Casa de Pensão
XIII
A casa de pensão de Mme. Brizard sofreu muito com as variolóides de Amâncio. Desmanavam-se hóspedes que era uma coisa por demais.
O gentleman, o Piloto e a pérola do n.º 9, "o estimável Melinho", desde a fatal noite das cataporas, não davam notícias suas. Fontes e a mulher sumiram-se logo no dia imediato, e, por conseguinte, não metendo o tal médico do n.º 11, que já não aparecia há bastante tempo, apenas seis hóspedes restavam dos quatorze primitivos.
E ainda mesmo destes seis nem todos eram aproveitáveis; porque Paula Mendes e mais a mulher levantariam o vôo, assim que lhes chegasse uma aragenzinha de dinheiro, e o estafermo do n.º 7 também estava a despedir-se por um daqueles dias, não da casa, mas do mundo.
Certos, só Amâncio, o guarda-livros e o esquisitão do Campelo que, fugindo ao pigarro do tísico, mudara-se para o andar de baixo, mal pilhara um cômodo desocupado.
Mme. Brizard estava, pois, inconsolável. - Em sua vida de hospedeira jamais tivera um mês tão ruim!
E azoinada por essas contrariedades e já de natureza um tanto supersticiosa, agora em tudo descobria sinais de mau agouro e motivos para desconfiança. - Pois se até o ilustre Sr. Lambertosa, "o respeitável gentleman, a flor dos homens finos, uma criatura tão cheia de circunspecção", quem o diria?... aproveitar ao ensejo das bexigas para lhe passar a perna!
E o Melinho? "o estimável Melinho! a pérola do n.º 9, o homem das frutas cristalizadas!" também não deixara as suas contas em aberto?...
Só o Piloto, o estúrdio, aquele de quem menos se esperava, aparecera três dias depois da fuga, perguntando, ainda muito escabreado, de quanto era a sua dívida.
- É mesmo caiporismo! gemia a francesa.
O marido, porém, soprava-lhe a coragem: - Ela que não desanimasse por tão pouco! Nem tudo se perdera! Enquanto tivessem o Amâncio não se podiam queixar da sorte; este valia por todos os outros!
Mas o precioso Amâncio não estava também muito satisfeito com a casa, talvez desconfiando que a esta coubesse em parte a responsabilidade daquele maldito reumatismo que ora parecia extinto e ora o obrigava a guarda a cama, tolhido de dores.
À noite, quando lho permitiam as pernas, descia a cavaquear na varanda com os senhorios. Agora os serões tinham um caráter mais íntimo e eram freqüentemente animados com a presença de uma família, que voltara às relações de Mme. Brizard depois de seis meses de inimizade.
Tocava-se piano, jogava-se a víspora, quase todos os dias e, às vezes, se dançava.
A casa de pensão nunca ofereceu aos seus hóspedes um aspecto tão divertido; menos para o rabequista, Paula Mendes, que parecia cada vez mais triste e apoquentado da vida. A circunstância de já não comer à mesa de Coqueiro obrigava-o a desperdiçar muito tempo com o restaurante e dificultava-lhe a subsistência da mulher, cujo mau humor ia se azedando ao peso de tanta necessidade e de tanta humilhação. O infeliz marido conseguiu afinal que ela fosse passar alguns meses na companhia dos parentes em Niterói.
Mme. Brizard, ao vê-la partir, receou a premeditação de uma fuga e exigiu logo que Mendes, para garantir a dívida, hipotecasse o piano que tinha no quarto.
O pobre homem consentiu, sem dizer palavra, mas, de envergonhado, deixou de aparecer nos serões da sala de jantar.
E desde então, por alta noite, quando toda a casa era silêncio, Amâncio ouvia no corredor o som de passos trôpegos e um vozear confuso de alguém que monologava.
A casa de pensão, definitivamente, ia se tornando insuportável ao estudante.
Não podia sair à rua; o médico, havia quase um mês, jurara pô-lo pronto em quatro dias, se Amâncio não fizesse alguma extravagância; a conversa de toda a família Coqueiro, à exceção de Amelinha, o enfastiava; a leitura muito pouco o distraía, e, para complemento do enjôo, o maldito tossegoso do n.º 7, o qual por caridade entregara ele ultimamente ao seu médico, parecia morrer de cinco em cinco minutos e não lhe dava um momento de sossego.
Mas a causa principal desse tédio era, sem dúvida, a ausência de Lúcia. Desde que ela se foi, o coração do rapaz turgia de saudade; longe de esquecê-la, cada vez a desejava com mais sofreguidão.
As trevas da ausência faziam-na destacar melhor e mais linda, como um fundo negro a uma estátua de mármore.
Sentiu sobressaltos deliciosos quando recebeu a primeira carta das mãos dela. Era extensa, cheia de imagens poéticas e figuras de grande alcance amoroso; terminava dizendo "que Amâncio, logo que pusesse os pés na rua, a fosse procurar". O endereço vinha à parte, num pedacinho de papel.
- E não poder ir quanto antes!... Que espiga! considerou ele, sinceramente penalizado.
E cresciam-lhe os enjôos.
Só Amélia, com os estiletes da sua perceptibilidade feminina, conseguiu penetrar no âmago daquelas tristezas, mas não se deu por achada e redobrou os desvelos e meiguices para com ele.
Amâncio, por mais de uma vez beijou-lhe as mãos suspirando que ela era o seu bom anjo, a sua consolação única no meio de "tantos dissabores"!
Assim se passaram quinze dias. O apaixonado já a tratava por tu, por você, raras vezes por senhora.
Era a piedosa Amelinha quem lhe arrumava o quarto, quem lhe cuidava da roupa, e já por fim, era até quem lhe levava o cafezinho pela manhã. Mas não entrava, apenas metia o braço pela abertura da porta que ficava sempre encostada, depunha cautelosamente a xícara sobre o soalho, e, se Amâncio ainda dormia, gritava-lhe no seu falsete aprazível:
- Preguiçoso, acorde! são horas!
Depois, apanhava novamente as saias e descia a escada, ligeira e sem rumor.
Outras vezes, ao anoitecer, subia para lhe pedir um livro emprestado, para saber se ele queria o chá no quarto ou se preferia descer à sala de jantar. Sempre havia um pretexto para lá ir e, depois de lá estar, sempre arranjava um motivo de demora. Entretinha-se a ver o que se achava sobre a mesa; examinando tudo; lia a lombada dos livros, e brincava com um esqueleto que jazia pendurado a um canto do quarto.
Amâncio, de uma feita, não pôde deixar de rir, quando a encontrou muito espantada a examinar as gravuras de um tratado fisiológico de Vernier.
Estava, porém, mais e mais convencido de que toda aquela familiaridade e toda aquela confiança da rapariga procediam do modo e das maneiras respeitosas e fraternais com que ele, até ali, a tratara. E então, fazia por domar os seus impulsos luxuriosos, receoso de cair-lhe em desagrado.
Verdade é que, em grande parte, contribuía para esse estranho heroísmo de garanhão, não só a moléstia, como a ilimitada confiança que, muito propositadamente depositavam nele Coqueiro e a mulher.
Se Amélia e Lúcia trocassem os papéis, isto é, se aquela se negasse e esta se oferecesse, é de supor que Amâncio desdenhasse a última e ambicionasse a primeira.
Mas o Sr. João Coqueiro, apesar de tão fino, não calculou que, em naturezas viciadas como a de Amâncio, o mais forte estímulo para o amor é a proibição.
Embalde deixavam o rapaz horas e horas no salão, às voltas com a menina; embalde Mme. Brizard lhe dava a perceber o quanto era ele amado pela cunhada; embalde lhe chamava "coração de gelo"; embalde lhe preparava todos os laços. - Nada produzia o efeito desejado; Amâncio tornava-se cada vez mais respeitoso e mais frio em presença de Amélia.
Era para desesperar!
Uma ocasião, todavia, estava ele no quarto, de costas para a porta e muito entretido a ler defronte do gás, quando Amélia, pé ante pé, entrou sem ser sentida e, encaminhando-se contra o moço, tomou-lhe a cabeça nas mãos e cobriu-lhe o rosto de beijos.
Amâncio quis prendê-la, mas a rapariga não se deixou enlear, e fugiu, como um pássaro assustado.
* * *
O rapaz, então, nunca mais receou cair-lhe em desagrado. Mas o demônio do reumatismo lá estava erguido entre ele e a provocadora menina. A despeito do tratamento, as dores recrudesciam-lhe de vez em quando e assanhavam-se-lhe a bílis. Amâncio principiou a emagrecer, tomado de uma estranha prostração, muito assustadora. O médico aconselhou-o logo a que se mudasse para um arrabalde de bons ares, como Santa Teresa, por exemplo, e esta notícia produziu enormes sobressaltos na família dos locandeiros.
Mme. Brizard parecia ter um filho em risco de vida; Coqueiro declarou, cheio de dedicação, que não deixaria o "pobre amigo" ir assim desamparado para uma casa de saúde ou para um hotel; Amelinha choramingava ao lado da cama do enfermo, e, quando se achava a sós com este, beijava-lhe as mãos, afagava-lhe os cabelos e soluçava palavras de ternura.
Nesses dias Amâncio era assunto obrigado das conversas da casa. À mesa e durante os serões não se falava noutra coisa. Lembravam-se todos os expedientes: - uma mudança geral da família; alugar fora uma casinha e levá-lo a passeio até que se restabelecesse; abandonar a casa de pensão ou entregá-la aos cuidados de alguma pessoa de confiança.
Nada, porém, ficava resolvido. A conversa turbinava em volta do mesmo assunto, sem descobrir uma saída.
Nini era a única que parecia não ligar a mínima importância a tudo aquilo; de olhos muito abertos, sonâmbula, ouvia em silêncio as conversas da família, apenas suspirando de espaço a espaço.
Não obstante, já uma noite estava a casa recolhida, quando despertaram alarmados com o baque de um corpo que, entre medonhos gritos, rolava pela escada do segundo andar.
Acudiram todos, num levante.
- Que era?! Que acontecera?
Nini, coberta de sangue, jazia estendida sem sentidos ao sopé da escada. Rolara vinte degraus a partira a cabeça em dois lugares.
Ia fazer uma visita ao seu esquivoso enfermo, mas no patamar da maldita escada perdera o equilíbrio e baqueara desastradamente.
Tomaram-lhe as feridas a pontos falsos, friccionaram-lhe o corpo inteiro com aguardente canforada e deram-lhe a beber cerveja preta.
Supunham, todavia, que amanhecesse morta. Foi o contrário: Nini melhorou muito de seus antigos padecimentos e apresentou uma inesperada lucidez de idéias, como há muito não possuía. - O choque fizera-lhe bem e não menos o sangue que derramou da cabeça, afiançou o médico.
Aquele trambolhão era uma providência!
À noite, conversou-se bastante a esse respeito; vieram as amigas de Mme. Brizard; choveram os comentários sobre Nini; citaram-se as anedotas correlativas ao fato, e Amâncio, que se achava então mais desembaraçado das pernas, entendeu de sua obrigação fazer uma visita à pobre criatura.
Nini estava melhor que nunca: tranqüila; havia comido regularmente e mostrava-se até mais satisfeita e mais comunicativa; ao dar, porém, com Amâncio, que entrara no quarto com o seu risinho de boa amizade, abriu de repente a estrebuchar na cama, bramindo impropérios e atassalhando as roupas.
Para sossegar um pouco foi preciso que o rapaz fugisse o mais depressa de sua presença. E, desde então, a desgraçada não o podia ver, que lhe não voltassem logo as insânias e os frenesis.
Estabeleceu-se um cuidado enorme para evitar que os dois se encontrassem. Já não era permitido a Amâncio dar um passo fora do quarto, sem se precaver e indagar se Nini estava por ali por perto.
O médico declarou que um novo encontro exacerbaria os padecimentos da enferma e talvez lhe produzisse a loucura absoluta.
Mme. Brizard pranteava-se toda, quando lhe falavam na filha. - Era uma desgraça, dizia, com os olhos espipados pelo esforço que faziam - era uma grande desgraça! Antes Deus a levasse logo para si, coitada!
Um encontro, que Amâncio não pudera evitar, a despeito de suas precauções, deixou Nini em tal excitação nervosa, que o doutor proibiu que a consentissem fora do quarto. Ficou presa desde esse dia.
Malgrado a felicidade prevista ao lado de Amélia, o provinciano sentia já bastante desejo de se tirar dali. - Assim que estivesse bom!
Campos, em uma visita que lhe fez por essa ocasião, falou muito na generosidade com que se portara a família de Coqueiro durante a moléstia do rapaz. - Que aquilo era uma fortuna que nem todos abichavam! Citou principalmente as canseiras de Amelinha e concluiu declarando que, segundo o seu fraco modo de pensar, Amâncio tinha obrigação de fazer à menina um qualquer presente de valor.
Sim! porque, no fim de contas, era muito difícil encontrar aquilo nas casas de pensão! Outros foram eles, que Amâncio teria de pôr os quartos na rua! - Não. Inquestionavelmente, era preciso dar o presente!
E, depois de se concentrar numa pausa:
- Aí uma jóia de uns cem mil-réis... Que diabo! esse dinheiro não o faria pobre...
Mas o estudante, em voz discreta e abafada, confessou a Campos que a brincadeira não lhe havia saído tão de graça, como parecia à primeira vista: Só o mês passado gastara perto de seiscentos mil-réis, sem contar que Sabino vivia numa dobadoura, de casa para a botica e da botica para casa, e eram remédios para Nini, remédios para o tísico do n.º 7, água de flor de laranja para Mme. Brizard, xaropes para Coqueiro; um inferno!... E toda essa droga caía na sua conta! - E os dinheiros emprestados?... E as fitas, os botões, as linhas, as tiras bordadas, que Amelinha estava sempre a lhe pedir que mandasse buscar nos armarinhos sem nunca dar dinheiro para isso?... Não! Sr. Luís Campos não podia calcular o que havia! - Hoje cinco mil-réis, amanhã vinte! E, no tirar das contas, parecia que tudo isso, em vez de ser descontado, era aumentado nas suas despesas!... Que tal?! - Recebera obséquios, sim senhor! mas também puxara muito pela bolsa!
Campos ignorava aquelas particularidades... mas entendia que Amâncio, nem por isso devia menos obrigações à família de Coqueiro.
E ofereceu a "sua modesta choupana", caso o estudante não quisesse continuar ali.
Amâncio rejeitou, um tanto por se lembrar das esperanças que embalava a respeito de Amélia, um tanto por se não querer sujeitar ao regime do negociante e um tanto por mera cerimônia.
- Enfim, disse o marido de Hortênsia, despedindo-se - acho que o senhor deve fazer o presente e tratar logo de sair daqui; já não digo pela questão da despesa, mas porque lhe convém a saúde. Escolha um arrabalde de bons ares ou então dê um passeio a Petrópolis; o médico afiançou-me que o senhor tem ameaços de febre paludosa, e isso é o diabo na época que atravessamos: a febre amarela grassa por aí que não é brinquedo!
* * *
Logo que constaram as novas disposições de Amâncio a respeito de mudança, houve uma grande consternação por toda a casa.
- Deixar-nos? exclamou Mme. Brizard em sobressalto. - Não consentimos! Se para o seu completo restabelecimento é necessário um arrabalde, vamos todos para o arrabalde! Só - isso é que não! Seria até uma falta de humanidade, coitado!
E formou-se um zunzum de opiniões. Cochichava-se pelos cantos, em magotes, discreteando-se projetos em voz de mistério, como se tratasse de um moribundo. Coqueiro andava de um lado para outro, coçando deseperadamente a cabeça, gesticulando, à procura de um meio de conciliar os seus interesses.
Amélia, afinal, subiu ao quarto do doente, e, com uma aflição a quebrar-lhe a voz, toda a tremer, os olhos úmidos, perguntou se ele tencionava deixar a casa.
Amâncio, ignorando o que ia por baixo a seu respeito trejeitou uns momos de indiferença e respondeu: "que não sabia ainda ao certo... havia de ver!... mas que o médico lhe ordenara que fosse"...
Como se só parecesse por aquelas palavras, o pranto da menina irrompeu violentamente.
Ele, meio surpreso, a tomou nos braços, indagando com ternura "o que significava aquilo?"...
Amélia não respondeu logo, mas depois, levantando a cabeça, que lhe havia pousado no colo, exclamou entre soluços angustiados:
- Não! não! não hás de ir! peço-te que não vás!
O provinciano quis saber por quê.
- Eu te amo! disse ela, escondendo de novo o rosto. - Eu te amo e não posso me separar de ti! Vejo a tua indiferença! percebo que me detesta, mas que hei de eu fazer?! Adoro-te, meu amor!
- Ah! se eu não estivesse tão doente!... suspirou Amâncio.
p> O tísico do n.º 7 há dias esperava o seu momento de morrer, estendido na cama, os olhos cravados no ar, a boca muito aberta, porque já lhe ia faltando o fôlego.
Não tossia; apenas, de quando em quando, o esforço convulsivo para arrevessar os pulmões desfeitos sacudia-lhe todo o corpo e arrancava-lhe da garganta uma ronqueira lúgubre, que lembrava o arrulhar ominoso dos pombos.
Contavam que expirasse a todo o instante. Amâncio cedera o seu moleque para lhe fazer companhia, e dos braços de casa era o único que lhe aparecia lá uma vez por outra.
Não é que espetáculo daquele aniquilamento lhe tocasse o coração, mas porque lhe mordiscava a curiosidade com esse frívolo interesse de pavor, que nos espíritos românticos provocam os loucos e os defuntos.
Uma noite, seriam duas horas da madrugada, o tísico gemeu com tal insistência que acordou o estudante. Amâncio levantou-se, tomou uma vela e foi até ao quarto dele.
Ficou impressionado. O homem estava muito aflito, debatendo-se contra os lençóis, no desespero da sua ortopnéia. A cabeça vergada para trás, o magro pescoço estirado em curva, a barba tesa, piramidal, apontando para o teto; sentia-se-lhe por detrás da pele empobrecida do rosto os ângulos da caveira; acusavam-se-lhe os ossos por todo o corpo; os olhos, extremamente vivos e esbugalhados, de uma fixidez inconsciente, pareciam saltar das órbitas, e, pelo esvasamento da boca toda aberta, via-se-lhe a língua dura e seca, de papagaio, e divisavam-se-lhe as duas filas da dentadura.
Não podia sossegar. O seu corpo, chupado lentamente pela tísica, nu e esquelético, virava-se de uma para outra banda, entre manchas excrementícias, a porejar um suor gorduroso e frio, que umedecia as roupas da cama e dava-lhe à pele, cor de osso velho, um brilho repugnante.
Faltava-lhe o ar e, todavia, pela janela aberta para o nascente, os ventos frescos da noite entravam impregnados da música de um baile distante, e punham no triste abandono daquele quarto uma melancolia dura, um áspero sentimento de egoísmo; alguma coisa da indiferença dos que vivem pelos que se vão meter silenciosamente dentro da terra.
O médico recomendara que lhe dessem todo o ar possível e lhe fizessem beber de espaço a espaço uma porção do calmante que receitara. Uma lamparina de azeite fazia tremer a sua miserável chama e cuspia o óleo quente. Havia um cheiro enjoativo de moléstia e desasseio.
Sabino dormia a sono solto no corredor. Amâncio acordou-o com o pé.
- É dessa forma que velas pelo homem? perguntou.
O moleque ergueu-se estremunhado e deu alguns passos, esbarrando pelas paredes, sem cair em si.
- Vamos! Desperta por uma vez e dá-lhe o remédio! Ele parece que tem sede!
O tísico, ao ouvir a voz de Amâncio, principiou a agitar os braços, como se o chamasse, grugulejando sons roucos e ininteligíveis.
O estudante não quis atender, mas o doente insistia com tamanho desespero, que ele, afinal, vencendo a repugnância, se aproximou, a conchear a mão contra a língua trêmula da vela.
Apesar de seus fracos estudos de medicina, fazia-lhe mal aos nervos aquela figura descarnada, que se exinania na impudência aterradora da morte; fazia-lhe mal aqueles membros despojados em vida, aquele esqueleto animado, que, na sua distanásia, parecia convidá-lo para um passeio ao cemitério.
E o tísico rouquejava sempre, agitando os braços.
O moleque, ao lado, derramava-lhe colheradas de remédio na boca; mas o líquido voltava em fios pelo canto dos lábios do moribundo e escorria-lhe ao comprido do pescoço e pela aridez escalavrada do peito.
Amâncio tomou-lhe um dos pulsos. O contato pegajoso e úmido fez-lhe retirar-lhe logo a mão com um arrepio.
- Qual, nhô, ele está assim a um ror de dias! Leva nisto e não decide!...
- Não! Creio que agora está morrendo...
E olhou para o doente.
Este espichou a cabeça e respondeu que não, com um movimento demorado.
- Ele ouviu?... perguntou Amâncio, impressionado com a intervenção inesperada do moribundo.
A caveira tornou a agitar-se nos travesseiros para dizer que sim.
- Olha!... fez o estudante arregalando os olhos. E aproximou-se da porta, recomendando ao Sabino que se não descuidasse da pobre criatura; que se não pusesse a dormir como ainda há pouco!
O tísico, que havia serenado alguma coisa com a presença do rapaz, principiou de novo a espolinhar-se, rilhando os dentes e agitando os braços e as pernas.
Amâncio, porém, não atendeu desta vez e saiu. O tísico rosnou com mais ânsia, procurando lançar-se fora do leito, numa aflição crescente.
- Fica quieto! gritou Sabino, obrigando-o a deitar-se.
* * *
Logo que o estudante se afastou com a vela, o quarto recaiu na sua dúbia claridade modorrenta. Os ventos frios da madrugada continuavam a soprar. O moleque foi até a janela, olhou a rua em silêncio, acendeu um cigarro e, quando viu que o seu homem parecia serenado, tratou de reassumir o sono.
O senhor é que não podia sossegar, com a idéia naquele pobre rapaz, que ali morria aos poucos, sem família, nem carinhos de espécie alguma; sem ter ao menos quem o tratasse, nem dispor de um amigo que se compadecesse dele.
- Infeliz criatura! pensava. - Além do mais, longe da Pátria, longe de tudo que lhe podia ser caro!
E, sacudido de estranhas condolências, imaginava o pobre desterrado saindo de sua aldeia em Portugal, atravessando os mares, atirado no convés de um navio, afinal no Brasil, neste país-sonho, a trabalhar dia a dia durante uma mocidade, e economizar, e sofrer privações; depois - falir, perder tudo de repente, achar-se em plena miséria e com a ladra da tísica a comer-lhe os pulmões! Oh! cortava a alma!
