inocente das voragens da prostituição! Salve-a em nome da igreja! em nome do bem! em nome da moral!

E o grande artista levantou os braços para o céu, exclamando em voz chorosa

- Quis talia fando tempera a lacrymis?...

Dias escutava-o concentrado. O cônego prosseguiu, mudando de tom:

- Viremos a medalha! vejamos agora o que sucederá se você seguir o meu conselho A rapariga chora por algum tempo, pouco, muito pouco, porque eu a consolarei com as minhas palavras; depois como precisa de um pai para o filho, casa-se com você e ai está o meu amigo, de um dia para outro, feliz, rico, independente! sem contar o seu gozo intimo de haver resgatado de infalível perdição a filha do seu benfeitor, a qual deixará de ser uma mulher perdida para ser o modelo das esposas!

- É exato!

- Pois mãos à obra! Todo aquele que encontra em casa o ladrão que lhe vai roubar o simples dinheiro tem direito a meter-lhe uma carga de chumbo nos miolos, e, como há de fica. de braços cruzados o que se vê ameaçado na sua honra, na sua fortuna na sua mulher e na sua tranqüilidade?... Sim, fica... quando é um miserável! um basbaque!

- Reverendo, juro-lhe que...

- Então avie-se! Está a fugir a única ocasião que Deus lhe faculta!.. Amanhã será tarde!... já ele a terá por justiça e, ainda que não se casem, o escândalo será patente! Resolva-se ou deixe por uma vez o campo livre ao mais forte e mais esperto!

- Adeus, senhor cônego!

- Vá com a Virgem Santíssima!

E o Dias, de cabeça baixa, passos largos e abafados subiu a Rua da Estrela. De repente, voltou, chamou o padre e perguntou-lhe alguma coisa ao ouvido.

- E melhor, é...

O caixeiro tomou então a Rua de Santana.

Daí a uma hora, o compadre de Manuel, depois de saborear a sua canja e depois de amaciar o lombo luzidio do seu maltês fazia a oração do costume e espichava-se tranqüilamente numa rede de algodão, lavada e cheirosa, disposto a passar uma boa noite.

Capítulo 16 - Capítulo 18

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