Não se podia esquecer do desespero com que o desgraçado o chamava, como se lhe quisesse pedir alguma coisa, fazer alguma revelação: - Talvez, quem sabe? até o tomasse, no seu delírio, por algum amigo; porque Amâncio se não enganava, chegara a distinguir-lhe balbuciar o nome de alguém - Não podia ser outra coisa, o mísero chamava por um amigo!
- Mas, também, que idéia, a sua, de andar por aquelas horas a visitar moribundos! Que diabo tinha ele, no fim de contas, com o tal tísico?... Ora essa!
O vulto esquelético não lhe saía, porém, de defronte dos olhos, com a sua ronqueira lúgubre, sempre a lhe estender os longos braços sem músculos e a rolar nas órbitas, convulsivamente, aqueles dois bugalhos luminosos.
Fechou a porta do quarto, despiu o sobretudo que havia enfiado, apagou a vela e assentou-se à mesinha diante de um livro.
O tísico gemia.
- Que maçada! resmungou Amâncio, sem se safar da impressão que trouxera do quarto "daquele diabo"! E cansava os olhos contra as páginas do livro, lendo sem compreender.
Vinham-lhe bocejos repetidos, ardiam-lhe os olhos. - Agora talvez dormisse. O importuno parecia sossegado, pelo menos não se lhe ouvia gemer.
Amâncio voltou à cama, sem ânimo de apagar a vela.
Quando estava quase adormecido, passos agitados no corredor o despertaram em sobressalto e uma pancada em cheio na porta fê-lo erguer-se de pulo e precipitar-se para ela.
Sabino, o tísico, vieram-lhe à memória. Ouriçaram-se-lhe os cabelos, enlixou-se-lhe a pele, e o coração bateu-lhe com mais força. - Que teria sucedido? A mão tremia-lhe ao forçar o trinco.
A porta afinal cedeu, e Amâncio sentiu cair desamparadamente no chão o corpo comprido e nu do tísico.
Estava horrível. Queria erguer-se, e em vão agitava as pernas e os braços. Amâncio tentou ajudá-lo, gritando ao mesmo tempo pelo Sabino. Os membros do tísico pareciam quebrar-se-lhe nas mãos, que escorregavam com a gordura fria do suor, e no soalho manchas de umidade desenhavam-lhe já o feitio do corpo.
O estudante desejava chamar por alguém. - Sabino dormia com certeza! - Peste! Fez um movimento para sair; mas o esqueleto agarrou-lhe violentamente os pulsos e pediu-lhe com uns vagidos dolorosos que ficasse.
De seus olhos corriam duas lágrimas compridas.
Depois de um esforço terrível, conseguiu falar. Eram sons apenas murmurados, fracos, quase imperceptíveis.
Amâncio tinha razão: o desgraçado, no delírio de sua fraqueza, o tomara por algum bom amigo. Suas palavras vinham-lhe aos lábios roxos impregnadas de confiança e de amor. Falava de coisas estranhas ao outro; perguntava-lhe por indivíduos desconhecidos para Amâncio e reprovava-lhe a culpa de não ter vindo mais cedo.
Depois referiu-se dolentemente a sua terra; tratou da infância, rindo, com os olhos cheios d’água. Pediu que Amâncio, logo que lá voltasse, fosse à procura do senhor padre, e encomendasse-lhe três missas.
Em seguida, fez um esforço para chegar ao ouvido do rapaz e começou, em ar de mistério, a ensinar-lhe um caminho longo, muito longo...Ensinava-lhe ruas, as voltas que era necessário fazer para chegar lá; afinal, dava-se com uma choupana. Uma velhinha entrevada fazia meia a um canto da casa. Amâncio que se aproximasse dela e lhe dissesse em segredo que o seu João, o seu querido filho...
Uma agonia violenta tolheu-lhe a fala. Ele ainda tentou dizer alguma coisa, mas o sangue purulento já lhe golfejava da boca e caía-lhe em jorro pelo corpo. Estirou-se todo, dobrou a cabeça para trás e, depois de entesar num estremecimento os membros rechupados, foi pouco a pouco cerrando os lábios e empenando o corpo com um gemido longo e sentidíssimo.
Lá fora, a música duvidosa continuava, ao longe, entristecendo.
Amâncio teve um assomo de cólera; seu temperamento nervoso e egoísta, revolucionava-se com o choque daquele incidente desagradável, que lhe dizia respeito e vinha-lhe todavia roubar despoticamente o sossego.
Logo que o tísico expirou, correu a acordar Sabino com um murro. O moleque levantou-se, como da primeira vez, e correu à cama do tísico. A lamparina bruxuleava sobre o velador, projetando em volta, pelas paredes, sombras que se iam dobrar no teto.
Sabino abismou-se ao dar com o leito vazio, olhou em torno, muito pasmo, chegou a levantar a colcha e a espiar para baixo da cama; depois correu à janela e interrogou a solidão fria da rua.
- Ué! Disse.
- És uma peste! gritou-lhe Amâncio. - Por tua causa o tísico foi morrer no meu quarto! Ande! Vá chamar Dr. Coqueiro ou alguém que trate do corpo! Aqui em cima, creio que não há ninguém, nem sequer o Paula Mendes.
O rabequista, com efeito, havia ficado essa noite em companhia da mulher em Niterói.
A notícia levantou embaixo um rebuliço. À exceção de Campelo e do guarda-livros, ninguém mais se conservou na cama.
Mme. Brizard arrepela-se, praguejando contra o maldito caiporismo que a perseguia ultimamente. - Até já lhe vinham os tísicos morrer em casa! Era demais!
Causou grande impressão a narrativa de Amâncio sobre os últimos momentos do homem. Dr. Tavares desfez-se em altas considerações a esse respeito. Coqueiro proibiu à irmã que subisse ao segundo andar, enquanto o cadáver não estivesse convenientemente amortalhado e deposto no sofá que às pressas se carregou para cima. Por toda a casa distribuíram-se fogareiros de incenso e alfazema. Sabino fora, de um pulo, buscar à botica uma garrafa de labarraque, e o copeiro saíra para lançar à primeira praia o colchão, os lençóis e os travesseiros que serviram ao defunto.
Descarregou-se o quarto. A francesa quis abrir um velho baú de folha, que jazia a um canto e que era o único objeto deixado pelo morto; mas Dr. Tavares opôs-se-lhe energicamente, citando artigos do código criminal e dizendo em tom de autoridade que o falecido era um súdito português e, por conseguinte, só ao cônsul de sua nação competia fazer-lhe o espólio dos bens!
- E o que nos ficou ele a dever?! E mais a despesa dos lençóis, do colchão e do diabo?! perguntou Mme. Brizard.
- Recebe-se do consulado português ou não se recebe de pessoa alguma, apressou-se a explicar Coqueiro, que já sabia perfeitamente não haver dentro do tal baú coisa alguma de valor.
O corpo saiu no dia seguinte, em um carro da misericórdia. E Amâncio declarou positivamente que não estava disposto a ficar na casa de pensão nem mais um dia.
- Pois então vamos todos para um arrabalde! - deliberou Mme. Brizard, em conseqüência dos repetidos conchavos que fizera com o marido.
Diabo era o estado de Nini, a pobrezita achava-se agora completamente desarranjada. Comia encostando a boca no prato, como um bicho; não trocava palavra com pessoa alguma e nem mais podia ficar em liberdade, porque de vez em quando lhe acometiam frenesis, que lhe davam para morder os outros e espatifar as roupas até ficar nua.
O médico entendia, porém, que com um bom regime hidroterápico, ela ainda podia restabelecer-se. Citou exemplos animadores, "bonitos casos", disse os belos resultados que ultimamente se obtinham por meio das duchas de água fria no tratamento das enfermidades nervosas, e terminou declarando que, só por esse meio, havia esperança de uma cura radical.
E o doutor, logo que esteve a sós com Amâncio, confidenciou-lhe, rindo:
- Já toquei à velha sobre aquilo que falamos; creio que desta vez fica o senhor livre da histérica!
Venceram-se, com efeito, os escrúpulos de Mme. Brizard e Nini foi para a Casa de Saúde do Dr. Eiras. A mãe teria notícias dela todos os dias e havia de lhe aparecer em pessoa duas vezes por semana.
- Aquela rapariga era o tormento de sua vida! Antes Deus a tivesse chamado para si! Agora, o que não seria necessário gastar com a tal casa de saúde?... talvez uns vinte mil-réis diários, se não fosse mais! Onde iria tudo aquilo parar? Era caiporismo, definitivamente!
Como desejavam, descobriu-se uma casa em Santa Teresa. Dr. Tavares e o guarda-livros acompanhariam a família; Campelo, o esquisitão, é o que não estava pela mudança. Logo que lhe falaram nisso, pediu secamente a nota de suas despesas, pagou-a, e retirou-se muito calmo, assoviando, de mão no bolso, cabeça erguida, na mesma fleuma inalterável com que costumava sair todas as manhãs para o trabalho.
Todo ele ia como a dizer no seu silêncio indiferente e egoísta: "A mim tanto se me dá seis como meia dúzia... morar com Pedro ou morar com Paulo, tudo para mim é a mesma coisa, desde que, em troca do - meu dinheiro - me apresentem um quarto limpo e a comida a horas certas. Se dez anos continuasse aqui Mme. Brizard, dez anos ficaria eu na Rua do Resende; mas, uma vez que se muda para Santa Teresa - adeus! vou bater à outra freguesia... o que por aí não faltam são casas de pensão."
Paula Mendes, ao entrar pouco depois, recebeu um cheio a notícia de que a família Coqueiro ia deixar a casa e que, por conseguinte, era preciso que ele saldasse as suas contas.
Mas o rabequista não tinha dinheiro na ocasião. - Logo que o tivesse havia de pagar integralmente.
Os locandeiros não estavam por isso, já lhes bastavam os calos do gentleman e do Melinho! E, depois de uma troca agitada de palavras, Mendes propôs deixar o piano, ficando-lhe o direito de resgatá-lo mais tarde com a devida importância.
Mme. Brizard queria dinheiro e não instrumentos de música! O Sr. Paula Mendes que vendesse o piano e liquidasse depois as suas contas!
Assim foi. O rabequista saiu, e, quando à tarde voltou à casa de pensão, trazia consigo um homenzinho de barbas compridas, que fechou o negócio por quatrocentos mil-réis. Mendes pagou o que devia, fez tristemente as suas malas, e afinal se retirou de cabeça baixa e mãos cruzadas para trás.
César, que o fora espreitar no corredor, voltou à varanda, dizendo espantado que ele chorava ao descer as escadas.
- Deixa-o lá, menino! resmungou a locandeira, e tocou a sineta, chamando para a mesa.
O jantar já não tinha o caráter de uma refeição de hotel, em mesa-redonda. Agora compareciam apenas cinco pessoas: Amâncio, Amelinha, Mme. Brizard, Coqueiro, Cezar e Dr. Tavares. O guarda-livros, esse continuava a não comer em casa.
Mme. Brizard suspirava à vista dos lugares vazios. - Oh! Que aperto de coração lhe fazia aquilo! Não podia resistir a tanta contrariedade ao mesmo tempo!...
Pelo correr do jantar, falou a respeito de Nini, queixou-se de saudades. Já à sobremesa, recrudesceram-lhe as ternuras maternais, vieram-lhe nostalgias, uma lágrima saltou-lhe do olho esquerdo. Chamou César para junto de si, abraçou-o e beijou-o repetidas vezes e ficou a passar-lhe a mão pela cabeça. Um silencioso constrangimento se apoderou das pessoas presentes; depois, ainda com a voz quebrada de comoção, ela pediu ao Coqueiro que se não descuidasse de cobrar o que Lambertosa e Melinho ficaram a dever. - Agora precisavam muito e muito de dinheiro!...
Mudaram-se no dia seguinte. Amâncio ia muito incomodado, amanhecera pior, quase que não podia mexer com as pernas; todos lhe profetizavam, entretanto, rápidas melhoras em Santa Teresa. O cômodo que lhe destinaram era da casa o mais espaçoso e arejado.
Amelinha não o desemparava, já não escondia até os seus carinhos, chegava-se abertamente para o rapaz, como se fora casada com ele. Às vezes dizia-lhe segredos na presença do irmão ou da francesa; prestava-lhe pequeninos serviços amorosos: levantar-lhe, por exemplo, a gola do fraque, se fazia frio; abotoar-lhe o colarinho, se estava desabotoado; atar-lhe a gravata, se o laço se desmanchava; chegar-lhe para junto a escarradeira se Amâncio queria fumar.
Em Santa Teresa esses desvelos multiplicaram-se. Aí já era a menina quem lhe metia os botões na camisa e as fivelas no colete, quem lhe escovava a roupa e o chapéu, quem lhe punha o perfume no lenço e lhe dava corda no relógio, e, quando fazia bom tempo e o rapaz tentava um passeio pelo morro, era ela quem corria a lhe trazer a bengala ou o chapéu de sol, perguntando muito solícita se ele não se esquecera dos charutos e dos fósforos, se já tinha lenço, se levava dinheiro.
Mas, às vezes, resignava, quase que ralhava com o estudante. Fazia-lhe censuras, tomava-lhe contas de umas muitas coisas: Se Amâncio passara por tal rua, se estivera durante a ausência a passear sempre ou se encontrara alguém porventura em alguma parte; quando lhe sentia cheiro de álcool queria saber o que o rapaz bebera.
Amélia, enfim, se derramava por todo ele, sem Amâncio dar por isso; invadia-o sutilmente, como um bicho que entra na carne.
A nova residência punha-os muito mais juntos, muito mais unidos do que a da rua do Resende. Os quartos eram pequenos, chegados uns dos outros; havia um sótão com escadaria para a sala de jantar. Amâncio morava aí, sozinho.
Tinha de seu uma alcova e um pequeno gabinete de trabalho; janelas para o nascente e para o acaso, despejando sobre o jardim.
Embaixo, então, era a sala de visitas, a de jantar e mais quatro cômodos, sem meter os quartos da criadagem, a cozinha, a despensa e o banheiro. Num daqueles cômodos ficou João Coqueiro com a mulher; no outro Amelinha; no outro o guarda-livros, e Dr. Tavares no último.
A respeito da mobília, só se carregou da Rua do Resende a que era de todo indispensável. Não se vendeu sequer um objeto; o casarão renderia muito mais com os trastes e, além disso. Mme. Brizard contava, mais dia, menos dia, reabilitar a sua antiga e afamada casa de pensão. - Porque, dizia ela - era impossível que as coisas não voltassem ao estado primitivo!...
Coqueiro é que parecia, como nunca, satisfeito de sua vida. Cuidava da nova casa com muito interesse; falava em melhoramentos e aconselhava a Amâncio a que comprasse uma mobiliazinha catita para ver como "ficava então naquele sótão melhor que um príncipe no seu castelo".
A casa, de fato, convidava às fantasias do gosto, porque era perfeitamente nova e bem-feita; o papel das paredes estava imaculado, o chão limpo e os tetos virgens ainda de moscaria.
Amâncio experimentou rápidas melhoras; quis logo descer à cidade, mas Coqueiro não lhe permitiu ir só.
Aproveitaram o passeio para comprar a mobília. O provinciano recebera nesse mês dinheiro do Norte e retirara mais algum da casa de Campos; João Coqueiro levou-o a uma loja de trastes e escolheu ele próprio o que podia convir ao outro; isto é, uma cômoda, um lavatório, uma boa cama de casados, uma secretária, duas estantes, um velador e seis cadeiras; tudo de mogno e trabalhado a gosto moderno.
Estes arranjos pediam outras coisas; escolheram-se também dois quadros para o intervalo das portas, um belo espelho de parede, um relógio de pêndulo, tapetes, capachos e escarradeiras.
* * *
Coqueiro, muito empenhado na condução dos trastes, havia-se afastado alguns passos de Amâncio, quando este sentiu baterem-lhe no ombro.
Era Paiva Rocha.
- Oh! exclamou, satisfeito com o encontro. - Como vais tu? Há quanto tempo não nos vemos!... Que é feito de ti?
- Ai, filho, apoquentado! respondeu Paiva. Ultimamente tem sido uma enfiada de coisas más!... Há dois meses que não recebo dinheiro do correspondente; tinha aí um lugar de revisor numa folha e os ladrões passaram-me a perna em mais de duzentos mil-réis; além de que, a besta do diretor lá da escola lembrou-se agora de exigir uma infinidade de maçadas e obrigar-nos a despesas impossíveis! O diabo!
E, mudando de tom, perguntou como ia Amâncio; onde se metera, que ninguém o via?
O outro prestou contas de sua vida, expôs os pormenores de sua moléstia, falou nos incômodos que dera à família de Coqueiro, principalmente D. Amélia, que, por sinal, era uma excelente menina.
- Maganão!... disse o comprovinciano, esbarrando-lhe intencionalmente no braço.
Amâncio repeliu com febre aquela insinuação. O colega fazia uma tremenda injustiça, tanto a ele, Amâncio como à pobre rapariga!
- Ora, filho! Queres tu agora dizer a mim o que é a gente do Coqueiro!...
Amâncio abriu grandes olhos.
- Morde aqui! acrescentou o outro, apresentando-lhe o dedo.
E em troca de um gesto negativo do amigo:
- Não queres falar por ora, e fazes tu muito bem! Mas é impossível que a tua ingenuidade chegue ao ponto de tomares a sério a irmã de Coqueiro - a Amélia dos camarões!...
- Juro-te que, até aqui, só a tenho tratado com todo o respeito!
O outro soltou uma risada.
- É fato! insistiu Amâncio, aborrecido já com aquela troça do companheiro, mas ao mesmo tempo feliz por imaginar que as suas esperanças sobre a rapariga eram perfeitamente justificáveis.
- Pois, se é fato, acredita que tens representado um papel de tolo! Fazem-te a barba, filho!
Amâncio, então, para provar a pureza de sua conduta, pintou o estado em que se achara ultimamente - entrevecido de reumatismo, sem préstimo para nada. E contou o que sofrera com as bexigas.
- Ora, dize-me cá... volveu o outro em tom de segredo. - Coqueiro já te não tem dado algumas facadinhas... Confessa...
Amâncio, nem só confessou, como disse até o dinheiro que por várias vezes emprestara ao senhorio.
- Hein?! bradou Paiva, fazendo-se muito fino. - Queres mais caro?... E ainda tens escrúpulos, criança! Pois olha que te não fazem nenhum favor - tu pagas, filho, e pagas bem!
E lembrou que não seria mau tomarem alguma coisa num botequim próximo.
O outro declarou que estava ali à espera de Coqueiro.
- Deixa lá o Coqueiro, homem! Tens medo de ir só para casa?...
- Mas é que não sei se me fará mal beber alguma coisa. Ainda estou em uso de remédios.
- Não sejas idiota! exclamou Paiva, puxando-o pelo braço.
Amâncio deixou-se levar, não tanto pelo prazer da companhia, como pela circunstância de se livrar de Coqueiro, o que lhe dava esperanças de ver Lúcia ainda essa tarde.
No café, defronte dos copos, a conversa voltou de novo à gente de Mme. Brizard.
- Gentinha! qualificou Paiva, atirando a palavra com o desprezo de quem lança fora o sobejo de um copo.
E, depois, entortando os lábios, numa obstinação torpe:
- A questão está no pagamento!
Amâncio riu. Sentia-se feliz; aquele dia de liberdade, depois de tamanho recolhimento, os cálices de xerez, as palavras degotadas de Rocha; tudo isso lhe picava o espírito com uma pontinha de alegria devassa. Seus gostos, suas tendências luxuriosas, volviam-lhe em revoada, como pássaro de arribação. Ficou expansivo, disposto aos desabafamentos da vaidade. Em breve, contava tudo o que se passara com ele na casa de Mme. Brizard, descrevia as maneiras de Amelinha com sua pessoa, os pequenos cuidados amorosos, as pequeninas frases significativas; narrou minuciosamente as cenas com Lúcia e disse que, ao sair do café, iria visitá-la à Tijuca.
- Está claro! trejeitou o outro, cuspilhando a areia branca do chão de pedra e batendo com a ponta da bengala sobre os pés cruzados. - Eu, no teu caso, já teria desforrado melhor os cobres!
- Achas então que eu devo...
- Ora, filho, é o que se leva deste mundo! A respeito de virtudes temos conversado! Eu cá só acredito numa castidade - a da velhice!... tirando daí...
E concluiu a sua idéia com um gesto feio.
Amâncio já recorria à moléstia para justificar aos olhos do amigo a atitude respeitosa que ocupara ao lado de Amélia - o colega que não o julgasse um tolo!... Mas que diabo havia ele de fazer, tolhido de dores, como estava, numa cama?...
Quando se despediram, Paiva deu a entender que precisava de dinheiro; mas Amâncio negou-o, apesar de bem provido, dizendo com a voz triste que "sentia muito não poder servir naquela ocasião".
O outro, sem mais querer ouvir coisa alguma, retirou-se logo.
* * *
Amâncio, assim que se viu livre, correu a tomar um tílburi e bateu para a casa de pensão, onde estava Lúcia.
Era um palacete, com magnífica aparência. Janelas de sacada, grande corredor ladrilhado de mármore e velhas escadarias encentradas de tapete de oleado, preso a cada degrau por um fio de metal amarelo.
Foi recebido cerimoniosamente no salão por uma mulheraça muito gorda, de lunetas, extremamente decotada, mostrando entre as almofadas do peito ramificações de veiazinhas escarlates, que pareciam miniaturas de árvores secas desenhadas a bico de pena. Em um dos braços luzia-lhe uma jóia e, por debaixo do vestido de cambraia, aparecia-lhe o pé quase redondo e empantufado de veludo azul.
Tinha a voz grossa, cheia de uu, e o lóbulo do queixo coberto de penugem negra.
Ao saber que Amâncio não ia com a intenção de tomar algum cômodo, mas sim para falar à Lúcia, retirou-se sacudindo os rins; e da sala o estudante lhe ouviu gritar ao criado "que fosse prevenir à senhora do Sr. Pereira de que aí estava um cavalheiro que lhe desejava falar!.
Lúcia mostrou-se no fim de meia hora, a pedir mil perdões por se haver demorado mais um pouco. Fizera toilette especial para recebê-lo e parecia muito lisonjeada com a visita.
Declarou, logo, que o achava mais gordo, de melhor fisionomia. - Abençoada moléstia, a dele!
E, em resposta ao que o rapaz lhe perguntava sobre aquela nova residência, elogiou muito a casa, o serviço. "Sempre era outra coisa! Nem havia termo de comparação entre esta e a de Mme. Brizard!"
Amâncio voltou-se todo na cadeira, considerando a sala. Uma rica sala, apesar de velha - grande, espelhada, cortinas de ramagem, consolos cobertos de jarras com flores artificiais de pena. A um dos cantos um piano antigo e no centro do teto de estuque, no lugar donde espipava o lustre, um grande escudo de cores, rebentando em cabecinhas de anjos.
Falaram logo sobre as novidades da casa de pensão de Coqueiro: a saída dos hóspedes, a morte do tísico, a mudança para Santa Teresa.
- Você ali está seguro!... disse Lúcia.
O estudante protestou com um gesto, em que já havia alguma coisa das revelações que pouco antes lhe fizera Paiva Rocha.
E, discutindo os amores de Amelinha, foram pouco a pouco empurrando a conversa para o verdadeiro motivo da visita, até que Amâncio conseguiu tratar de si, das suas saudades, do quanto desejava Lúcia, do quanto sofria por causa daquela ingrata que ali estava!
- Mais baixo! Olha que te podem ouvir!...
Ele então chegou-se mais para a ilustrada senhora, tomando-lhe as mãos que cobria de beijos, e, no seu ardor, com a voz abafada, os olhos acendidos, procurava arrancar-lhe uma resposta definitiva, uma palavra qualquer que o restituísse por uma vez à tranqüilidade.
- Está quieto! respondeu a tirana. - Está quieto!
E, vendo que o demônio não a escutava, em risco de comprometê-la aos olhos de quem por acaso entrasse na sala, propôs mostrar-lhe a chácara enquanto esperavam pelo jantar. - Que ela já o não deixava sair sem ter jantado!...
Havia duas descidas; uma pelo corredor e outra pela varanda. Tomaram por esta.
Lúcia, muito disfarçada, ia-lhe apontando os cômodos e as benfeitorias da casa, com tanto empenho e gosto como se fora mesma proprietária; mostrou-lhe o banheiro, os tanques para a lavagem de roupas, o coradouro, o cercado das galinhas e por último o jardim.
Colheu logo uma rosa e, por suas próprias mãos, enfiou-a na gola do fraque de Amâncio.
Em seguida atravessaram a horta.
Canteiros grandes cobertos de verdura, saturavam o ar de um cheiro fresco de hortaliças. As alfaces brilhavam ao sol dourado de julho. Mais adiante havia um sombrejar melancólico e delicioso de árvores grandes; era a chácara; viam-se no ar as folhas largas e recortadas da fruta-pão faiscarem, como lâminas de metal brunido; ao passo que as bojudas mangueiras se debruçavam sobre a terra numa concentração pesada de sono.
Os dois prosseguiram de braço dado por entre o murmurejar tristonho daquelas sombras. E lentamente, e sem trocarem uma palavra, se deixaram ir até a espalda de um muro que servia de limite à chácara.
Havia um grosseiro banco de pau meio escondido entre bambus e trepadeiras. Assentaram-se. Um fio d’água corria da montanha e os passarinhos remigiavam trilando na mole embalsamada das estevas.
Amâncio passou um braço na cintura de Lúcia e chamou-lhe o corpo para junto do seu. Ela deixou-se arrebatar, bambeando a cabeça, num encontro apaixonado de lábios.
O rapaz parecia louco no seu desejo.
- Não! Isso não! dizia a outra. - Mostre que é um homem de espírito! Não se queira confundir com esses materialões que há por aí!
Ele opunha as razões que lhe vinham à cabeça para justificar os seus rogos: "Lúcia que não quisesse desvirtuar o amor, o verdadeiro amor, fazendo de um sentimento real e fecundo uma pieguice romântica e desenxabida." Lembrou-lhe o que ela própria dissera, quando pela primeira vez estiveram juntos.
E, num esfolegar febril e ruidoso, suplicava-lhe um pouco de compaixão, ao menos; que não o torturasse daquele modo; que não o obrigasse a sucumbir ao desespero de sua paixão!
Lúcia não atendeu. - Ele que deixasse a casa de Mme. Brizard e viesse tomar um cômodo ali na Tijuca. Assim... bem! Mas, naquele momento e naquelas circunstâncias... Não! não! e não!
Apesar da enérgica recusa, Amâncio insistia sempre.
- Não seja teimoso, repreendeu ela, arrancando-lhe as saias da mão. - Oh!
Ele, porém, não se desenganava e até já recorria à violência.
- Pior! disse a mulher, notando que o estudante lhe desgrenhava os cabelos e machucava-lhe as roupas. - Já não vou gostando muito da brincadeira!
E, a um movimento desabrido do rapaz:
- Ora pílulas! Isso agora também já é estupidez!
Amâncio ao seu lado bufava, imóvel, emitindo sobre ela olhares de cólera.
- O senhor faz-se desentendido! exclamou Lúcia, afinal, endireitando o penteado e armando as lunetas. - Há muito devia compreender que nada alcançará de mim, enquanto eu estiver com meu marido!
- Marido o quê! desmentiu o provinciano, com a voz sufocada. - Tão marido como eu!
Lúcia olhou para ele, apertando os olhos.
É isso! sustentou aquele. - Sei de tudo! A senhora quer fazer de mim um tolo, pois fique sabendo que não faz! Trate de arranjar outro, porque comigo perde o seu tempo!
Ela o mediu de alto a baixo, levantou desdenhosamente o lábio superior, e afastou-se com um grande ar emproado e senhoril, murmurando entredentes:
- Ordinário!
Amâncio calcou o chapéu sobre os olhos, e, de cabeça baixa e passos lentos, retomou pelo caminho andando, a fustigar com a bengala as ervículas da estrada. Saiu pelo portão da chácara.
Já na rua, sacudia os ombros e disse a meia voz:
- Que a leve o diabo!
XV
O rapaz acordou muito bem disposto no outro dia, estava, ou pelo menos parecia, restabelecido completamente. Os ares tonificantes de Santa Teresa produziram-lhe efeitos miraculosos.
- Até que enfim podia mandar ao diabo os xaropes e as tisanas que, de tempos a essa parte, lhe melancolizavam a vida e relaxavam o estômago. E, ainda metido entre lençóis, na matinal preguiça das sete e meia, dispunha-se a filosofar sobre o ridículo episódio da véspera, quando um leve rumor na porta do quarto lhe desviou o curso das idéias. Era a menina que trazia o café.
Viu-lhe a pálida mãozinha medrosamente surdir por entre a fisga da porta mal cerrada, para depor no chão, como era de costume, a chávena de porcelana. Amâncio, porém, desta vez saltou da cama e, correndo de gatinhas, a empolgou nas suas.
A mãozinha quis fugir, ele não consentiu, e com ela veio um braço que as folhas da porta arremangavam.
Começou a beijá-lo sofregamente, desde a ponta dos dedos até os bíceps; enquanto Amélia, sempre escondida ia consentindo, toda ela arrepiada em cócegas.
- Um beijinho... pediu ele, mostrando o rosto.
- Logo!
- Com certeza?...
- Com certeza!
E a pequena desapareceu muito ligeira - tique, tique, tique, pela escada.
Pouco depois combinaram a primeira entrevista. Ela subiria ao sótão, logo que a casa estivesse completamente recolhida. Amâncio que a esperasse no escuro e com a porta do quarto apenas cerrada.
O rapaz não pôde ficar tranqüilo mais um instante.
As horas nunca lhe pareceram tão longas e as conversas tão intermináveis. Um sobressalto feliz perturbava-o todo, tirava-lhe o apetite e não lhe permitia um pensamento que não fosse cair aos pés de Amélia.
Por maior caiporismo, Dr. Tavares tinha essa noite uma visita que parecia disposta a não largá-lo. Era um velho de sua província muito falador de política, apaixonado pelas eleições, pelos conservadores, mas que, nem à mão de Deus Padre, pronunciava os rr e os ss e dizia: "Os partido liberá, os senado", e outras barbaridades.
- Quando se irá este cacete?... pensava Amâncio, trêmulo de impaciência.
E Tavares a puxar pelo demônio do homem, a fazer-lhe perguntas sobre perguntas e a despejar contra ele a sua retórica inexaurível.
Até o guarda-livros que às vezes passava dias e dias sem dar uma palavra, estava essa noite disposto a falar pelos cotovelos. Ainda pilharia o chá e, repimpado na cadeira, com um brilhante a luzir num dedo, o ar satisfeito, os punhos bem engomados, taramelava a respeito dos seus projetos de casamento. "Sim, que ele, havia coisa de ano e meio, estava para desposar uma linda menina e de educação esmeradíssima. Já há que tempos a pedira!... Só esperava que a casa, onde trabalhava desde os seus quinze anos, desse sociedade, como, aliás, havia já prometido. - Ah! Toda a sua ambição era fazer família! Quer vidinha melhor que a do casado?... o matrimônio era um complemento do homem... A gente enquanto moço não sentia a falta da esposa, mas depois... quando chegasse a velhice?... Aí é que seriam elas! Não! não podia admitir um eterno celibato!... A vida de solteiro tinha seus encantos, tinha, para que negar?... os espinhos, porém eram em maior número; se eram!...
E citava os casos.
Amâncio retirou-se da varanda, sufocado de raiva. Preferia esperar no quarto.
Deu doze horas. Amelinha pediu licença e também se recolheu. Mme. Brizard, à cabeceira da mesa, já bocejava, entretendo os dedos a fazer pílulas das migalhas de pão que ficaram do chá; o marido, ao lado dela, estudava mecânica racional.
Veio finalmente o copeiro levantar a mesa e buscar César para a cama. O guarda-livros apertou as mãos de todos e sumiu-se; o sujeito dos partido liberá, a despeito das insistências do amigo, despediu-se igualmente e, quando o advogado, que o fora acompanhar até o portão da chácara voltou à varanda, já não encontrou ninguém.
Em pouco a casa era toda silêncio e trevas. Então, Amelinha deixou o quarto sorrateiramente, tirou as botinas, apanhou as saias e galgou a escada do sótão.
Amâncio, que a esperava na porta, logo que a teve ao alcance da mão, puxou-a para dentro, e deu uma volta à fechadura.
Desde esse momento, a vida em casa de Mme. Brizard tornou-se para ele uma coisa muito agradável. Ninguém mostrava desconfiar, ao menos, de suas intimidades com Amélia, pelo seu lado parecia satisfeita com o estado das coisas.
Só uma ligeira circunstância covardemente o arreceava: é que a pequena não lhe exibira amor em quarta ou quinta edição, como dizia Paiva, mas em comprometedoras primícias, com todos os cruentos requisitos de uma estréia.
Fugiu o primeiro mês da lua-de-mel, sem o menor eclipse. Contudo, ele agora puxava um pouco mais pela bolsa: a família estava em crise; a pensão de Nini absorvia os proventos que se obtinham de Tavares e do guarda-livros; o casarão da Rua do Resende apenas conseguiria alugar em parte; os gêneros de primeira necessidade eram mais caros em Santa Teresa.
Mas que valia tudo isso posto em confronto aos gozos que lhe proporcionava a deliciosa rapariga?
Ela parecia viver exclusivamente para lhe dar carinhos e afagos. Era como se fora sua esposa; deixava tudo de mão para só cuidar do amante. - Ele estava em primeiro lugar! Agora a pequena lhe fazia a cama; levava-lhe ao quarto o moringue d’água, penteava-lhe os cabelos, e exigia que o rapaz lhe dissesse os passos que dava, por onde estivera, com quem falara e o dinheiro que gastara. Revistava-lhe conjugalmente as algibeiras, lia-lhe as cartas e, sempre desconfiada, cheirava-lhe as roupas.
Amâncio sorria de tais ciúmes, com o ar seguro de quem desfruta em paz uma felicidade legítima e abençoada por todos. Já não furtavam beijinhos assustados por detrás das portas; não roçavam os joelhos por debaixo da mesa, e não se serviam das mãos como instrumento de amor; guardavam-se para as liberdades da noite, para a independência do quarto. Na ocasião, porém, em que ele saía para as aulas ou à noite para o passeio, beijocavam-se, sempre, como dois bons casados.
Entretanto, as épocas de exame batiam à porta. Amâncio vivia em desassossego com os seus estudos tão mal apercebidos; mas Coqueiro dava-lhe coragem, ensinam-lhe como devia proceder, dizendo-lhe o que devia estudar de preferência, aconselhando-o a que não tivesse medo. "Amâncio que se apresentasse de cabeça erguida: o bom êxito nos exames dependia quase sempre do desembaraço mais ou menos atrevido do concorrente!" E citava exemplos: "Fulano, que apenas conhecia dois pontos de tal matéria, chimpara distinção, só porque era de um descaramento imperturbável; ao passo que sicrano, apesar de muito bem preparado, não conseguiria passar com a sua vozinha trêmula e o seu todo raquítico e assustado!"
Um novo acontecimento veio, porém, desviar Amâncio daquela preocupação: por telegrama de sua província, constou-lhe que o velho Vasconcelos morrera de beribéri fulminante.
Os pormenores chegaram no primeiro vapor: "Vasconcelos fora atacado como hoje e morrera como depois de amanhã. Ia pela rua, muito senhor de si, quando, de repente sentiu afrouxarem-se-lhe as pernas e teria desabado no chão, se dois homens que passavam não o socorressem prontamente.
Foi recolhido à primeira casa, que era felizmente de um amigo. Meia hora depois já lhe principiava a faltar a respiração: a moléstia subia, ameaçando-lhe o estômago. Fez-se uma junta de médicos; ficou resolvido que o doente devia seguir, sem perda de tempo, para qualquer parte, - Caxias, Rosário, mesmo Alcântara, a Vila do Paço, que fosse, contanto que saísse da cidade quanto antes, até aparecer um vapor que o levasse para mais longe.
"Partiu nesse mesmo dia, dentro de uma rede, com direção à Vila Paço. Mas o terrível beribéri subia sempre; os membros por onde ele atravessava iam ficando paralisados e frios como membros de defunto. A onda maldita galgara finalmente a caixa torácica, Vasconcelos não pôde respirar de todo e morreu."
Amélia, ao receber a inesperada notícia, rebentou num berreiro e tratou de cobrir-se de luto fechado.
O irmão também se vestiu de preto, fez cerrar as portas e as janelas de casa por sete dias e, durante esse tempo, andou tristonho e anojado.
* * *
Amâncio perturbou-se deveras com a morte do pai. Há bastante tempo mentalizava projetos de, em voltando à província, tratá-lo de modo tão carinhoso e tão amigo, que sua consciência, ficasse por uma vez, tranqüila a esse respeito. Havia no segredo de tal intenção o sabor inefável de um voto religioso. E seus planos, assim malogrados de repente, enchiam-lhe agora o coração de tristeza e as noites de sonhos tormentosos.
Mas Amelinha lá estava para o consolar, para lhe reprimir os gemidos com a polpa vermelha de seus lábios e espantar-lhe os negrumes do desgosto com a luz voluptuosa de seus olhos e com a doçura cristalina de suas palavras.
Veio Campos. Trataram longamente do "triste acontecimento": Amâncio queria dar um pulo ao Norte: a mãe com certeza precisava dele ao seu lado, quando mais não fosse para tratar do inventário.
O negociante já não compreendia assim: "Estavam a chegar os exames; Amâncio, se saísse da Corte naquele momento, perderia o ano; o melhor, por conseguinte, seria esperar pelas férias. Pois então! eram mais alguns dias de demora que não prejudicavam a ninguém!..."
Coqueiro pensava do mesmo modo. "Nem o colega encontraria alguém com um bocadinho de juízo que lhe aconselhasse uma semelhante viagem antes do ato. Era até loucura pensar nisso."
Cruzaram-se cartas entre o Rio de Janeiro e Maranhão. Amâncio foi considerado maior pelo Juiz de Órfãos podia receber o que lhe tocava na herança. Mas a firma liquidante ofereceu-lhe sociedade em comandita; ele aceitou, a conselho de Campos, e instituiu na província um advogado de confiança para lhe curar dos bens. Escolheu-se o Dr. Silveira, o dos cabelos pintados, aquele mesmo que, no dia do exame de português, se mostrara tão entusiasmado pelo rapaz.
Até que enfim estava Amâncio livre e senhor de sua bolsa; podia gastar à farta, sem sofrer daí em diante as peias da mesada. E não o amedrontava igualmente o risco de cair na penúria, porque ainda havia para reserva o que tinha a herdar da mãe e da avó.
Os carinhos e as solicitudes da família Coqueiro inflamaram-se, já se vê, com os últimos acontecimentos. O estudante era cada vez mais adulado e em compensação mais explorado. Agora, o irmão de Amélia não punha o menor escrúpulo em lhe aceitar os obséquios e a casa ia ficando a pouco e pouco às costas do provinciano.
Era sempre por intermédio de Amélia que ele sofria a cardadura. Hoje tratava-se do aluguel da casa, amanhã seria a conta do Eiras, depois a dos fornecedores; se entrava um barril de vinho para a despesa, ou um saco de feijão, se aparecia um novo aparelho de porcelana à mesa do almoço ou do jantar, Amâncio ficava à espera da fatura que, à noite, impreterivelmente, passava das mãos da rapariga para as suas.
Amelinha, essa então, já não procurava rodeios para lhe arrancar as coisas. Quando precisava de um vestido, de uma jóia, de um chapéu, dizia-lhe secamente: "Deixa-me tanto, que amanhã tenho de fazer compras."
E as despesas da casa recrudesciam, à proporção que minguavam os lucros. O guarda-livros despedira-se porque afinal chegara a época do seu casamento, e ninguém o substituiu; só ficou o advogado que deixaria por mês, quando muito, uns duzentos mil-réis.
Amâncio ia suportando a carga silenciosamente, certo de que não encontraria dificuldade em despejá-la, assim que a coisa lhe cheirasse mal.
Todavia, o dinheiro era já o único recurso de que dispunha para fazer calar a amante, quando esta lhe falava em casamento. Em tais ocasiões, a rapariga chorava quase sempre; dizia-se infeliz; queixava-se da sorte. "Que Amâncio fora a sua perdição! que ela cedera aos rogos dele na persuasão de que era amada e de que mais tarde seria sua esposa!"
- Ora, filha! Nós, antes de cairmos na asneira em que caímos, não tocamos uma só vez em casamento; E, se queres que te diga com franqueza, eu até nem supunha ser o primeiro com quem tivesses relações!...
Ela irritava-se ao ponto de ameaçá-lo com um escândalo. Amâncio que se não enganasse, pois que havia ainda um João Coqueiro sobre a terra! Ele que não caísse no descoco de querer desampará-la, porque então as coisas lhe sairiam mais atravessadas!
Estas rezingas terminavam sempre por uma nova exigência de Amélia. E já se não contentava com um chapéu ou com um par de botinas, queria vestidos de seda, jóias de valor e dinheiro para gastar.
Uma noite, Amâncio ficou abismado por lhe ouvir falar na compra de um chalé nas Laranjeiras.
- Sim! reforçou ela, ao perceber que o rapaz não tomava a sério suas palavras. - Despedia-se Tavares e ficaríamos à vontade por uma vez! Eu não estou satisfeita aqui!...
Ele tornou a sorrir. - Amélia com certeza estava gracejando...
Mas a rapariga jurou que não, recorrendo a todos os segredos de sua ternura. Afinal, vendo que o amante não cedia, zangou-se como de costume.
- Tu assim o queres; disse, arrancando-se dos braços dele - pois bem, tu assim o terás! Amanhã hás de ver o que sai nesta casa!
Amâncio encolheu os ombros.
- Não te importas?! Pois veremos quem tem razão!
E limpando os olhos:
- Ingrato! Porque sabe que a gente o estima, abusa deste modo! Tola fui eu em me deixar seduzir!...
- Eu não a seduzi! Ora essa!
- Até fez mais, replicou ela - desonrou-me!
- Pois desonrada ou seduzida, não tenho dinheiro para comprar casas!
Amélia saiu essa noite do quarto do estudante ameaçando fazer estourar a bomba no dia seguinte.
E, pela manhã, quando Amâncio, ao seguir para as aulas, lhe foi dar o beijo favorito, ela muito amuada, voltou o rosto, resmungando "que a deixasse".
O rapaz prometeu que "ia pensar" e à noite daria uma resposta.
Mas nessa noite, Amélia, pela primeira vez, depois do seu novo estado, não se apresentou às horas habituais no quarto do estudante.
Amâncio, sem perder as esperanças de a ver surgir de um momento para outro e precipitar-se-lhe nos braços, não conseguiria ficar tranqüilo. Aquele procedimento, vindo de quem vinha, o revoltava como a mais infame das ingratidões!
Ouviu dar três horas, quatro, cinco. Não se conteve, levantou-se, pisando forte, desceu à varanda e foi bater à porta de Amélia.
Nada.
Bateu mais rijo.
- Que é? perguntou ela asperamente.
- Preciso falar-lhe.
- Não são horas próprias para isso!
- Ouça! Quero dizer-lhe uma coisa...
- Não tenho negócios! Entenda-se com meu irmão!
Amâncio voltou ao quarto, desesperado. Não que o acovardassem as ameaças da rapariga; bem percebia que as suas relações com ela não eram em casa nenhum segredo e, além disso, desde que aceitavam o pagamento, - ora adeus! nada podiam dizer! mas apoquentavam-se com a falta que já lhe fazia o diabrete da pequena. Habituara-se a dormir ao calor perfumado daquele corpinho branco, ajeitara-se ao cômodo amor daquela mulherzinha nova e palpitante e, agora, não podia voltar, assim sem mais nem menos, às suas tristes noites desacompanhadas de outro tempo.
Acordou muito tarde no dia seguinte. Amélia, quando ele saiu do quarto, não lhe deu palavra; estava arrumando uma caixa de retalhos, e arrumando ficou. Mme. Brizard havia saído para ver Nini. - Coqueiro e os hóspedes achavam-se também na rua.
- Então a senhora não me quer falar? perguntou Amâncio, fitando-lhe as costas.
Ela interrompeu o que cantarolava e, sem se voltar, disse friamente:
- A culpa é sua...
E continuou a cantarejar, muito embebida nos seus retalhos de fazenda.
Aquele desdém, namorador e artístico, a tornava ainda mais desejável aos olhos do rapaz.
Parecia-lhe até mais bela esse dia; como se os seus encantos, intervindo na perrice, florejassem caprichosamente durante aquela noite de soledade.
Amâncio nunca lhe achou a pele tão fina, os dentes tão brancos, os olhos tão vivos e tão formosos. O pálido e ondulante pescoço da menina jamais lhe pareceu tão misterioso: a sua garganta, macia e doce, jamais o cativara tão despoticamente. Ele, enfim, nunca a sentira tão necessária, tão indispensável.
E as cenas venturosas dos seus primeiros dias de amor lhe perpassaram vertiginosamente diante dos olhos, derramando-lhe por todo o corpo um apetite brutal que lhe fugia por entre os dedos, como um vinho precioso que se derramava.
- Então a culpa é minha?... disse ele, afinal apalpando com a vista a carne esperta dos quadris e dos braços da amante.
- Pois você não vê, respondeu ela, voltando-se espevitada - que as coisas não podem continuar como até aqui?! É uma canseira insuportável! Quase que já não durmo! Preciso esperar de olho aberto que toda a casa se recolha e recolher-me ao quarto antes que o mais se levantem! O resultado é que não descanso; ando tresnoitada; estou enfraquecendo! Já tenho até uma dor do lado. Quem pode com esta vida?! Ah! você não sente, bem certo! porque muita vez o encontro a dormir, e dormindo o deixo quando saio! Mas eu?! se quero que não aconteça como outro dia (que nem sei como não deram pela coisa!) o remédio que tenho é ficar alerta e não deixar que o dia me surpreenda a dormir no seu quarto! Vê você?!
- Mas daí?... perguntou Amâncio, no fundo compenetrado de que "a pobre menina" não deixava de ter o seu bocadinho de razão.
- Daí... esclareceu Amélia - é que nessa tal casa de que lhe falei, e que está para se vender muito em conta, há, além dos cômodos necessários para Loló e Janjão dois quartos magníficos, com entradas independentes e comunicáveis entre si por uma pequena alcova. Ora, um dos quartos dá para a sala de visitas e o outro para a sala de jantar; no caso que arranjássemos o negócio, você ficaria com um e eu ficaria com o outro, e dessa forma acabavam-se os sustos e as canseiras; porque durante o dia abriam-se as do lado de fora e fechavam-se as de dentro, mas à noite praticava-se justamente o contrário, e ficávamos nós em completa liberdade! Compreende você agora?...
- Sim. Amâncio compreendia e até achava o plano muito bem lembrado, mas a questão é que não via necessidade de comprar a casa, era bastante alugá-la...
- Sim, sim! mas é que o dono não a aluga, quer vendê-la. E onde você encontra outra casa nessas condições?...
- Hei de passar por lá...
- Não. Vamos hoje mesmo, à tarde. Loló já prometeu que nos acompanha.
- Pois sim.
E Amâncio puxou Amélia pelo braço, para lhe dar um beijo.
- Deixe-me... rezingou ela, ainda com um restinho de arrufo. - Você só cuida de si e das suas comodidades... Egoísta!
- Não digas isso, meu bem!
- Pois não é assim?! Qual foi a vontade séria que você já me fez? É bastante que eu mostre gosto numa coisa, para você fazer justamente o contrário... Entretanto, eu, por sua causa, sacrifiquei tudo que possuía!
E começou a chorar, muito infeliz, a dizer que Amâncio tinha razão! - Ninguém lhe mandara ser tola! Ela nunca deveria ter-se entregado senão depois do casamento!
E as suas lágrimas enxugavam-se nos lábios dele.
E assim ficaram alguns minutos, até que Amélia de repente, se lhe tirou dos braços e, abrindo distância, declarou de longe em plena atração de seus encantos, que "não faria nenhum caso de Amâncio enquanto não possuísse o chalé."
Nessa mesma noite ficou assentado que o rapaz, em nome da amante, compraria a casa de Laranjeiras.
* * *
Com efeito, uma semana depois, tratava-se da escritura de compra. O negócio correu a galope, visto que a propriedade era de um pândego sequioso por dinheiro.
Podiam cuidar logo da nova mudança; Amélia, porém, não consentiu em tal, sem que se realizasse umas tantas benfeitorias que a "sua" casa reclamava; substituir, por exemplo, o papel da sala de visitas, que era de mau gosto; meter-lhe água, que não havia ,e fazer esteirar os aposentos destinados para si junto com seu homem.
Mas Amâncio não podia distrair tempo com essas coisas: andava muito absorvido pela idéia dos exames que se aproximavam.
Ultimamente, viera-lhe uma febre de formatura, queria a todo o custo "passar" no primeiro ano. - Também era só do que fazia questão, "passar no primeiro", porque quanto aos outros, tinha certeza de preparar-se melhor e com mais antecedência. Agora, lamentava o tempo perdido na preguiça e na moléstia, dava aos diabos os seus amores, e vivia numa dobadoura a arranjar empenhos e cartas de proteção. Agarrou-se ao Campos; agarrou-se àquele Dr. Freitinhas (do baile do Melo) que era unha com carne de um dos examinadores. E furou, e virou, e percorreu amigos desconhecidos, até se julgar "garantido". Então, pagou a segunda matrícula e entregou-se de olhos fechados ao destino. "Seria o que Deus quisesse."
Era, pois, Coqueiro quem dirigia as obras da casa da irmã. O metódico rapaz sempre tivera paixão por esse gênero de trabalho.
- Se fosse rico, afirmava ele - muito prédio havia de fazer só pelo gostinho de acompanhar as obras!
XVI
Chegou, finalmente, a véspera do amaldiçoado exame.
Que ansiedade! Que dia de angústias para o pobre Amâncio! E que noite, a sua! - Não descansou um segundo; apenas, já quase ao amanhecer, conseguir passar pelo sono; antes, porém, não dormisse, tais eram os pesadelos e bárbaros sonhos que o perseguiam.
Via-se entalado num enorme rosário de vértebras que se enroscava por ele, como uma cobra de ossos; grandes tíbias dançavam-lhe em derredor, atirando-lhe pancadas nas pernas; as fórmulas mais difíceis da química e da física individualizavam-se para o torturar com a sua presença; os examinadores surgiam-lhe terríveis, ríspidos, armados de palmatória, todos com aquela feia catadura do seu ex-professor de português no Maranhão.
Pelo incoerente prisma do sonho, o concurso acadêmico amesquinhava-se às ridículas proporções do exame de primeiras letras. Era a mesma salinha do mestre-escola, a mesma banca de paparaúba manchada de tinta, o mesmo fanhoso Sotero dos Reis presidindo a mesa. João Coqueiro, Paiva e Simões, vestidos de menino, fitavam o examinando com um petulante riso de escárnio. Amâncio sentia correr-lhe o suor por todo o corpo e agulhas visíveis penetrarem-no até a medula. O professor, transformado em juiz e ostentando as feições do falecido Vasconcelos, inquiria-o com asperezas de senhor; mas as suas perguntas, em vez de concernirem às matérias do ato, só se referiam à Amélia.
- Por que matou você a pobre menina?! bramia o pai cravando-lhe olhares de fogo: - Responda, seu canalha! responda! Ah! Pensa que ainda não sei de que você, para melhor a seduzir, lhe havia prometido casamento e jurado olhar sempre por ela, seu cachorro?!
Coqueiro, lá do canto, sacudia a cabeça afirmativamente e enviava a Amâncio caretas de vingança. Ao lado deste, o cadáver de Amélia fazia-se todo vermelho com o sangue que lhe golpejava de um dos seus seios rasgados de alto a baixo.
O réu queria responder, justificar-se, expor a verdade; eram, porém, baldados os seus esforços: não conseguia articular uma palavra; gelatinava-se-lhe a voz na garganta, empacando-lhe a fala.
- Bem! gritou o velho Vasconcelos à meia dúzia de soldados que escoltavam Amâncio. - Conduzam esse miserável ao cepo e cortem-lhe a cabeça!
O estudante atirou-se de joelhos, com as mãos postas, chorando, suplicando que o não o matassem. Mas os soldados apoderaram-se dele com violência e ataram-lhe os braços. o Juiz, Coqueiro, Simões, Paiva, sumiram de repente, soltando gargalhadas. Amâncio foi conduzido por um corredor muito escuro e apertado; os soldados, quando o viam vacilar, batiam-lhe no ombro com a coronha das espingardas. Chegou a um pátio lajeado e úmido, onde milhares de homens armados formavam alas; no centro, sobre um toro de madeira conspurcada de sangue, reluzia um manchado à sua espera; e, de joelhos, abraçado a um crucifixo, um padre velho, de longos cabelos brancos, engrolava latim.
Fizeram silêncio.
No meio das respirações abafadas, só se ouviam os passos trôpegos e o aflitivo resfolegar do condenado que, à ponta da baioneta, subia os degraus do cadafalso.
Veio o carrasco, despiu-lhe a camisa, tosou-lhe os cabelos, e empunhou o ferro.
Amâncio não se resolvia a entregar o pescoço, mas o velho Vasconcelos, que surgira por detrás dele, atirou-lhe um murro à nuca e fê-lo cair de bruços contra o cepo.
Então, para lhe abafar os gemidos, romperam todos os soldados num rufo estridente de tambores.
Amâncio sentiu o aço frio entrar-lhe na carne de toutiço, espipar o sangue, e o corpo, de um salto, arrojar-se às lajes.
Havia saltado, com efeito, mas da cama. E o despertador, que ficara de véspera com toda a corda para as seis da manhã, continuava o rufo penetrante dos tambores.
O estudante abriu os olhos e passou em sobressalto a mão pela testa; os dedos voltaram ensopados de suor.
Com a perceptibilidade das coisas foi aos poucos saindo daquele estado de excitação, mas voltando lentamente à taciturna agonia da véspera.
Vestiu-se quase sem consciência do que fazia: esqueceu-se até de escovar os dentes, porque, mal voltou a si, correu aos livros, sem aliás, conseguir firmar a atenção sobre coisa alguma.
E Amâncio tremia todo só com a idéia de sua inabilidade. À medida que as horas se esgotavam e o momento fatal se lhe antepunha, um langor covarde e mulheril crescia dentro dele, produzindo-lhe arrepios que principiavam na ponta dos pés e iam-se estendendo pela espinha dorsal, até lhe interessar a cabeça, depois de percorrer as regiões abdominais.
Mas embaixo, na varanda, em presença de Amélia e Mme. Brizard, fazia-se forte, a despeito da palidez que lhe alterava as feições. Nem de leve falou nos sonhos dessa noite, e Coqueiro, a título de metê-lo em brios, contou várias anedotas de examinandos ridículos.
Os dois tomaram café e por fim saíram. O trajeto de casa à escola foi um martírio para Amâncio, afigurava-se-lhe, como no sonho, que se dirigia ao patíbulo.
Chegou às dez horas. Alguns companheiros de ato já lá estacionavam em magotes de quatro e cinco pelos corredores ou à porta da secretaria; fumavam-se cigarros consecutivos, discreteavam-se os assuntos da ocasião. Amâncio cumprimentou os conhecidos, parando aqui e ali, falando sobre os pontos do exame; - qual preferia que saísse, em qual se presumia menos fraco e capaz de fazer figura.
Agora sim, estava mais animado; a presença dos colegas o robustecia com um vago espírito de coletividade. Sentia-se mais forte e resoluto ao lado dos companheiros de perigo, como se a vitória dependesse do número de combatentes.
Entretanto, faziam-se horas. Os examinadores estavam já reunidos na sala de exames, em torno da sua mesa forrada de pano verde. Amâncio lobrigava-os pela frincha da porta entreaberta e ouvia-lhes o murmurar descuidoso da conversa, intercalada de risotas e baforadas de charuto.
À vista daqueles homens resfriaram-lhe de novo as mãos e voltaram-lhe os calafrios do terror, algum resto de confiança, que ainda teria em si, evaporou-se de todo.
E, para não sucumbir, procurava acreditar na eficácia dos empenhos que arranjara; seu espírito, como o náufrago que braceja na agonia da morte, já não escolhia os pontos a que se agarrava; tudo servia naqueles apuros, tudo era um pretexto de esperança; mas a consciência da verdadeira situação vinha meter-se de permeio, arrancando, uma por uma, todas as tábuas de salvação.
E Amâncio arquejava, desorientado, perdido.
- Que diabo viera fazer ali?! Para que se apresentara? por que não se guardou para o ano seguinte ou quando menos para março? Antes não tivesse pago a segunda matrícula! Oh! se o arrependimento salvasse!...
E, à proporção que se avizinhava o momento supremo, mais e mais imprudente lhe parecia a sua temeridade.
- Naquela ocasião, pensava ele - bem podia estar na província, à testa dos seus negócios, ao lado de sua querida mãe, passeando, rindo, gozando, como nos outros tempos!... Era rico, era já tão estimado antes da academia, para que então sofrer semelhantes torturas, passar por aqueles maus quartos de hora, que ali estava curtindo?...
E vinham-lhe venetas de fugir, abandonar tudo aquilo, sem dar satisfações a ninguém, correr à casa do Campos, encher-se de dinheiro e arribar para a Europa, para o inferno! contanto que se livrasse da obrigação de expor uma ciência que não tinha, escrever idéias de que não dispunha!
Mas o bedel havia surgido e principiava a "chamada", e, a cada nome, recitado pausadamente, o seu olhar mórbido, de funcionário público no cumprimento de um velho dever enfadonho, consultava a multidão de estudantes, que em sussurros se apinhava pelo esvaziamento das portas, empurrando-se una aos outros, impacientes, curiosos, o pescoço espichado, a boca aberta, o calcanhar suspenso.
- Amâncio da Silva Bastos e Vasconcelos, disse aquele arrastando a voz.
Amâncio sentiu uma pontada no coração e tartamudeou:
- Presente.
Os companheiros, que lhe ficavam por diante, arredaram-se logo, dando-lhe passagem, e ele foi ocupar uma das banquinhas que havia na sala.
A chamada ainda durou algum tempo, porque Amâncio era dos primeiros; afinal, o bedel mastigou o último nome; fechou-se a porta da sala; e um silêncio formalista espalhou-se entre a turma dos estudantes e o grupo dos examinadores.
O presidente da mesa tomou a lista dos examinandos, arranjou os óculos, tossicou e, com um bocejo, chamou pelo que estava em primeiro lugar.
Um rapazote louro, de buço, ergueu-se e foi ter com ele. O presidente, com um segundo bocejo e um gesto de cabeça, ordenou-lhe que tomasse um dos pontos da urna.
Amâncio ofegava. - Ia decretar-se o ponto!
- Qual seria?... E se, por caiporismo, fosse justamente um dos mais crus?
E o sangue trepava-lhe à cabeça, pondo-lhe latejos nas fontes.
O rapazote louro meteu enfim a mão na urna e tirou com as ponta dos dedos trêmulos uma pequena torcida de papel, que passou ao presidente.
Este desenrolou-a e leu: "Hidrogênio".
Amâncio respirou: o ponto não podia ser melhor para ele do que era! talvez fosse até entre todos o menos mal sabido; ainda essa manhã lhe passara uma vista de olhos. Contudo, uma vez imposto o Hidrogênio, quis lhe parecer vagamente que havia outros pontos preferíveis.
Estava, porém, mais tranqüilo, que era o principal; já quase nada lhe tremia a mão ao receber das do bedel uma folha de papel almaço, rubricada pelos lentes, das que ia aquele distribuindo por todas as banquinhas dos examinandos.
- Ali, naqueles miseráveis dois vinténs de papel, tinha ele de determinar o seu futuro, a sua posição na sociedade, talvez a própria vida de sua mãe, dizendo o que sabia a respeito do tal Hidrogênio!...
Experimentou a pena, endireitou-se na cadeira, e escreveu, caprichando na letra e procurando obter estilo.
A areia da ampulheta esgotava-se defronte da calva e dos bocejos do senhor presidente. Correu meia hora; Amâncio ergueu-se afinal, entregou a sua prova e saiu da sala, a esfregar, muito preocupado, os dedos da mão direita contra a palma da esquerda.
À porta, mal acendera sofregamente o cigarro, contava já aos amigos o que havia exposto pouco mais ou menos. - Ah! com certeza pilhava uma - nota boa! - Não era por querer falar, mas a sua prova saíra limpa. "Assim não fosse o ponto tão ingrato!..."
E ficaria a prosar sobre o caso, se Coqueiro, aguilhoado pela ausência do almoço, não o arrancasse dali.
A nota foi boa, efetivamente.
Soube-o Amâncio no dia seguinte, logo que correu à secretaria. Não contava, porém, ficar tranqüilo, senão depois do resultado de sua prova oral.
Novos sobressaltos foram se agravando durante os dias que era preciso esperar. Voltavam-lhe as aflições; no fim de algum tempo já não podia comer, não podia ligar duas idéias sobre qualquer coisa e não conseguia repousar duas horas seguidas. Ficou ainda mais desnorteado que da primeira vez.
Amelinha, então, o estimulava com as suas garrulices de pomba que já fez ninho. Puxava por ele, tentando arrancá-lo daquele estado, mas não conseguia despertar-lhe um só dos antigos momentos de bom humor, nem lhe merecer uma de suas primitivas carícias.
O rapaz andava tonto, cheio de pressentimentos e de sustos. Tornou-se até supersticioso. - Não podia ver entrar no quarto uma borboleta de cor mais escura; não podia suportar o uivar dos cães, nem queria que a amante prognosticasse "um bom resultado nos exames".
- É melhor não falar!... dizia ele, muito esmalmado.
Mas que prazer o seu voltar pronto da escola! Jamais tivera um contentamento tão agudo. Ria sem motivo, sentia ímpetos de abraçar a toda gente, pulava, cantava, parecia doido.
Soubera do resultado no mesmo dia da prova oral, por intermédio de um dos professores. - Saíra aprovado plenamente.
Vencera!
Colegas o acompanharam até a casa. Lá ia Paiva, sempre com o seu olhinho irrequieto e mexeriqueiro, o seu todo enfrenesiado e farto "desta porcaria de mundo". Lá ia o triste Salustiano Simões, encasmurrado no seu ar incrédulo e bamba, a mascar o cigarro, a aba do chapéu encostada à gola sebosa do fraque.
Abriram-se garrafas de champanha; fizeram-se brindes. João Coqueiro desmanchava-se em sorrisos, como se partilhasse diretamente de todas aquelas manifestações.
Foi muito elogiado o exame de Amâncio, tocaram-se os copos, entre fervorosas palavras de animação: falou-se em "filhos diletos da ciência", em "liberdade", em "geração nova", em "mineiros do progresso".
Todavia, Amâncio em ar feliz e pretensioso, confessava o pouco que estudara e gabava-se de sua fortuna. - Podia dar a palavra de honra em como mal havia tocado nos livros durante o ano. - Coqueiro e a família estavam ali, que dissessem!...
E bazofiava a respeito de sua presença de espírito, particularizando circunstâncias comprobativas de uma sagacidade a toda a prova.
- Cá o menino não se aperta! dizia ele, muito satisfeito consigo.
Expediu-se um telegrama para o Maranhão, dando notícia do grande "acontecimento". Simões e Paiva ficaram para jantar. Já estavam todos à mesa, quando apareceu o copeiro com uma carta que um portuguesito acabava de trazer.
Era de Campos. O bom negociante queria festejar o êxito feliz do jovem acadêmico - com "uma pequena reunião familiar. Pena era que o Dr. Amâncio estivesse de luto".
"Não há festa", explanava a carta, "apenas se reúnem alguns amigos para lhe beber à saúde; e o doutor bem pode trazer em sua companhia mais alguns".
Amâncio declarou logo que não dispensava Simões e Paiva Rocha e exigiu que o Coqueiro levasse consigo a família.
Pois iriam, iriam todos, até César. Mas o festejado teve de franquear o seu guarda-roupa àqueles dois colegas que não queriam apresentar-se mal amanhados em uma casa, onde entravam pela primeira vez.
Coqueiro, em particular, exprobrou-lhe essa franqueza:
- Foge da boêmia!... disse-lhe, no seu diapasão de homem sério. - Foge da boêmia rapaz! Esses tipos não merecem que se lhes faça a menor coisa!... Metem os pés - sempre! Já os conheço; não seria eu quem os convidaria para a casa de ninguém! É gentinha que só está habituada a cafés e botequins, não respeitam família! Para eles as mulheres são todas iguais!...
Amâncio sorriu.
- Ora Deus queria que não tenhamos de nos arrepender!... acrescentou o outro. - E, quanto àquela roupa, podes rezar-lhe por alma... o que ali cai, fica!
O provinciano afastou-se sem responder e lamentando interiormente que, logo nessa tarde, não estivesse em casa o eloqüente Dr. Tavares, que seria uma excelente perna dos brindes da sobremesa.
Mandarem-se vir dois carros. Num iria Coqueiro mais a família e no outro Amâncio com os dois amigos.
Partiram às oito horas, alegremente, num alvoroço gárrulo de festa. Mme. Brizard dera toda força à sua elegância: atirou-se ao decote, pôs a pedraria ainda do tempo do primeiro marido, e exibiu aquele rico pescoço, "que ela não trocava pelo de ninguém!"
Amelinha estreou um belo vestido de escumilha azul que lhe dera o amante. No seu colo, cor de camélia fanada, assentavam muito bem as pérolas e os rubis; seus braços, levemente dourados de penugem, sabiam, no meio da confusão caprichosa das rendas valencianas, fazer tilintar com graça os braceletes que se enroscavam nas compridas e transparentes luvas de retrós.
A cunhada, ao vê-la sair do quarto, dissera:
- Não parece uma brasileira!... Tão linda está!
* * *
Foram recebidos com transportes de júbilo por toda a família do negociante. Campos entregou a casa ao festejado, "que a este competia, naquela noite, obsequiar às pessoas presentes; fazer as honras da copa e da mesa; promover quadrilhas e prender as moças até pela manhã. Era o dono da festa, que se arranjasse!"
Amâncio tomou posse do cargo, sem caber em si de contente. Muito o sensibilizava tudo aquilo que, de qualquer modo, lhe pudesse afagar o amor-próprio.
E em suas mãos a festa tomou um caráter assustador: o pianista não tinha tempo para fumar um cigarro; os convidados eram constrangidos a beber nos intervalos da dança e a dançar nos intervalos das libações. Paiva Rocha e Salustiano, a despeito de todas as suas garantias de filósofos, intransigentes e péssimos dançadores, tiveram de entrar, por mais de uma vez, nas intermináveis contradanças.
Ao inverso do que pressagiara Coqueiro a respeito destes dois, tanto um como o outro se houveram admiravelmente. Ninguém melhor que eles para respeitar senhoras; um espesso acanhamento os encascava e tolhia, que nem a concha ao molusco. Salustiano, principalmente, estava mais tenro e inofensivo que uma criança; na quadrilha, mal ousava erguer os olhos para a sua dama e, querendo ser muito delicado, apenas lograva, com os exageros da cortesia, trair a sua nenhuma freqüência nas salas.
Para os intimidar bastava a cerimoniosa presença de senhoras de boa sociedade. Aqueles dois pândegos, tão céticos em teoria a respeito da mulher, ali, governados pelo meio, eram os homens mais tolerantes deste mundo; seriam capazes de defender a existência de Deus ou do diabo, se elas o entendessem. Fato é que o dono da casa gostou deles em extremo e pediu-lhes que aparecessem aos domingos, uma vez por outra, para jantar.
A festa correu sempre animada até as três horas da manhã, quando Amâncio convidou as senhoras a tomarem lugar à mesa. Ao desrolhar do champanhe ergueu-se este resolutamente e exigiu que o acompanhassem num brinde.
Abstiveram-se da bulha, e o estudante grupou em torno do nome inteiro de Campos todo o velho arsenal de retórica aplicável à situação. Em substância nada afirmou, mas a sua palavra sonora e cheia; as frases gorgolhavam-lhe dos lábios com essa verbosidade oca e retumbante que se observa nos filhos do Norte do Brasil, e que, aliás tem valido a muitos posição eminente na política. Aquela voz, estalada e aberta, ferindo as vogais, tinha um sabor muito picante de ironia, vibrava no ar como uma flecha selvagem e feria os tímpanos como um insulto em verso.
As damas interessaram-se pelo discurso e alguns homens o ouviram sem pestanejar. E todos eram de acordo que Amâncio estava talhado para o Direito e que havia de fazer "uma brilhante figura", quer na advocacia, quer na política, se por acaso abraçasse uma dessas carreiras.
- É rapaz de talento!... diziam já as senhoras cochichando.
- A mim comoveu tanto o demônio do moço, que chorei!... segredou uma quarentona de chinó, que passava entre os conhecidos por mulher de maus bofes.
E principiaram a olhar com certa submissão para o esperançoso Amâncio.
E, com efeito, o seu tipo nervoso e moreno de nortista, o seu modo sem-cerimônia de abrir muito a boca, mostrando num gesto de pasmo a dentadura, o desembaraço de sua gesticulação, sempre que entornava para dentro um pouco mais de vinho, e principalmente o metal daquela voz enfática e encrespada pelo tal sotaque da província; tudo isso, sem dúvida alguma, agravava depois de uma boa ceia, quando cada um não exige de ninguém senão que lhe deixe tomar em paz o seu café e lhe permita acender o seu charuto.
O caso é que Amâncio se converteu num espécie de presidente de mesa. Era a ele que se dirigiam os que propunham novos brindes; era para ele que mais se voltavam durante o discurso, e, tal e qual no jantar de seu pai por ocasião do célebre exame de primeiras letras, ainda era ele o alvo das melhores felicitações; com a diferença de que, neste agora, em vez de consultar de instante a instante o famoso relógio alcançado naquele dia, o que Amâncio consultava eram os olhos de Hortênsia, nele igualmente presos, mas por uma cadeia de outra espécie.
E, ainda como na primeira festa, o estudante abusou um pouco dos licores; mas, agora, em vez de pegar no sono, deu-lhe a bebedeira para se abrir às francas com a dona da casa, logo que a pilhou sozinha no terraço, ao fundo do segundo andar.
Hortênsia não se indignou com isso, mas também não se mostrou satisfeita; não repeliu com energia as palavras do sedutor, mas não se pode dizer que as acolhesse de boa cara; não deu, enfim, os beijos que ele pedia, mas por outro lado não retirou a mão que o rapaz agarrara entre as suas.
- Eu te adoro, meu amor, minha vida! dizia-lhe o velhaco, cheirando-lhe os grossos braços revestidos de filó. - Não te disse há mais tempo por falta de coragem, juro-te, porém, que é verdade! Amo-te, minha Hortênsia, amo-te com todo o entusiasmo, com toda a paixão de que sou capaz.
Ela o ouvia em silêncio, a pensar, os olhos ferrados a um ponto, o ar todo caído e acabrunhado como por uma espécie de desgosto; não se mexia, apenas, quando Amâncio teimava muito em querer beijá-la, desviava o corpo, sem voltar a cabeça.
- Mas, então?... perguntou ele.
- Então, o que?... fez o outro como interrompendo um longo pensamento.
- Não aceita o meu amor?...
- Não, decerto, não posso aceitar semelhante coisa!
- Por que, minha santa?...
- Não tenho esse direito; conheço os meus deveres e a minha responsabilidade. O mais que lhe posso dar é uma afeição de irmã, de amiga, uma afeição sagrada e pura!
Amâncio declarou que pensava desse modo justamente, mas agora queria um beijo, um só! o primeiro e último! - Nada mais sagrado e puro do que um beijo!...
- Nunca! disse ela, fugindo com o rosto.
Ele a tomou à força e a senhora ficou ressentida, chegou a ter um gesto de impaciência e teria fugido, se o estudante não a segurasse pela cintura.
- Solte-me!
- Perdoa, perdoa, meu amor! segredava ele, quase ajoelhado. - Bem quisera ser para contigo o mais respeitoso dos homens, mas não me pude conter, não me pude dominar... Perdoa!
- E jura que, de hoje em diante, não cairá noutra?...
- Juro! juro! mas não te revoltes contra mim!...
- E que nunca mais me faltará ao respeito?...
Amâncio fez um gesto afirmativo, no qual seus olhos, agora mais estrábicos sob a influência do vinho e do desejo, luziam suplicantes, como os olhos de um cão que tem fome.
- Pois bem, murmurou ela, meio compadecida. - Vá lá por esta vez! Está perdoado, mais fique prevenido de que, se repetir a graça, não respondo pelas conseqüências.
Amâncio ia fazer novos protestos, quando sentiu que alguém se aproximava; ergueram-se ambos, instintivamente, e, fugindo ao rumor, seguiram de braço dado para a sala.
Tocava-se uma valsa. Ele, sem consultar Hortênsia, enlaçou-lhe a cintura, e puseram-se os dois a rodar, a rodar, tão certos e tão leves, que prendiam a atenção de quantos lá se achavam. E Coqueiro, encostado à ombreira de uma porta, acompanhava-os com um sorriso de felicidade, no qual havia alguma coisa de orgulho de pai que se revê num filho prodigioso.
Mas o querido estudante, para o fim da festa, já não parecia o mesmo: as bebidas e o cansaço davam-lhe um ar grosseiro e desalinhado; já se lhe não via o colarinho, nem os punhos; a roupa empastava-lhe com o suor e a cabeleira desguedelhava-se sobre a testa. E vinham-lhe então pilhérias de mau gosto; tratava Amelinha quase licenciosamente e regamboleava as pernas e os braços no meio da quadrilha, como se estivesse num baile público. Já não dava excelência a ninguém e queria, por força, que Simões e Paiva, depois da festa, o acompanhassem a um passeio ao alto da Tijuca.
- Que diabo! rosnava ele, cuspilhando para os lados. - Ou bem que a gente se mete na pândega ou bem que não se mete!
Só se retiraram ao despontar da aurora. César, que adormecera desde as onze horas da noite, ficou para passar o dia com a família de Campos. Amâncio pôs um carro à disposição de Paiva e de Simões e seguiu no outro com as duas senhoras e Coqueiro.
Este toscanejava durante a viagem, ao lado da mulher que sumia na abundância de uma formidável capa de lã; enquanto que Amâncio, a charutar derreado para um canto da carruagem, adormecia com a mão direita esquecida entre as de Amélia.
XVII
Recebeu no dia seguinte uma carta de Ângela; era a segunda que ela escrevia ao filho depois da morte do marido.
Já da primeira lhe suplicava que a fosse ver, logo ao entrar das férias, pois agora estava muito só e acabrunhada de desgostos; além disso, os seus padecimentos se agravavam. Amâncio que se demorasse; a infeliz tinha para si que a presença do filho substituiria com vantagem todos os remédios da botica.
Na segunda carta ainda se mostrava mais impaciente e mais aflita pelo rapaz. Falava até no receio de morrer sem abraçá-lo, caso Amâncio não se apressasse a ir em seu socorro. - A presença dele tornava-se precisa, mesmo com referências aos interesses do inventário; porquanto D. Ângela começava a desconfiar de Silveira, que não fazia outra coisa senão lhe pedir dinheiro e mais dinheiro para as tais custas. - Enfim, por todos os motivos, era urgente que Amâncio desse, quanto antes, um pulo ao Maranhão.
Amelinha, que já não ficara muito tranqüila com a primeira carta, assustou-se deveras quando o amante lhe mostrou a segunda.
- Eu não consinto nessa viagem! disse-lhe terminantemente.
- Mas não vês que se trata de um caso urgente, que se trata de defender meus interesses, que se trata de salvar a vida de minha mãe?... Ou queres tu que eu a mate, hein?...
Amélia não tinha nada que ver com isso!... A sua questão resumia-se no seguinte: "Dera-se a um homem porque o amava e porque se supunha amada por ele; esse homem a possuiu como bem quis, gozou-a como muito bem entendeu , e, um belo dia, talvez por já estar farto, resolvia meter-lhe os pés e pôr-se ao fresco!"... Boas! Não havia de ser com ela! Amâncio que não caísse em semelhante asneira, porque então veria o bom e o bonito! Quem o afiançava era "a Amelinha dos camarões"!
- Mas, filha, que queres tu que eu faça?... Bem vês que esta viagem ao Norte é inevitável!
- Pois então vamos juntos... Casa-te primeiro comigo!
A idéia foi tão intempestiva que o estudante respondeu com uma gargalhada. Mas o demônio da rapariga, tornando às boas de repente, saltou-lhe ao pescoço e disse-lhe, entre beijos:
- E por que não?... Por que não te casas logo comigo, meu amor?...
- Porque era impossível!... explica ele. "Casar não é casaca!" Era ainda muito cedo para cuidar nisso!... Primeiro tinha de formar-se, praticar algum tempo em Paris, e depois então... sim senhor, não dizia o contrário e havia de ser o mais empenhado em que a coisa se realizasse! Mas por ora... "Deus nos acuda!" era até loucura pensar em semelhante história!...
Amélia fez-se logo de mau humor; vieram os remoques e os reviretes do costume; houve palavras duras de parte a parte e, afinal, como estabelecido imposto de reconciliação, ficou assentado que Amâncio arranjaria mobília nova para o chalezinho das Laranjeiras.
E o rapaz lá foi comprar os trastes.
Dois dias depois, realizava-se a terceira mudança. Dr. Tavares, o último hóspede da famigerada Mme. Brizard, pagou a sua última conta e recebeu da francesa um abraço de despedida.
- Ah! suspirou ela. - Até que enfim se podia descansar um pouco! Já não era sem tempo!
O chalezinho de Amélia ficou muito catita: parecia um ninho de noivos. Estava a pedir lua-de-mel!
A cachorra da pequena tinha gosto. Exigiu tapetes, espelhos, cortinas de chita indiana para a sala de jantar, cortinas de renda para a sala de visitas; quis moldura dourada nos quadros, estatuetas pelas paredes; não dispensou nos aparadores e nos consolos jarras de porcelana das mais à moda; jardineiras aqui e ali, vasos caprichosos com begônias e tinhorões sobre a mesa de jantar; cestinhas artísticas, com parasitas, para dependurar nas janelas; e ainda fez substituir na cozinha, nos arranjos da comida e no arranjo dos quartos, tudo aquilo que lhe parecia em condições de reforma.
E só com essas coisas e só com a satisfação de tanta exigência é que Amâncio conseguia paliar as revoltas da amante. O desgraçado já não tinha ânimo de contratariá-la, porque bem conhecia o preço das resingas e, sem achar meio de reagir, via claramente que as reconciliações se tornavam mais caras de dia para dia.
* * *
Entretanto, depois da mudança, o amor dos dois tomou um caráter mais digno e decente. Já não era necessário que a rapariga andasse à noite em ponta de pés pela casa, tateando a escuridão para ir ter com o seu homem. Agora dormiam à vontade, seguros de sua independência, com as portas bem fechadas por dentro.
E só se despregavam, do lado um do outro, quando tinham que abandonar o quarto. Então, cada um se servia da porta competente: Amélia tomava a da varanda e Amâncio a da sala de visitas!
Não podiam desejar melhor!
Melhor, bem certo, para o descanso do corpo e repouso do espírito; não, porém, para garantia do amor, essa estranha função psicológica que só alimenta as suas raízes nos sobressaltos e no perigo. Tamanha segurança e tamanha liberdade de ação deviam fatalmente levantar a ponta de tédio, cujo novelo existe, mais ou menos escondido, no fundo de todas as coisas.
Não vinha longe a saciedade; Amâncio já lhe ouvia o bocejar. Iam-se-lhe pouco a pouco amortecendo os primitivos arrebatamentos do desejo; os dois tinham-se já frouxamente, sem lumes de entusiasmo, sem os esforçadores auxílios da imaginação. Assuntos práticos, positivos agora se lhes intercalavam nas carícias, puxando-os grosseiramente à calma realidade da vida.
Amelinha já lhe não surgia no quarto com aquele trêfego ruçar-se de pomba assustada, o que lhe enchia as feições e os movimentos de uma graça tão maliciosa e provocadora; agora se apresentava com um ar muito tranqüilo, de casada, a arrastar os chinelos, o roupão desabotoado e solto num farto abandono de alcova.
Despia-se defronte de Amâncio, coçando negligentemente as partes do corpo que estiveram comprimidas durante o dia, como a cinta, o lugar das ligas e dos canos das botinas. Despenteava-se ali mesmo, ao lado da cama do rapaz, sacundindo o cabelo com ambas as mãos, num movimento de traços erguidos que lhe mostrava a grenha das axilas; ele, também, parecia não dar por isso, era todo do livro que lia à luz de uma vela pousada no criado-mudo.
E os assuntos de suas conversas materializavam-se completamente. Já só discutiam interesses práticos, arranjos de vida e conveniências domésticas: "Era preciso arranjar um jardineiro, que viesse uma vez por semana cuidar das plantas e limpar os tanques. - Era preciso chamar o homem do gás para consertar tal candeeiro que não dava boa luz. - Era conveniente alugar uma criada que soubesse lavar; porque a ladra da lavadeira trocava as camisas e encardia a roupa, que fazia lástima!"
E, às vezes, na intimidade dessas conversas, criticavam os atos de Mme. Brizard e de Coqueiro; censuravam-lhe umas tantas coisas, com, por exemplo: a negligência destes para com César. "O pequeno ia por um tal caminho, que, se não abrissem os olhos, havia de amargar mais tarde! - Que diabo custava ao Janjão arranjá-lo aí em qualquer casa de comércio ou, pelo menos, fazê-lo aprender um ofício?... Em casa mesmo já lhe podiam ter metido nas unhas a carta do ABC e já lhe podiam ter ensinado alguma coisa... Mas Loló não se queria incomodar! E senão, vissem o que se passava a respeito de Nini; outra fosse a boa da mãe, que a pobre rapariga não levaria semanas e semanas lá na casa de saúde, sem ter uma pessoa que olhasse por ela."
Eram sempre deste teor os motivos de sua conversa. Amélia, não obstante, fazia-lhe muito ligada aos menores interesses do amigo: queria saber o que ele gastava por fora, com quem estivera; reprovava-lhe certas relações, certas companhias "que não punham ninguém pra diante", e aconselhava-o a que se não descuidasse de outras que lhe podiam ainda vir a servir; pregava-lhe sermões a respeito de economias. "O mundo estava cheio de espertos: ele que desconfiasse de todos; cada um só procurava chamar a brasa para a sua sardinha!" Queria estar a par de como iam os negócios do amante na província. "Se o dinheiro ficara em boas mãos; se não havia risco de uma quebra ou de alguma ladroeira." E muito egoísta, muito mulher, muito agarrada ao que lhe pertencia, desde Amâncio até ao pó de suas gavetas, fazia justamente como fazem os sócios comerciais que, parecendo tratar dos interesses abstratos de uma firma, estão mas é tratando dos próprios interesses.
Outras vezes boquejavam sobre os conhecidos, sobre as pessoas de amizade. Uma noite em que, durante o serão da varanda, se conversou muito a respeito de Hortênsia, Amélia, já no quarto, em fralda, com um joelho dobrado em cima da cama, enquanto tirava grampos da cabeça e os arremessava para o velador, disse, como se continuasse um pensamento:
- Ela, no fim de contas, não passa de uma mulher como as outras!... Loló e Janjão, é que, quando gostam de uma pessoa tiram tudo dos outros para enfeitá-la!
- Quem? D. Maria Hortênsia? perguntou Amâncio, procurando num livro o lugar em que na véspera deixara a leitura. E, depois de um movimento afirmativo da rapariga:
- Não, Coqueiro tem razão - a mulher de Campos é uma excelente senhora. Muito honesta!
- Ora! É uma mulher como as outras!... sustentou Amélia, galgando a cama por cima do amante, para se aninhar do lado da parede.
- Como as outras, como? Em que sentido?
- Não é lá essas purezas que a querem fazer! Não é nenhuma santa!
- Estás enganada, filha! A Hortênsia é uma mulher muito séria!...
- Quando não ri...
- Pelo menos até aqui, que me conste, ninguém ainda se animou a dizer nada de sua conduta!
Amélia, então, possuída de um rancor instintivo de classe, de uma surda antipatia de mulher suspeita por mulher honesta, desencadeou os seus argumentos e as suas razões. Trouxe a lume conversas inteiras, que bispara na tal noite do exame. "Amâncio via cara e não via coração!... Aquele - meu bem para cá, meu bem para lá - que todos notavam entre Campos e a mulher, era só dos dentes para fora! No íntimo, Hortênsia detestava o marido! Achava-o muito bom homem, é verdade, muito generoso, não podia se queixar de que lhe faltasse nada - boa mesa, boa casa, criados para servir, teatros, bailes, seu bom carro, seu vestido de preço - sim senhor! mas só! Quanto a carinhos - nicles! A respeito de certos confortos de que uma mulher precisa - era uma miséria! Às vezes, passavam-se meses sem que o marido a procurasse! O pobre homem andava lá com os seus negócios, coitado! E a doida, em lugar de conformar-se com a sorte, punha a boca no mundo e eram queixas e mais queixas pra frente! Que ela, Amélia, não soubera de tudo isso por parte deste ou daquele - escutara com seus próprios ouvidos!"
- Pois bem, ainda me ajudas!... volveu Amâncio, tomando extremo interesse pela conversa - ainda me ajudas, porque, se é como dizes, o bom comportamento de D. Hortênsia torna-se muito mais digno de admiração!...
- Sim!... retrucou a rapariga ironicamente. - Também acho bom, mas moro longe! - De um, quando mais não seja, sei eu, por quem o tal "anjo de pureza" seria capaz de dar uma perna ao diabo! E olha que, se ainda não a deu, foi porque ainda não teve ocasião para isso! vontade não lhe falta! Ele que se apresentasse e veríamos!
Amâncio quis logo saber quem era o sujeito.
- Um tipo! Não o conheces.
- Mas como se chama?
Amélia, depois de alguma hesitação, confessou. - Era Sousa Antunes... Aí tinha!
- Que Antunes, homem! Aquele sujeito da Câmara. Alto, de cavanhaque, aquele de castor branco, que uma vez encontramos nas regatas, em Botafogo.
- Ah!... Já sei, já sei...
E Amâncio procurou disfarçar a sua contrariedade, fingindo que se abismava na leitura. E parecia muito preso à página, enquanto, aliás, o seu pensamento buscava descobrir no tipo de Sousa Antunes os atrativos que cativaram a mulher de Campos. - Impossível! O tal Antunes era um viúvo talvez de quarenta anos, pai de filhos, e vulgar, sem talento de espécie alguma, vivendo de um ordenado oficial de secretaria, nem tendo, ao menos, qualidades físicas que inspirassem paixão a qualquer mulher, quanto mais àquela! aquela que não pôs dúvida em lhe atirar com uma recusa pelas ventas!...
- Não! Isso deve ser história!... considerou ele em voz alta.
- Qual história, o quê! retorquiu logo Amélia. - É louca por ele! Quando o avista, fica tonta! Eu vi! (E arregalou um dos olhos com o dedo.) Ainda outro dia, no São Pedro - que escândalo! Não lhe tirava o binóculo de cima! O que a cegou, sei eu...
- Mas como vieste tu a saber disto?...
- Ora! Loló é toda das Fonsecas, que estão agora de cama e mesa com a Hortênsia!...
- Fonsecas?...
- Aquelas moças esquisitas, aquelas que foram à soirée!... Lembras-te? Ó homem! as Fonsecas... as de Catumbi!...
A Amâncio pouco lhe importavam as Fonsecas, o que ele desejava eram mais algumas informações a respeito do escândalo. Não podia suportar a idéia de que Hortênsia, a mesma Hortênsia que lhe repelira os beijos, tivesse um fraco pelo Antunes, o Antunes do cavanhaque! - Que horror!
E, depois dessa conversa, principiou a freqüentar a casa de Campos com mais assiduidade. Aparecia regularmente duas vezes por semana e quase se demorava até as horas do chá.
Mas Hortênsia - qual! Não atava, nem desatava. Era sempre a mesma criatura incompreensível; sempre aquela mesma ambigüidade, a mesma dúvida, o mesmo querer e não querer! Hoje - um sorriso de esperanças; amanhã - uma frieza esmagadora; depois - suspiros, meias palavras de ressentimento, olhares misteriosos, vagos, ora muito colorido de ternura, ora pulados de orgulho; tão depressa altiva e sobranceira, como suplicante e humilde; tão depressa risonha como triste, generosa como sovina, dando com uma das mãos para tomar logo com a outra.
O rapaz impacientava-se: - Fossem lá compreender semelhante mulher! Um dia - toda condescendência, toda interesse por ele, no outro - gestos desabridos, ameaças, palavras duras. - Sebo! - Já passava a debique! No fim de contas não valia a pena!
Mas o ladrão da mulher tinha uns olhos tão doces, uns dentes tão brancos, uma pele tão viçosa!... "Não! não senhor! Era preciso acabar com aquilo! Ele estava fazendo um papel ridículo!"...
E deliberava não pensar mais na mulher de Campos. "Que diabo! Se se queria divertir, comprasse um boneco de engonços!"... Quando, porém, dava por si no dia imediato, já os passos o tinham conduzido para a casa do negociante.
"Entraria, mas lá dentro havia de ser forte, inabalável!" E trepava pelas escadas, imaginando improvisar um namoro com a Carlotinha estudando os assuntos de que teria de usar na conversa, calculando os efeitos que a sua afetada indiferença devia produzir no espírito da caprichosa. Bastava, porém, um sorriso de Hortênsia, uma palavra mais terna, um gesto mais amoroso para o fazer ficar caído, desarmado, seguro como nunca. - Era o diabo!
Voltava para casa furioso, atirando com as portas, respondendo de má vontade às perguntas que lhe dirigiam.
Amélia o estranhava, sem dar, contudo, a perceber coisa alguma. Apenas lhe perguntava, aliás, como sempre, onde estivera e, quando o rapaz dizia secamente: "Com Campos", ela fazia:
- Ah!...
E não tocava mais em semelhante coisa.
Uma noite ele entrou ainda pior que das outras. Não quis ir à varanda, meteu-se no quarto, abriu um livro e aí ficou, junto à secretária, com a fisionomia fechada sobre a página.
Todavia, seu pensamento trabalhava: "Era preciso acabar com aquilo, custasse o que custasse! Era preciso definir as posições! - Ou a mulher de Campos se explicava, ou ele não poria lá mais os pés!"
E resolveu que o melhor seria escrever-lhe uma carta, uma carta enérgica, decisiva, exigindo um "sim" ou um "não". Fosse a resposta qual fosse, contanto que viesse, contanto que Hortênsia desembuchasse por uma vez!
Mas não queria escrever enquanto Amélia não pegasse no sono. - Ele bem sabia o quanto era a rapariga desconfiada e fina. Só quando a pilhou quieta e presumiu que já estivesse dormindo, foi que se animou a minutar a carta.
Frases e frases desesperadas e cheias de fogo acavalavam-se umas pelas outras, falando em martírios infernais, em suplícios dantescos e terríveis aniquilamentos. E Amâncio, no seu epicurismo estrepitoso e brutal, declarava que "já não podia suportar as meias promessas, os dúbios sorrisos e lentas torturas que ao sangue recalcado lhe impunham as atitudes perplexas, de Hortênsia. Preferia a dor por inteiro, completa, de um só golpe. Ela que tomasse uma resolução, que despachasse! Se lhe não convinha o amor que ele propunha, declarasse-o com franqueza: - ficaria o dito por não dito! E assim, escusavam de prosseguir naquele encarniçamento desabrido, de cujo oscilante resultado as dúvidas e incertezas o acabrunhavam e consumiam, mais dolorosamente do que tudo que pudesse haver de terrível e cruel em uma solução desfavorável!"
Quando deu por bem correto e limado o que escrevera, tirou a limpo uma cópia, sobrescritou-a e, para que Amélia não descobrisse nada, escondeu todos os corpos de delito no fundo de uma das gavetas da secretária. Depois, como se tivesse alijado um novelo da garganta, respirou desafrontadamente, amorteceu o bico de gás e, abafando os passos e desfazendo-se em cautelas, foi meter-se nos lençóis, muito empenhado em não acordar a amante.
Não levou dez minutos a cair no sono.
Então, Amélia ergueu-se, ainda com mais cuidado do que ele se recolhera, foi pé ante pé à secretária, tirou a carta e, depois de guardá-la em lugar seguro, tornou de novo à cama, e desta vez adormeceu deveras.
* * *
Leu-a precatadamente no banho, às oito horas da manhã, enquanto esperava que o tanque de mármore se enchesse.
Amâncio ainda ficara no quarto.
Ela, já despida, encostada ao rebordo da banheira, os ombros curvos, uma perna sobre a outra, a cabeça descaída molemente para os ombros polposos do seio, tinha em uma das mãos a pequena folha de papel e, de tal modo a fitava, que parecia disposta a consumi-la com o brilho iracundo de seus olhos.
Aquela carta a revoltava muito; não por ele, mas por si mesma; não pelo afeto que teria ao estudante, mas pelo ressentimento de seu amor-próprio ofendido. Não lhe podia sofrer a vaidade que um homem, a quem, por merecer, ela fizera tudo que estava em suas mãos; um homem por quem lançara em jogos os recursos de sua feminilidade; um homem por quem barateara todo o valimento do seu corpo, tivesse ânimo de desprezá-la por uma outra mulher!
E, com o olhar imóvel sobre a nudez oriental de seus membros, a boca entreaberta, o colo palpitante, Amélia se concentrava toda na idéia de uma vingança completa, tão completa, tão grande que lhe atulhasse o rombo cavado no seu orgulho de mulher traída.
A água, que escorria da torneira com um trapejar, monótono, punha no ambiente desagasalhado do banheiro uma impressão ainda fria de umidade e desconforto; e aquele corpo nu destacava-se ali como uma bela estátua desprezada. Sua carne tersa e maciça contraía-se, empinando os lóbulos do peito e enrijando a vermicular protuberância dos quadris.
Nisto, uma abelha voejou à roda da cabeça de Amélia, tentando pousar-lhe nos cabelos; ela agachou-se toda, fugindo logo num movimento medroso de caça que se assusta. Em seguida, puxou a toalha do cabide e pôs-se a dardejá-la contra o dourado importuno.
Foi uma luta. O inseto fugia; ela trepava-se à borda do tanque, equilibrando-se, ora num pé, ora no outro, segurando-se à parede, vindo, recuando, a despedir para todos os lados golpes perdidos na toalha.
Mas a abelha não se deixara prender. Ia e revinha no ar, zumbindo, a sacudir as suas trêmulas asas de escumilha; até que o sol, por uma frincha do telhado, veio buscá-la numa aresta de luz, ainda mais dourada do que ela.
* * *
Nessa ocasião, Amâncio, no quarto, perdia a cabeça à procura da carta.
- Pois se eu a guardei aqui, com estas minutas!... resmungava ele sozinho, depois de ter já desarrumado toda a gaveta.
Imaginar que Amélia desse com ela, não! não era possível! Não descobriria o lugar, onde Amâncio, tão previdentemente, sepultara a maldita carta; além disso, quando ele se meteu na cama, já a pequena dormia a bom dormir e, pela manhã, bem a viu acordar e escafeder-se para o banho... Que diabo teria então mexido ali?... As portas ficavam sempre fechadas por dentro!... Supor que tivesse guardado o demônio da carta em outra parte... mas como? se a deixara justamente dentro das minutas, e as minutas lá estavam?...
Mas Amélia vinha de entrar no quarto ao pé.
- Ó Amelinha! viste por caso por aí alguma carta?... perguntou o rapaz indo ao seu encontro.
- Que carta? fez ela com o ar mais calmo e mais natural deste mundo.
- Uma carta que nem é minha!... Guardei-a naquela gaveta, - desapareceu!... Agora não sei que contas prestar ao dono! É uma entalação! uma verdadeira entalação! queixava-se o rapaz convictamente.
- Mas, onde a puseste?
- Na gaveta da secretária; estou-te a dizer!
- Então deve estar lá. Procura bem.
- Já vi. Não está!
- Pois aqui não entra mais ninguém... Eu cá por mim, não mexo nunca nos teus papéis, e ainda nem abri, uma vez sequer, qualquer dessas gavetas... Se puseste a carta aí, aí deve estar por força!
- Qual está o quê! Já despejei a gaveta! Já remexi tudo.
E a desordem em que se achava o quarto dizia isso mesmo.
- Então não sei... concluiu Amélia, sacudindo os ombros. E continuou tranqüilamente a enxugar os cabelos, cujo serviço havia interrompido para atender às perguntas do amante.
- Mas a carta também não podia voar! declarou este em tom áspero.
- Sei lá! replicou a outra. - Comigo que não a tenho... isso afianço!
- Diabo! praguejou Amâncio, sem se poder dominar. - Pois, nem uma miserável carta posso ter nesta casa?! Arre! que inferno!
- Inferno são esses modos que tens ultimamente! De certo tempo para cá é esta boniteza! Parece que falas ao Sabino! Ora quem sabe!... quem sabe se tenho aqui algum senhor?!...
- Está bom! Basta!
- Basta vá ele! seu atrevido! Quero saber que culpa têm os mais com os sumiços que levam as cartas, para ouvir impropérios desta ordem!
- Eu não me dirigi a ninguém! Sebo! Falo cá comigo! Creio que ao menos tenho o direito de zangar-me quando entender!
- Sim, mas é que os outros também não estão dispostos a aturar desses repelões a todo o instante!
- Pois que não aturem!
- Malcriado! Agora, por qualquer coisinha é isso que se vê! - Qualquer coisinha não! berrou Amâncio. - É que ontem pus aqui uma carta (soltou um murro na secretária) e a carta desapareceu! Irra!
- Mas quem é que te podia vir aqui tirar a carta, criatura de Deus?! perguntou Amélia mais branda, encaminhando-se para o amante, a modos de querer chamá-lo à razão.
- Não sei! O fato é que a pus aqui, e ela cá não está!
- Há de estar, homem! Não a encontras agora porque já não tens cabeça, mas, logo que te acalmes, hás de descobri-la...
- Mas onde? Já corri tudo!
- Deixa estar; eu me encarrego de procurá-la assim que saíres.
- Mas é que eu precisava levá-la comigo! É negócio urgente!
Amélia, como em resposta à última frase do rapaz, abaixou-se sobre os papéis espalhados no chão e começou a examiná-los, um por um.
- Não está aí! observou Amâncio zangado, a passear de um lado para outro. - Já revistei tudo isso mais de cem vezes! Furtaram a carta, não tem que ver!
Amélia já não respondia e continuava, muito afoita, a esquadrinhar o que havia pelo quarto.
- Se me lembro perfeitamente que a meti naquela gaveta, ao fundo, dentro destas minutas!... acrescentou Amâncio, depois de um silêncio colérico.
- Mas quando a trouxeste?... disse Amélia, sem tirar os olhos do que rebuscava.
- Ontem à noite.
- Mas eu não te vi com ela...
- Já estavas dormindo, guando a pus na gaveta.
- Quem sabe se ficou naquela algibeira?...
E a manhosa, com um vislumbre, largou tudo de mão para correr a examinar a roupa de cabide.
- Ó filha! Eu não estava bêbado quando me recolhi! observou Amâncio.
E tocou para o banheiro traçando furioso o lençol em volta do corpo, num gesto melodramático.
Quando tornou ao quarto, Amélia já havia arrumado as gavetas e dispunha sobre a cama a roupa que o rapaz devia vestir á volta do banho.
- Então?... perguntou ele, ao entrar.
- Nada! volveu ela, com admiração na voz.
- Com efeito! Isto contado não se acredita!... rosnou Amâncio, enfiando as meias.
E gritou para fora:
- Ó Sabino! Olha essas botas, moleque!
Amélia, ao lado, metia-lhe os botões numa camisa engomada.
E depois, a escovar-lhe o paletó no corpo, quando o estudante já estava ao ponto:
- E a carta, de quem era?...
- De Campos, respondeu ele, sem hesitar.
E saiu. Amélia acompanhou-o pelas costas com um riso de asco.
E logo que se viu só, tirou do seio o seu furto e releu-o mais uma vez.
- Que devia fazer daquela carta?... como se devia servir daquela arma?... Denunciar o infame? - atirar-lhe à cara a prova de sua vilania e nunca mais o procurar para nada, ou devia simplesmente fingir que não sabia de coisa alguma, e em segredo, tomar a vingança que lhe parecesse melhor?
Despedi-lo por uma vez - não convinha! isso nem por sonhos! Ficar, porém, eternamente resignada e submissa, também seria asneira!
Seu amor-próprio estava mordido e sangrava. O procedimento desleal de Amâncio assumia no tribunal egoístico de seu espírito ignorante e mal-educado as proporções jurídicas de um crime, de um monstruoso abuso de confiança, um estelionato. Não se podia conformar com a idéia daquela tremenda injúria, lançada contra os seus direitos de mulher nova e bonita.
- Canalha! murmurava consigo, a esmoer o fato. - Bem me dizia o coração!... Agora, o que precisavas que te fizesse, sei eu! Ah! Mas descansa que hás de pagar com a língua de palmo! para não seres cão, meu safardana!
Foi-se, porém, todo o dia, sem que Amélia deliberasse o destino que deveria dar à carta. Só na manhã seguinte apareceu-lhe uma resolução.
For ter com o mano, chamou-o de parte e entregou-lhe.
- Vê isto, disse.
Coqueiro abismou-se logo desde as primeiras palavras: "Minha adorada e incompreensível Hortênsia."
- Que vem a ser isto?... perguntou ele intrigado.
- Lê! Respondeu ela.
E, enquanto o irmão devorava o que vinha escrito:
- Vê tu só a hipocrisia daquele sonso!...
- Ele já sabe que esta carta está em teu poder? interrogou Coqueiro depois da leitura.
-Qual! nem pode descobrir!
- Ainda não deu pela falta?
- Já. Zangou-me um bocado, arrepelou-se, mas afinal creio que se convenceu de que a tinha perdido.
- E agora o que tencionas fazer disto?
- Não sei... Que achas tu?...
- Acho que por ora não convém fazer nada.
- Calar-me?!
- Por ora, decerto! Esta carta pode vir ainda a servir-te de muito, mas é preciso que, em primeiro lugar, apareça a ocasião. Se quiseres, deixa-a comigo, que eu sei o destino que lhe devo dar.
E guardou-a no bolso depois de um gesto aprobativo da irmã.
- Ele a teria escrito de novo e feito chegar às mãos de Hortênsia, sabes?...
- Não sei, mas posso ver.
- Bem. em todo o caso, não te dês por achada! Nem uma palavra a este respeito! Precisamos dar tempo ao tempo... podes, todavia, ficar desde já tranqüila, que o que tem de ser - traz força! A justiça não se fez para os cães!...
- É por isso mesmo que eu não confio muito na tal justiça! observou a rapariga.
XVIII
Mas, no fundo, João Coqueiro principiava a "cismar com o negócio". Segundo os seus cálculos, a irmã, por aquela época, já deveria estar pejada: circunstância esta que daria oportunidade a um escândalo, de antemão preparado, forçando Amâncio a "reparar sua falta".
E, no entanto, Amelinha "nada de aviar"! O bom irmão sentia até como um peso na consciência por haver contribuído diretamente para aquela situação.
- Era sempre assim!... pensava ele enraivecido. - Se não precisássemos de um filho, é que os pestinhas haviam de aparecer aí de enfiada!
E o receio amargo de ter sacrificado a menina, talvez sem os belos resultados que esperava para si e para ela, invadia-lhe o coração e punha-lhe momentos maus na vida.
Mme. Brizard já não pensava do mesmo modo. Aquela existência pronta, inteiramente desocupada, lhe viera muito a propósito. "Ela, coitada de si! bem precisava de um bocado de descanso!"
As coisas, de fato, iam-lhe agora admiravelmente: Tinha a sua mesa boa e farta, um bom quarto de dormir, a mucama para lavar-lhe e engomar-lhe a roupa, um camarote no teatro de quando em quando, aos domingos um passeio à cidade, e lá uma vez por outra uma "soirée" em casa de alguma amiga. "Ah! Não se podia comparar a existência que levava agora com a peste de vida que curtira na Rua do Resende!"
É que então não havia a menor folga; não se podia arredar pé do serviço! E todo o dia reclamações! E todo o dia - o banho morno de fulano! O chocolate de beltrano! Este queria ir sem pagar a conta; o outro se entendia no direito de dizer desaforos porque pagava! Arre! Assim também não era viver! Seu corpo há muito tempo que pedia aquele repouso! Se continuasse a labutar como dantes - credo! - estourava por aí um dia, esfalfada!
E, com medo de perder a "pepineira", cercava Amâncio de adulações. Tinha-o na conta de um patrão, de um amo, com direito a todos os carinhos e desvelos. Assim jamais o contrariava, nunca lhe opunha censuras. - Aquilo que o rapaz fizesse estava sempre muito bem feito!
No seu entendimento mercantil de locandeira, Amâncio não aparecia "como isto ou como aquilo", representava pura e simplesmente "um bom arranjo". Ali não havia favores, havia negócio, ninguém ficava a dever obrigações. - Ele despendia tanto em dinheiro, mas recebia em carícias e bom trato um valor correspondente. - Estavam quites!
Apenas, como o negócio era rendoso e agradava a boa mulher, esta fazia o que estava ao seu alcance por agüentá-lo o maior tempo possível, como de resto, qualquer um procedia com referência a um bom emprego. Quanto à posição de Amélia, Mme. Brizard a dava por natural e coerente. Não via na cunhada uma vítima ou coisa que o valha, mas tão-somente um membro solidário naquela empresa, envidando os esforços de sua competência para o comum interesse da associação.
Isto, já se deixa ver, era o que pensava a francesa, mas não o que ela expunha; de sorte que o marido ficou muito espantado, quando, falando sobre a necessidade de tratar do casamento de Amélia com o hóspede, lhe ouvia dizer:
- Homem... para falar com franqueza... acho que o melhor é deixar seguir o barco como vai!...
- Como vai!...
E Coqueiro engoliu a frase indignado:
- Ora essa! Tu, com certeza, não estás falando a sério!
- Às vezes, quem tudo quer tudo perde!... sentenciou a mulher.
- Mas que diabo quero eu?! retrucou aquele. - Eu não quero senão o que é de justiça! Quero apenas que eles se casem!
A outra, para quem o casamento de Amélia não trazia vantagens imediatas e podia, aliás, comprometer o estado feliz das coisas, saltou logo com uma bateria de opiniões contrárias: "Coqueiro faria muito mal em precipitar os acontecimentos! Naquela situação o mais razoável e o mais prudente era sem dúvida esperar! A natureza não dava saltos! as coisas haviam de atingir um bom resultado, sem ser preciso lançar mão de meios violentos!"...
- Mas é que ele nos pode escapar!... argumentou Coqueiro.
- Não creias! retorquiu a velha com um gesto arraigado na experiência.
- Mas filha, vem cá! - Não vês como o Amâncio está ultimamente? Já não é o mesmo! Amelinha já não tem sobre ele domínio de espécie alguma! O maroto já não pensa nela, é todo da Hortênsia!
- E que tem isso? O que tem que ele farisque a Hortênsia? Está no seu direito - é moço, tem dinheiro!
- Ora essa!... exclamou de novo Coqueiro, ainda mais indignado que da outra vez. - O que tem isso?!...
E cruzando os braços:
- É muito boa!...
Mas tornou logo:
- Tem, que ele deve uma reparação à minha irmã! Tem, que ele, apaixonado pela Hortênsia, pode virar as costas à pobre menina e abandoná-la no estado em que a pôs! - desonrada, perdida! "Que tem isso?!" Ora faça-me o favor!
- Tolo! disse a francesa com um riso cheio de filosofia, cuja tranqüilidade contrastava com as irritações do marido. - Tolo! Bem que se vê que não conheces os homens!... Pois acredites lá que o Amâncio despreze a rapariga por ter agora um capricho pela outra?... Não sabes que a única mulher capaz de prender o homem é aquela com quem ele convive dia e noite; aquela com quem ele se habituou; aquela que já lhe conhece as fraquezas, os ridículos, as pequeninas misérias da intimidade?! Abandoná-la!... Digo-te mais: - Hortênsia é até necessária! Deixa que ele a persiga, que ele a conquiste à força de mil sacrifícios e de mil sofrimentos; deixe que ele a possua, que a tenha inteira na mão! Deixa, porque ele há de voltar, e voltar farto!... Meu amigo, paixão é fogo de palha! - não dura! Nas ocasiões de fadiga e abatimento é com o amorzinho de casa que a gente se acha! E, fica então sabendo que, para um homem amar deveras uma mulher, é preciso que ele se tenha já desiludido com muitas outras! Tristes de nós, se assim não fosse! Há maridos que, ao voltar de suas correrias, apaixonam-se pelas mesmas esposas, a quem dantes só se chegavam por obrigação!
E a francesa velha, saboreando o silêncio que cavara no adversário, concluiu depois de tomar fôlego:
- O rapaz quer, por graça, dar cabeçadas?... Pois deixa-as dar! Que ele, quando partir a cabeça, há de fazer justiça à tua irmã. Este fato da mulher de Campos, crê tu, foi uma providência, foi um atalho que se abriu nos teus planos!
* * *
E o fato é que Coqueiro acabou por concordar com a mulher. "Amélia, desde que se convertesse numa necessidade para a vida de Amâncio, este, com certeza seria o mais interessado em fazer dela sua esposa; por conseguinte, agora o que convinha era que a rapariga também ajudasse de sua parte, empregando todo o jeito e boa vontade de que pudesse dispor: devia mostrar-se cordata, simples nos seus gostos, bem arranjadinha, amiga do asseio, honesta, digna, enfim, de um marido!"
E dominado por esta idéia, aconselhou logo à irmã que se fizesse meiga com o "noivo", dócil, boa companheira e fiel principalmente, fiel quanto possível, que todo o futuro dela, bom ou mau, só disso dependia!
Mas a rapariga, com uma pontinha de desânimo, contrapunha-lhe o feio procedimento de Amâncio para com ela naqueles últimos tempos. Apontou as cenas de altercação que mais a humilharam; disse as frases grosseiras que ouvira do amante, as ameaças que recebera, as palavras que lhe escaparam, a ele, na febre das contendas; palavras, onde se enxergavam claramente o fastio e a má vontade!
- Não faças caso! discreteou o irmão. - Isto não vale nada!... fecha por enquanto os olhos a todas essas coisas! Não convém o menor espalhafato antes que o tenha seguro de pés e mãos! Nada de espantar a caça!... Lembra-te, minha rica, de que, no estado em que te achas, só ele te poderá proporcionar uma posição legítima e definida!
Depois desta conferência, Coqueiro ficou mais tranqüilo. Agora, a sua maior preocupação era o sobrado da Rua do Resende. - Já lá se iam meses, sem que o conseguisse alugar; o diabo do prédio era grande demais para família e, na disposição em que estavam os quartos só mesmo podia servir para casa de pensão.
Nesta conjuntura, resolveu alugá-lo a várias pessoas; mas, para isso, tinha de fazer obras e faltava-lhe um homem de confiança, que estivesse disposto a ir para lá e tomar conta de tudo. - Ah! Se não fora a família!... ninguém mais se encarregava disso senão o próprio Coqueiro! E fá-lo-ia até por gosto!
Encontrou, porém, o seu homem num velho conhecido empregado no correio e que, já em algum tempo, tomara a seu cargo, nas mesmas condições, a casa de um outro amigo. Chamava-se Damião. - bom rapaz, ativo e zeloso. Estava talhado para a coisa.
Damião, mediante a faculdade de não pagar a parte que ocupasse na casa, comprometia-se a cobrar o aluguel dos outros inquilinos e entregá-lo pontualmente ao senhorio; obrigava-se a fiscalizar a conservação do prédio, a pregar escritos quando houvesse cômodos desabitados e administraria enfim o serviço da pessoa que se encarregasse de fazer a limpeza dos quartos, de varrer os corredores, encher os jarros e moringues, tomar conta da chavaria e ter olho sobre quem entrasse e quem saísse.
Para estes últimos cuidados arranjou-se um homenzinho meio corcunda, português, rafeiro, esperto como um rato, um pouco falador, mas muito experimentado naqueles serviços. Coqueiro dar-lhe-ia alguma coisa por mês e um canto da casa para dormir. "Uma pechincha!"
Fechado o negócio, tratou o proprietário de dividir a sala de visitas e a varanda do sobrado em pequenos repartimentos de tabique, forrados de papel nacional. É inútil dizer que neste ponto foi indispensável a intervenção pecuniária de Amâncio, que ficou por conseguinte com direito sobre uma parte dos rendimentos do prédio.
E também não é menos útil declarar que o provinciano, nem de longe, sentiu jamais o cheiro de tais rendimentos.
* * *
Mas o certo é que as obras se fizeram, e a célebre casa de pensão de Mme. Brizard, outrora tão animada e concorrida, transformou-se num desses melancólicos sobradões de alugar quartos, que se observam a cada canto do Rio de Janeiro e onde, promiscuamente, se aninha toda a sorte de indivíduo, mas de indivíduos que já foram alguma coisa ou de indivíduos que ainda são nada.
Aí, as mais belas e atrevidas ilusões vivem paredes-meias com o mais denso e absoluto ceticismo. Velhos boêmios, curtidos no veneno de todos os vícios e no segredo de todas as misérias, encontram-se diariamente, ombro a ombro, com os visionários estudantes de preparatórios.
É nessas praias desamparadas à ventania da sorte que a sociedade costuma arrevessar o destroço dos que naufragam nas suas águas, mas é daí também que ela pesca às vezes novas pérolas para o seu diadema. Há de tudo - homens de todas as nacionalidades, sujeitos de vida misteriosa, solteiros libertinos e neutralizados pelo venéreo, artistas completamente desconhecidos que se imaginam vítimas do meio, e supostos talentos que vivem para amaldiçoar a fortuna dos que conseguiram vencer a onda.
Quase todos eles têm na sua vida um fato, uma época, uma coisa extraordinária, para contar: um, apresenta a honra de lhe haver morrido nos braços tal homem célebre; outro, diz que foi amante da senhora condessa de tal; outro, afiança e jura ser o verdadeiro, se bem que obscuro, promotor de tal acontecimento histórico; outro revela um romance de amor que lhe cortou a carreira, mas que o imortalizará em vendo a luz da publicidade; outro, confia numa invenção, "é o seu segredo", um projeto mecânico, ou industrial ou econômico-político; outro, não aceita emprego nenhum do atual governo, e espera a ocasião de "pegar numa espingarda e fuzilar as velhas instituições de seu miserando país"; outros, enfim (e são os menos raros), têm apenas para exibir em honra própria a circunstância de algum parentesco ilustre.
Ah! Não se encontram aí notabilidades de nenhuma espécie, mas sim os parentes. Este, é o sobrinho de tal poeta ilustre; aquele é irmão do ministro tal, que deu o nome a tal rua; este outro, cunhado ou primo em terceiro grau do glorioso artista Fulano dos anzóis.
E os tipos, quando lhe tocam nisso, enchem-se de orgulho, como se participassem das glórias do festejado parente; pelo menos, ninguém os apresenta a qualquer pessoa, sem acrescentar logo, com assombro: "Irmão de Sicrano!... cunhado de Beltrano!"...
Então o apresentado costuma abaixar os olhos, sorrindo modestamente, como se dissesse: "Ó senhor! Por quem é... não me confunda!"
É também desses viveiros sombrios e malcheirosos que surgem certas figuras que, às vezes, nos espantam na rua - a tossicar dentro de um sobretudo enorme, um xale-manta em volta do pescoço, um bengalão entre os dedos e na fisionomia um ar melancólico e ao mesmo tempo irritado.
É daí, desses quartos silenciosos, úmidos e tristonhos, como sepulturas vazias, que surgem com o seu passo inalterável e pausado os sinistros aranhões, que vemos passar estranhamente pelos jardins públicos, ao sol das boas manhãs de inverno.
Coitados! São em geral homens sem meios de vida, protegidos por algum figurão qualquer, de quem, ou foram colegas na academia, ou ainda continuam a ser parentes com a mais cruel pertinácia. Quando falam desse protetor feliz e rico não se animam a dizer mal, mas a sua fisionomia acode um invencível sorriso cheio de velha bílis acumulada e sôfrega por transbordar. Uns vão regularmente comer a certas casas comerciais, outros se arranjam pelas impossíveis casa de pasto da Cidade Nova, os "freges", onde as refeições não passam de duzentos réis. Alguns têm almoço seguro à mesa de um velo amigo de melhores tempos, o jantar em casa de outro; às sextas-feiras são infalíveis nas comezainas gratuitas dos frades de São Bento. Uns, passam a noite na jogatina, percorrendo espeluncas, tomando café nos quiosques às quatro e meia da manhã e então, durante o dia seguinte, dormem a fartar; outros, recebem donativos de alguma irmandade religiosa, à qual se filiaram em épocas de prosperidade.
São sempre vistos, em horas determinadas, no jardim do Rocio, no Passeio Público, assentados no banco de pedra, lendo jornais à sombra das amendoeiras, às vezes têm ao lado a botina que descalçaram por amor dos calos; são vistos igualmente nos edifícios públicos em construção, acompanhando as obras com interesse, como se estivessem encarregados disso, fazendo perguntas, ralhando com os operários, numa necessidade irresistível de aplicar, seja como for, a sua atividade desocupada e vadia. Não há motim, não há incidente de rua, por mais ligeiro, em que eles não intervenham, tomando logo a parte principal na coisa, repreendendo o agressor, conciliando o agredido, fazendo enfim acreditar que ali está uma autoridade civil em pleno exercício de suas funções.
São violentos quando lhes falam de política e só se referem aos homens de poder com palavrões brutais e desabridos; a alguns nomeiam sempre com alcunhas determinadas e todos os outros, que ainda não receberam o batismo de sua cólera invejosa, são indistintamente "os ladrões, os patoteiros, os vis, os traidores, os capachos do rei!" Através dos cerrados negrumes naquela miséria e daquele ressentimento, nada enxergam de bom e de legítimo.
Coqueiro, não obstante, se mostrava satisfeito com os seus inquilinos e dizia ter encontrado no Damião o "homem que lhe convinha".
Aparecia por lá constantemente; gostava de ver como ia o prédio, gostava de dar um vista de olhos pelos cantos da casa, em silêncio, de mãos no bolso, e sentia uma verdadeiro prazer sempre que encontrava alguma coisinha para consertar - algum pedaço de papel solto da parede, alguma régua despregada, alguma tábua fora do lugar.
A existência nunca lhe parecera tão corredia e tão fácil; só faltava, para complemento da ventura, que o maçante do colega desembuchasse por uma vez com aquele maldito casamento.
- Ah! então é que seriam elas!...
* * *
Mas o "maçante do colega" estava bem longe de pensar em casamento; todo ele era pouco para sofrer a cáustica impassibilidade de Hortênsia.
A caprichosa continuava no seu terrível sistema de não aviar nem desaviar. Amâncio fizera-lhe ir ter às mãos uma segunda cópia da carta subtraída, e ela em resposta aconselhou-o a que não escrevesse outra, sob pena de entregá-la ao marido.
- Pois que vá para o diabo que a carregue! pensou o estudante, furioso, e resolveu dar o negócio por acabado.
Com efeito, durante um mês inteiro, nas poucas vezes em que teve de falar ao Campos sobre questões de interesses materiais, não passou do escritório.
- Homem! dizia-lhe o negociante. - Você só aparece aqui por fruta, e faz visitinhas de médico! Não há meios de apanhá-lo lá em cima! Neném até já se queixou!
Amâncio defendia-se com os seus estudos e com os sobressaltos em que andava depois das últimas cartas do norte.
- Por quê? Há alguma novidade?!... perguntou o amigo, cheio de solicitude.
- A velha não está boa!... explicou o rapaz. - Desde que morreu meu pai, a pobre de Cristo ainda não levantou a cabeça! confesso-lhe que tenho meus receios, tenho!...
E quedava-se abstrato, a fitar o chão, com a fisionomia paralisada por uma tristeza vidente e ao mesmo tempo irresoluta.
O outro não se animava a interromper aquele silêncio doloroso e respeitável. Mas, por fim, lembrou discretamente, com delicadeza, que não seria mau uma viagem à província; talvez com isso se evitasse um desgosto maior... Amâncio era a menina dos olhos de D. Ângela... bem podia ser que, só com a presença dele, a pobre senhora melhorasse!...
O estudante mostrou-lhe a última carta da mãe; e os dois, tendo ainda conversado com o mesmo recolhimento, vieram a concordar em que era indispensável um passeio ao Maranhão; Amâncio retirou-se fazendo os planos da viagem.
- Oh! exclamava ele por dentro. - Vou! não tem que ver! vou definitivamente! E provo àquela mulher que não ligo a menor importância ao que ela me fez! Hei de provar-lhe que o seu procedimento em nada me alterou. Que até sigo muito satisfeito e muito senhor de mim.
E via-se já na ocasião das despedidas - frio, indiferente, sorrindo às lágrimas de Hortênsia. E sua fantasia, gozando do efeito desses devaneios, armava-lhe ao sabor da vaidade, cenas muito espetaculosas, nas quais representava ele sempre o papel mais brilhante e mais elevado.
Via Hortênsia a seus pés, lacrimosa e mísera, suplicando-lhe por piedade que não se fosse, que a perdoasse, que se compadecesse de tamanho desespero. "Ela ali estava submissa e arrependida, pronta a cumprir de olhos fechados as ordens de seu querido Amâncio, do seu senhor, de seu Deus, do seu tudo!"
Ele então, com um riso cruel, voltando-lhe o rosto e acendendo um charuto: "Não, filha, tem paciência! E se insistes, vai tudo às mãos de Campos!"...
Hortênsia, ao ouvir estas palavras, estorcia-se numa aflição teatral, e logo que Amâncio se dispunha a partir, desabava de costas, quase morta, justamente como as heroínas dos romances que ele devorava aos quinze anos.
Mas a terrível concupiscência do nortista, sobrepujando logo a fantasia do vaidoso, não resistia à tentação de possuir, ao menos em sonho, aquele belo corpo desfalecido e, como dantes, começava mentalmente a despi-lo, peça por peça, até deixá-lo em pleno escândalo da carne.
Entrou em casa resolvido a levantar o vôo, custasse o que custasse.
- Sim, era preciso ir! por Hortênsia, por sua mãe, por Amélia, por mera distração, por tudo! Precisava afastar-se daquele inferno, onde duas mulheres, como duas sombras, o torturavam; uma fugindo e a outra perseguindo. Desde que recebeu a tremenda resposta de Hortênsia, sentia-se muito nervoso e irascível; Amélia suportava-o, sabe Deus como, fazendo milagres de paciência para não se afastar dos conselhos que lhe dera o irmão. Quase que já se não podiam sofrer um ao outro. Além disso, as cartas de Ângela repetiam-se agora desesperadamente. "Estaria a pobre mãe com efeito em risco de vida?... pensava Amâncio. "Dependeria dele o salvá-la?... E os seus interesses que havia tanto tempo o reclamavam?... E as saudades da pátria? e os prazeres que encontraria à volta do primeiro ano acadêmico?"
Os prazeres, sim. Amâncio, pelo derradeiro paquete, recebera em uma das principais folhas diárias de sua província a seguinte notícia:
"MARANHENSE DISTINTO. - Acaba de fazer brilhantemente o primeiro ano de seu curso na Escola de Medicina na Corte o nosso talentoso comprovinciano, Amâncio da Silva Bastos e Vasconcelos, filho do há pouco falecido e sempre chorado Comendador Manuel Pedro de Vasconcelos, um dos mais estimados negociantes que foi desta praça. Enquanto não podemos pessoalmente abraçar o digno jovem e esperançoso discípulo de Hipócrates, apressamo-nos a enviar-lhe daqui os nossos sinceros parabéns, futurando em S. S., mais uma glória legítima para a nossa Atenas, já tão rica, aliás, em talentos privilegiados!"
* * *
Ninguém poderá imaginar o efeito que produziram tais palavras no espírito presunçoso de Amâncio. Era a primeira vez que ele via o seu nome em letra redonda, seguido de alguns adjetivos laudatórios.
Por detrás daquela notícia pressentia o rapaz um paraíso de novas considerações que o esperava na província; antevia o sorriso das damas, a reverência dos pais de família e a inveja dos ex-colegas do Liceu.
- Não! não podia deixar de ir. O Maranhão, naquele momento, e por todos os motivos, representava para ele uma necessidade urgente. - Havia de meter a cabeça e varar por quantos obstáculos se lhe antepusessem.
* * *
Amélia ficou estonteada quando o amante lhe deu parte dos seus projetos de viagem, tão calmo e resoluto foi o tom em que o fez; mas, voltando do primeiro choque, rompeu um grande pranto e atirou-se de bruços na cama, soluçando muito aflita. "Que era uma desgraçada! Que Amâncio a queria abandonar, depois de a ter desonrado e perdido!"
- Eu volto, filha! disse ele, procurando fazer-se meigo. - Vou tratar de meus interesses, ver minha mãe, e volto para o teu lado! Não tenhas receio de que te engane! Eu ainda se quisesse, não podia ficar por lá, já não digo por ti, mas, que diabo! pelos meus estudos. Pois acreditas que eu cairia na asneira de abandoná-los, agora que estou tão bem encaminhado?...
- Não sei! respondeu a rapariga, erguendo-se rapidamente, com feições sumidas na vermelhidão do choro. - Você, é impossível que não tenha no Maranhão alguém à sua espera!... E essa com certeza não há de ser pobre como eu, não terá a boa fé que eu tive!... com essa você não porá dúvida nenhuma para casar!...
E voltaram-lhe os soluços, como um temporal que recresce.
- Estás a dizer tolices, filha! Dou-te a minha palavra de honra em como nunca esquecerei de ti! Que mais queres?!
- Pois então casemo-nos e partirás depois!...
- Isso é impossível! Já te disse um milhão de vezes! Oh! - Minha mãe espera-me há quatro vapores seguidos! Imagina tu como não estará ela, coitada, com a morte do velho! Não hei de agora, em, vez de minha pessoa, lhe apresentar uma carta pedindo licença para casar!... Que espécie de filho seria eu nesse caso?! "Enquanto a pobre viúva se desfaz em lágrimas; enquanto na família tudo é luto e desgosto, o bom do filho pensa em casamento e, sem dúvida, prepara as festas do noivado!" Não! gritou ele energicamente. - Isso não faria eu, nem se me cosessem a facadas! Pelo menos, enquanto estiver com esta roupa sobre o corpo...
E sacudiu com força a aba do seu fraque de lustrina.
- Enquanto estiver com esta roupa, não penso em mulher! Nada! Antes de tudo, sou filho! Percebes?! Antes de tudo, tenho de olhar por minha pobre mãe, que é muito capaz de morrer se não me ver ao seu lado!
E foi, cheio de excitação, debruçar-se no peitoril da janela, fitando as plantas do jardim, a roer as unhas.
Houve um silêncio. Amélia já não chorava; imóvel, apoiando-se ao espaldar da cama, entontecia a vista contra as ramagens cruas do tapete.
- Nesse caso, ela que venha ter contigo... disse afinal, sem erguer os olhos.
- Ora! resmungou Amâncio, voltando-se vivamente na janela.
- Ou então iremos nós... acrescentou a rapariga, fazendo um biquinho de enfado. E depois, com pieguice: - Tenho muito medo das maranhenses!...
O estudante não respondeu, foi ter com ela, tomou-lhe meigamente a cabeça entre as mãos.
- Esta cabecinha!... - disse - esta cabecinha não sei quando terá juízo!...
E, passando a falar em tom sério, protestou que era até injustiça supô-lo capaz de cometer uma perfídia daquela ordem! Amélia já devia estar perfeitamente convencida de que ele a amava deveras; de que ele não seria tão mau que a abandonasse, depois de receber tantos carinhos. Ela que não estivesse a descobrir perigos, onde nem sombras disso havia!... A tal viagem ao norte, no fim de contas, era uma questão de dois ou três meses, e ele deixaria uma mesada regular e escreveria por todos os vapores!...
- Não acreditas ainda que te estou falando com sinceridade?... concluiu, a beijá-la nos olhos. - Que precisão tinha eu de te enganar?...
- Sim, creio, creio que por ora assim seja, não há dúvida! Mas também estou persuadida de que, logo que passes a barra, tudo muda de figura!... Nos primeiros dias ainda te lembrarás da infeliz que aqui deixaste, mas depois... com a presença de outras, com os novos passatempos que te esperam... até hás de perguntar aos teus botões "como foi que em algum dia chegaste a pensar a sério neste casamento?"...
- Bem se vê que não me conheces!... retorquiu o rapaz.
- Não! não! não irás! sustentou Amélia. - Adoto-te, és meu, não te quero perder! Ora essa!
- Mas, filha, observou Amâncio impacientando-se - lembra-te de que é mais decente fazermos a coisa por bons modos... Afinal, tu não me podes constranger a ficar, e, eu, em vez de ir, deixando um compromisso de cavalheiro, sou capaz de ir, sem deixar coisa alguma! Ora aí tens!
- Hein?! bradou ela, transformando-se a contragosto. - Cai nessa! Experimenta só, para veres o gosto que lhes achas!
Amâncio respondeu com um gesto desabrido, enterrou o chapéu na cabeça, e saiu à toa, sem destino, com um fúria surda a espezinhar-lhe o coração.
Mas, ao voltar, encontrou Amélia no mesmo estado. E a questão reapareceu à noite, reapareceu na manhã seguinte, e todos os dias, tomando um caráter de rezinga permanente.
Amâncio perdeu de todo a paciência.
- Era demais! Sebo! Ele, no fim de contas, não tinha obrigação nenhuma de aturar semelhante gaita nos ouvidos! Que mastigação! Arre! Amélia que fosse atenazar o pai!
Ela respondeu possessa, deixando escapar palavrões, "Supunha ter encontrado um homem, mas encontrara um quidam, um canalha, um desfrutador!"
- Desfrutadores são vocês todos! - Percebes tu?! berrou ele, colérico. - Desfrutadores - é teu irmão - é tua madrasta e és tu! que só faltam me arrancar a pele! Súcia de filantes!
E lembrou o que até aí gastara com eles, o que lhes dera, o que comprara e o que lhe desaparecia das algibeiras.
- Não me estás de graça, não! exclamou, saindo afinal do quarto como da outra vez.
Desta, porém, quando voltou a casa vinha com o ar mais despreocupado que se pode desejar. E logo que Amélia lhe falou na questão da viagem, ele respondeu tranqüilamente que já não havia nada a esse respeito. "Resolvera ficar."
A rapariga compreendeu o disfarce e, no dia seguinte, tratou de prevenir o irmão de que abrisse os olhos, se não queria ver o Sr. Amâncio escapar-lhe por entre os dedos.
João Coqueiro ficou de orelha em pé.
XIX
A pequena tinha toda a razão; Amâncio, parecia resolvido a desistir da viagem, era porque nessa mesma tarde encontrara Paiva e, na sua necessidade de expansão, levou-o para o fundo de um café e abriu-se com ele. Contou-lhe as dificuldades que o afligiam, e pediu-lhe conselhos.
- Não há que saber!... disse o consultado. - Não há que saber!... Aí só vejo dois partidos a tomar: - ser tolo - ou - não ser tolo!
E, como o outro fizesse um trejeito de má compreensão:
- Tolo, se ficares e - não tolo - se te puseres ao fresco!
- Mas, Paiva, você então acha que devo ir?... perguntou Amâncio, hesitando, a morder as unhas.
- Homem! volveu aquele - se precisas ir ao Norte, prepara-te caladinho e vai! Que necessidade tens tu de que a gente do Coqueiro saiba disso?... Deve-lhes satisfação de teus atos?... Se não deves, é aprontar as malas e... por aqui é o caminho! olha! deixa-lhe uma carta, muito delicada, já se vê, muito cheia de promessas. "Que voltas, que hás de fazer, que hás de acontecer!" E, no entanto, vai-te raspando... Porque estas coisas, filho, assim é que se decidem. E, quanto aos arranjos da viagem... cá estou eu para te ajudar!...
Calaram-se por alguns instantes. Paiva Rocha pediu um novo sherry-cobler e prosseguiu enquanto o amigo, muito pensativo, fitava o mármore da mesa:
- Agora, se estás tão embeiçado pela sujeita, que não tenhas ânimo de a deixar; isso é outra coisa!... Neste caso, o melhor é escrever à velha, dizendo-lhe que venha, arranja um novo advogado de confiança que se encarregue de teus negócios no Maranhão, e faze a vontade à pequena - casa-te!
Amâncio torceu o nariz com enfado:
- Qual!
- Então, filho, que esperas?... É perder o amor aos objetos que lá tens, e fazer o que já te disse!
- Mas Coqueiro não poderá tomar alguma vingança?...
- Não sejas parvo! resmungou o outro, bebendo de um trago o que ainda tinha no copo; e ergueu-se disposto a sair. - Amanhã às mesmas horas, cá estou! Traze o cobre e deixa o resto por minha conta!
Separaram-se concordes e que no dia seguinte ficariam depositados na república do Paiva os apetrechos da fuga.
Em casa de Coqueiro, todos, à semelhança de Amelinha, nem de leve mostravam suspeitar de coisa alguma; pareciam até mais tranqüilos e satisfeitos. Nem um gesto de ressentimento, nem uma palavra indiscreta que os denunciasse. Tudo era paz e bem-aventurança.
Reapareceram as primitivas noites de amor, como boa estação que volta carregada de flores. Os dois amantes nunca se possuíram tão satisfeitos um do outro e nunca se patentearam tão convictos da mesma felicidade. No empenho comum de se enganarem, cada qual redobrava de carinhos e meiguices; enquanto por dentro os corações lhes bocejavam, aborrecidos e fatigados.
O dia da viagem chegou sem novidade alguma. Amâncio levantou-se como das outras vezes, apenas um pouco mais cedo. Olhou por um momento Amélia que ainda dormia, toda sumida nos lençóis, vestiu-se cautelosamente para não a acordar; depois foi à varanda, bebeu café e saiu em ar de passeio.
No Largo do Machado tomou um carro e bateu para a república de Paiva.
Não encontrou o colega, havia já saído. - Devia estar à sua espera com a bagagem, no cais Pharoux.
Amâncio mandou tocar o carro para lá. E, à proporção que se aproximava do mar, crescia-lhe por dentro um vago sobressalto de impaciência e de medo.
- Anda! Gritou ao cocheiro, espiando repetidas vezes pela portinhola e apalpando de instante a instante o bilhete da passagem que tinha no bolso.
Estava comovido, principiava a sentir pena de deixar a Corte; apareciam-lhe saudades das boas noites com Amélia, das patuscadas com os amigos. E um mundo de recordações formava-se e transformava-se atrás dele, fugindo, desaparecendo como sombras que se esbatem.
Para disfarçar a impressão desagradável de tais mágoas, procurava embriagar-se com a idéia das aventuras que o esperavam na província, grupando na fantasia tudo aquilo que o pudesse interessar de qualquer modo; e compunha, e construía, inventava episódios, cenas, dramas inteiros, nos quais lhe cabia sempre a principal figura. E, depois de bem mergulhado nos seus devaneios, depois de bem envolvido na alacridade de seus sonhos de glória, o Maranhão aparecia-lhe risonho e brilhante como a última expressão do que há de melhor sobre a terra.
Mas, na ocasião em que se apeava, um tipo mal encarado, olhou por cima dos óculos, a barba grisalha, um tom geral de porcaria no seu velho fato de pano preto, nas suas botas acalcanhadas, no seu chapéu de pêlo cheio de manchas amarelas, aproximou-se dele e, com uma voz enxuta e morfanha, intimou-o "a comparecer imediatamente em presença do delegado de semana na secretaria de polícia". Era um oficial de justiça.
- Mas que desejam de mim... perguntou o estudante, empalidecendo e procurando o Paiva com os olhos. - Eu não tenho nada com a polícia!
E recuou dois passos.
- O senhor está intimado! repetiu secamente o outro, e, em voz baixa, disse a dois sujeitos que se haviam adiantado: - Cerca! cerca o homem!
Então aqueles avançaram logo, jogando o corpo num pé só, o chapéu para trás, um grosso porrete na mão.
- Comigo é onze! exclamou um deles, muito canalha, a cuspilhar para os lados.
- Mas, por que me prendem?!... perguntou o estudante, sentindo-se tolhido.
- São coisas!... responderam-lhe, fazendo-o entrar no carro.
Amâncio ainda procurou descobrir Paiva; depois, azoinado pela gentalha que se reunia em torno dele, saltou para a almofada, perseguido sempre pelos três sujeitos.
O oficial segredou alguma coisa ao cocheiro, e o carro deu volta e rodou em sentido contrário ao cais.
Amâncio cobriu o rosto com o lenço e principiou a soluçar.
Coqueiro, desde a prevenção que lhe fez a irmã, não se descuidou mais um instante de vigiar a sua presa: seguiu-lhes os passos, farejando, até o momento em que Amâncio tomou bilhete de passagem para o norte.
Então, correu à casa do Dr. Teles de Moura.
O Teles era um advogado velho, muito respeitado no foro; não pelo caráter, que o não mostrava nunca, nem pela sua ciência, que não a tinha; nem tampouco pelo seus cabelos brancos, que a estes nem ele próprio respeitava, invertendo-lhe a cor; mas sim pela sua proverbial sagacidade, pelas suas manhas de chicanista, pela sua terrível figura de raposa velha, pelos seus olhinhos irrequietos e matreiros, pelo seu nariz à bico de pássaro e pela sua boca sem lábios, donde a palavra saía seca e penetrante como uma bala.
O passado de Teles era toda uma legenda de vitórias judiciais; atribuíam-lhe anedotas mais antigas do que ele; muito processo se anulou naquelas unhas aduncas de tamanduá; muito criminoso escapou às penas da lei por entre as malhas da sua astúcia; muito inocente foi parar à cadeia ensarilhado nas pontas de seus sofismas.
Para ele não havia causas más; em suas mãos qualquer processo se enformava ao capricho dos dedos como uma bola de miolo de pão.
E o irmão de Amélia sabia de tudo isso perfeitamente quando lhe foi bater à porta.
Seriam então nove horas da manhã; a raposa almoçava.
Coqueiro esperou um instante e, só terminado o barulho dos pratos, animou-se a tocar a campainha.
Apareceu um moleque, tomou o recado no corredor e pouco depois trouxe a resposta. "O amo estava muito cheio de ocupações naquele dia, não falava com pessoa alguma. Coqueiro que voltasse noutra ocasião."
Mas Coqueiro recalcitrou. Esperaria... Tinha que falar ao Dr. Teles, custasse o que custasse. "Tratava-se de uma causa importantíssima!"
Veio afinal o doutor, palitando os dentes, o ar muito ocupado, os movimentos de quem tem pressa.
- Que era? O que desejavam?
Coqueiro, com a voz alterada, os gestos dramaticamente desesperados, disse que ia ali buscar proteção de justiça. "Era pobre, sim, mas estudioso e trabalhador. Sua vida aí estava - limpa! Podia até servir de modelo! - Casara-se na idade em que os rapazes em geral só pensam nos prazeres e nas loucuras!... Adorava a família; sim! adorava, porque a família era o bem único de que ele dispunha na terra! Tinha uma irmã, inocente e indefesa, a quem até aí servira de pai e de tutor..."
O advogado deixou escapar uma tossezinha de impaciência.
- Pois bem, senhor doutor! exclamou o outro, puxando com ambas as mãos, contra o peito, o seu chapéu de feltro. - Pois bem! Essa menina, que era todo o meu orgulho, que era como o documento vivo do bom cumprimento de meu dever... essa menina, que eduquei sob os maiores sacrifícios... essa pobre criança...
- Que fez, perguntou o velho muito calmo. - Arribou de casa?...
- Não senhor, acaba de ser vítima da maior traição, da mais degradante maldade, que...
- Mas, afinal, o que houve?... interrogou o doutor fugindo às preliminares.
- Foi desvirtuada por um rapaz, um colega meu que, há coisa de um ano, hospedei, por amizade, debaixo de minhas telhas!...
- E ele? perguntou o advogado, sem se comover.
- Ele já está de passagem comprada para o Maranhão e foge amanhã mesmo, se não houver uma alma reta e caridosa que lhe embargue a viagem.
- Ela ficou pejada?
- Não senhor.
- É menor?
- Tem vinte e três anos, respondeu o queixoso, triste porque sua irmã não tinha menor idade.
- Está o diabo!... resmungou a raposa; espetando os dentes com o palito. - E ele?
- Ele tem vinte e um.
- Feitos?
- Feitos, sim senhor.
- Bem.
E acendeu um cigarro que levava a preparar lentamente.
- É o diabo!... repisava. - Não se pode fazer nada, sem a verificação do fato... É o diabo!
E calaram-se ambos. O velho a pensar; o outro, de cabeça baixa, o aspecto infeliz, a choramingar baixinho.
- Ele tem recursos? perguntou aquele afinal.
- É rico, bastante rico, respondeu Coqueiro, sem tirar os olhos do chão.
- Emancipado?...
- Totalmente. Órfão de pai! E até sócio comanditário de uma importante casa comercial. Tem para mais de quatrocentos contos de réis.
- Bem. Arranja-se a queixa-crime. Olhe! Deixe-me aí o seu nome, o dele, o da vítima, o dos competentes pais, se os tiverem, as respectivas moradas, profissões, etc., etc. Enfim a substância da queixa...
- O senhor doutor acha então que?...
- Veremos! Veremos o que se pode fazer!... Não perca tempo - escreva.
Coqueiro escreveu prontamente, interrompendo-se de vez em quando para pedir informações.
- Está direito! sussurrou o advogado, correndo os olhinhos pela folha de papel que o outro lhe acabava de passar. - Pode ir descansado. Vá.
E seu todo impaciente estava a despedir a visita. Esta, porém, fazia não dar por isso e desejava mais esclarecimentos; queria saber ao certo o tempo que deitaria aquela questão. "Se era de esperar que Amâncio casasse com a vítima; se havia recursos na lei para o perseguir, etc., etc."
O velho palitou os dentes, mais vivamente. "Que diabo! Um processo era um processo! Tinha de percorrer todos os componentes sacramentos! Não se chegava ao fim, sem passar pelos meios!... Amâncio podia furtar-se à citação, esconder-se; os oficiais de justiça eram tão fáceis de ser comprados!... tão ordinários!... vendiam-se por qualquer lambugem, por um relógio, por um pouco de dinheiro!...
E principiou a encarecer a causa, grupando termos jurídicos, apontando dificuldades. Sua voz transformava-se ao sabor daquela terminologia especial. Em primeiro lugar tinham de apresentar uma queixa perante o juiz de direito do distrito criminal. Deferida a petição, intimar-se-ia o indicado para a audiência que se designasse. - E os interrogatórios? E a pronúncia? e os recursos?... Enfim havia de se fazer o que fosse possível!..."
- E por enquanto... acrescentou o chicanista, consultando apressado o relógio - não tenho de meu nem mais um segundo!
E despedindo o outro com um aperto de mão:
- Olhe! Procure-me logo mais na polícia, ao meio-dia. Estou lá a sua espera, pode ir descansado. Adeus!
E empurrando-o brandamente:
- Não deixe de ir, hein?... Meio-dia em ponto! Adeus! Desculpe!
Coqueiro saiu, mastigando agradecimentos.
Estava agora mais tranqüilo; - a fama do Dr. Teles de Moura enchia-o de esperanças radiosas. "Sua causa não podia cair em melhores mãos!"
* * *
E a verdade é que ele, industriado pela raposa velha obteve um mandato de notificação, obrigando Amâncio a comparecer na polícia, imediatamente, para investigações policiais, e peitou o oficial da justiça e arranjou dois secretas e, afinal, o amante da irmã foi conduzido à presença do delegado de semana e daí levado à detenção, donde só sairia para responder ao primeiro interrogatório.
O advogado requereu corpo de delito na ofendida e, para a seguinte audiência, o comparecimento dos outros dois inquilinos que, por ocasião do crime, moravam na casa de pensão - o Dr. Tavares e o guarda-livros.
No inquérito, duas testemunhas fizeram-se ouvir contra Amâncio; um taverneiro das Laranjeiras - bicho gordo, cabeludo, a pele cor de telha e dono de uma venda que encostava os fundos com os da casa de Amélia, e um alferesinho de polícia, noutro tempo vizinho do queixoso em Santa Teresa e agora morador do casarão da Rua do Resende - homenzito magro, pobre de sangue, olhos fundos e boca devastada por uma anodontia horrorosa.
Amâncio, que ainda não conhecia de perto o que vinha ser "um processo" e estava longe de imaginar as tricas e os ardis de que costumam lançar mão os litigantes para defender ou acusar um pobre diabo que a justiça lhe atira às unhas, ficou pasmo, quando na ocasião de assinar os atos e termos, leu a matéria do fato criminoso que lhe argüiam.
O alferes declarou em substância que: "na noite de 16 de julho do ano tal, pela uma hora da madrugada, estando em Santa Teresa, no sótão que então ocupava (o qual era místico ao sótão de uma outra casa, onde viera a saber mais tarde, residira Amâncio), ouviu daí partirem gemidos angustiados e uma voz fraca, de mulher, a dizer: Solte-me! Solte-me! Não me force! E que, tomado de curiosidade, trepara-se a espreitar para a casa do vizinho e, então, percebera distintamente que um homem violentava uma rapariga; e que depois cessaram as vozes e só se ouviram suspiros e soluços abafados."
O tavarneiro depunha que: "naquela mesma noite, estando casualmente de passeio em Santa Teresa, ouvira, ao passar pela casa onde então residia João Coqueiro com a família uma altercação de duas vozes, na qual se destacava uma de mulher que chorava, implorando piedade e suplicando, por amor de Deus, que a não desonrassem."
E tudo isso estava perfeitamente de acordo com que já havia declarado Coqueiro. Dissera este que "nessa mesma noite se recolhera às três horas da madrugada, pois estivera até então em Botafogo, na companhia de seu colega Firmino de Azevedo, e que, ao entrar em casa ouvira leves gemidos no quarto da irmã e, chamando por esta da varanda e perguntando-lhe o que tinha, ela respondera que - não era nada, apenas havia acordado às voltas com um pesadelo; mas que ele, Coqueiro, apesar dessa explicação, ficou muito sobressaltado e ainda mais, quando, depois de acordar a esposa, que dormia profundamente, e perguntar-lhe se houvera em casa alguma novidade durante a sua ausência, lhe ouvira dizer que - até às nove horas da noite podia afiançar que nada acontecera, mas que, daí em diante, não sabia, visto que, sentindo-se àquela hora muito incomodada, se havia recolhido ao quarto com seu filho César e, como usava água de flor de laranja para os seus padecimentos nervosos, supunha ter essa noite medido mal a dose e tomado demais o remédio, em virtude do estranho e profundo sono que se apoderou dela até o momento em que o marido a chamara. - Por conseguinte, das nove horas da noite as três da madrugada, Amâncio e Amélia haviam ficado em plena liberdade".
E mais: "que, no dia seguinte àquela noite fatal, Amélia não quis sair do quarto e que ele, indo ter com a irmã e perguntando-lhe se sofria de alguma coisa e se precisava de médico, notou-lhe certa perturbação, certo constrangimento e um grande embaraço na resposta negativa que deu; e que ela, todas as vezes que era interrogada, fugia com o rosto para o lado contrário e abaixava os olhos, como tolhida de vergonha; e que, examinando-a melhor, lhe descobrira sinais roxos nos lábios, nas faces, e pequenas escoriações no pescoço, nas mãos e nos braços; e que então, fulminado por uma suspeita terrível, exigiu energicamente a revelação de tudo que se passara na véspera durante a sua ausência, e que ela, empalidecendo, abrira a chorar e, só depois de muito resistir, confessou que fora violentada por Amâncio, mas que este prometera, sob palavras de honra, em breve reparar com o casamento a falta cometida."
Mme. Brizard confirmou o que disse o marido a seu respeito.
Amâncio, porém, logo que foi novamente interrogado, negou: 1.º - Que conhecesse as duas testemunhas deponentes contra ele; 2.º - Que em tempo algum houvesse sucedido o que elas afirmavam; 3.º - Que tivesse empregado violência contra Amélia; 4.º - Que fizesse promessa de casamento a quem quer que fosse e debaixo de quaisquer condições. E confirmou: 1.º - Que na noite, não de 16, mas de 20 de julho daquele ano, estabelecera relações carnais com a queixosa; 2.º - Que nessa noite, permanecendo de pé o conchavo de uma entrevista combinada entre eles, Amélia, logo que a casa se achou de todo recolhida, apresentara-se-lhe no quarto e aí ficara até às cinco horas da manhã, sem mostrar durante esse tempo o menor indício de contrariedade, e parecendo, aliás, muito satisfeita e feliz com o que se dera, como se alcançara a realização do seu melhor desejo; 3.º - Que de tudo isso nada absolutamente teria sucedido, se Amélia não o perseguisse com os seus repetidos protestos amorosos, com as suas provocações de todo o instante, chegando um dia a surpreendê-lo à banca do trabalho com uma aluvião de beijos! que não teria sucedido, se todos os de casa, todos! - o irmão, a cunhada, ela, César, os fâmulos, não concorressem direta ou indiretamente para aquilo, armando situações, preparando conjunturas arriscadas para ambos, explanando ocasiões escorregadias, nas quais fora inevitável uma queda!
E Amâncio acrescentou, arrebatado pela correnteza de suas palavras:
- Nada disso teria acontecido, senhor juiz, se me não desafiassem, se me não sobressaltassem os instintos, atirando-a todo o momento contra mim; se nos não empurrassem para o outro, com insistência, com tenacidade, deixando-nos a sós horas e horas consecutivas: fazendo-a enfermeira ao lado de minha cama, pespegando-a todos os dias, todas as noites, diante de meus olhos, ao alcance de minha mãos - enfeitada, perfumada, preparada, como uma armadilha, como uma tentação viva e constante!
O delegado observou discretamente que Amâncio se excedia nas suas declarações; mas o auditório, na maior parte formando de estudantes, protestava, atraído por aquela setentrional verbosidade que enchia toda a sala.
Rebentavam já daqui e ali, algumas exclamações de aplauso. E a voz do nortista, irônica e crespa no seu sotaque provinciano, ainda se fez ouvir por alguns instantes, em meio do quente rumor que se alevantava.
- Ah! Por Deus! por Deus, que bem longe estava ele de imaginar um fim tão dramático àquela comédia! Bem longe estava de imaginar que, depois de o escodearem por tantas maneiras; já o fazendo chefe de uma família que não era a sua; já lhe exigindo a compra de uma casa, exigindo vestidos, jóias, carros, dinheiro para a despesas diárias, dinheiro para a botica, dinheiro para o açougue, para o médico, para tudo! - ainda se lembrassem de estorquir-lhe a coisa única que até aí não haviam cobiçado - seu nome! - o nome que herdara de seus pais!
- Bravo! Bravo! Muito bem!
E a matinada dos estudantes rebentou com entusiasmo, sufocando os novos protestos que apareciam. O delegado reclamava silêncio, e Amâncio, muito pálido, a testa luzente de suor, tinha os braços cruzados, a cabeça baixa, numa atitude dramática de altiva resignação.
Findo o inquérito e dada a queixa, o sumário caminhou sem mais incidente. Todavia, o provinciano, sempre que era interrogado, deixava-se arrebatar como da primeira vez,
As testemunhas, com mais ou menos tergiversação, reproduziam as suas patranhas; concederam-se os dias da lei ao indiciado, para que juntasse a sua defesa escrita e os documentos; e, afinal, subiram os autos à Relação, onde foi sustentada a pronúncia, e o processo esperou que designassem a sessão em que Amâncio teria de entrar em julgamento.
XX
O acidente de Amâncio causou enorme impressão nos seus conhecidos. Campos, ao receber a notícia, ficou fulminado e atirou-se no mesmo instante para a casa de correção, sem mais se lembrar de que nesse dia estava cheio de serviço até os olhos.
Seu primeiro ímpeto foi de repreender severamente o culpado, verberar-lhe com energia a "ação indigna" que acabava de praticar; mas pouco depois, veio-lhe uma grande comiseração. "Porque, enfim, coitado, o pobre moço ainda era muito criança... naturalmente fraco... e daí... Quem sabia lá o que teriam feito para o precipitar naquele crime?..."
Sem saber por que, afigurava-se-lhe que o papel de vítima cabia mais a Amâncio do que a Coqueiro. Este surgia-lhe agora à imaginação, como que um Satanás de mágica que deixou de fugir de repente, pelo alçapão do teatro, com a sua túnica de bom velho peregrino. Seria até capaz de jurar que, a despeito do disfarce, já de muito lhe havia bispado a saliência dos cornos diabólicos por debaixo do religioso capuz. E pequeninos fatos, que até aí jaziam dispersos e abandonados no seu espírito, vinham, acordado de repente, justificar semelhante transformação.
- Sim! Já em certa época descobrira em Coqueiro tais e tais sintomas de hipocrisia; ouvia-lhe tais e tais frases que o fizeram desconfiar de seu caráter!... Não tinha que ver! - Já lá estavam as tais pontas diabólicas a espetar o capuz!
E arrependia-se de não haver em tempo desviado o pobre Amâncio daquele perigo: - Andara mal! Devia preveni-lo... devia ter dado qualquer providência a esse respeito!...
E voltando-se contra si:
- Mas, onde diabo tinha eu esta cabeça, para não ver logo que um homem - que se casa especulativamente com uma velha do feitio de Mme. Brizard; um homem que consente à irmã receber presentes e mais presentes de um estranho; um homem que especula com tudo e com todos, um maroto! - não se mostraria tão agarrado ao rapaz, senão com o propósito firme de lhe pregar alguma?!... Oh! andei mal! ande mal, como um pedaço de asno!...
E apressou-se a socorrer a "pobre vítima".
- Ainda se houvesse a hipótese de uma fiança... reconsiderava ele, já em caminho da detenção. - Mas qual! Dr. Tavares, que lhe levara ao escritório a notícia do escândalo, dissera-lhe que "o crime era inafiançável e que por conseguinte não se podia evitar a prisão!" - Infeliz moço! infeliz moço! resmungava Campos, quase chorando. - Antes nunca ele viesse ao Rio de Janeiro! - Que demônio hei de eu agora escrever à família?... E a pobre D. Ângela! Coitada, como não ficará, quando, em vez do filho, receber a notícia de tanta desgraça?!... Valha-me Deus!
E foi nesse estado que Campos chegou à Casa de Correção da Rua do Conde.
Hortênsia não ficou menos impressionada; ao saber do caso empalideceu extraordinariamente e começou a tremer toda. Desde então se tornou apreensiva e nervosa de um modo lastimável; tinha pesadelos, ataques de choro, ameaças de febres e um fastio enorme.
Carlotinha, que se achava nessa ocasião de passeio em casa das Fonsecas de Catumbi, foi logo reclamada a lhe fazer companhia.
Em casa do negociante quase se não falava de outra coisa que não fosse o processo de Amâncio; parecia todos empenhados com o mesmo ardor na sorte do "pobre rapaz". Os caixeiros murmuravam pelos cantos do armazém e os criados, sempre desejosos de merecer a atenção dos amos, traziam da rua os comentários que ouviam ou que inventavam sobre o fato.
E o escândalo, como um líquido derramado, ia escorrendo pelas ruas, pelos becos, penetrando por aqui e por ali, invadindo as repartições públicas, os escritórios comerciais, as redações das folhas e as casas particulares.
Os jornais começavam a explorá-lo.
Na Academia de Medicina e na Escola Politécnica levantava-se partidos. João Coqueiro bem poucos colegas tinha de seu lado; nem só porque lhe cabia na questão o papel, sempre mais antipático, de agressor, como em virtude de seu gênio insociável e seco. Antigos ressentimentos que pareciam esquecidos, ressurgiam agora, aproveitando a ocasião para tirar vinganças; daí - opiniões mal intencionadas; comentários atrevidos sobre a conduta de Amélia, sobre o caráter mercantil de Mme. Brizard, sobre as velhas brejeirices do Rua do Resende. Uns se contentavam em fazer conjecturas, outros, porém, tiravam conclusões, e alguns iam ainda mais longe, contando fatos: "Em tal baile do Mozart", dizia um quartanista de medicina, "estava com a irmã de Coqueiro, dançara com ela duas valsas e desde então ficara sabendo que força era a tal bichinha!..." E seguiam-se pormenores degradantes e revelações descaradas.
Este, sustentava que João Coqueiro sabia perfeitamente de tudo que lhe ia por casa e que era até o primeiro a mercadejar com a irmã, como seria capaz de fazer com a própria mulher, se houvesse um homem de bastante coragem para afrontar aquele dragão! Este outro afirmava que ele não se lamberia com a proteção do carola Teles de Moura, se não fossem as legendárias relações de Mme. Brizard com o falecido Cônego Muniz, ex-redator de um jornal católico.
E choviam as insimulações, as denúncias: "Coqueiro era um hipócrita, um jesuíta! - Fingia-se muito devoto na escola para agradar ao professor Fulano; defendia a escravidão e a monarquia para lisonjear Beltrano; - se entrava numa pândega com os companheiros, no outro dia punha-se a dizer que só ele não se embebedara e não fizera papel triste! - se lhe tocavam em mulheres, o velhaco abaixava os olhos e ficava todo estomagado, e, debaixo da capa de santarrão, ia fazendo das suas! - Era um cão! um tartufo!
Toda essa má vontade contra João Coqueiro redundava em benefício de Amâncio, por quem alguns estudantes pareciam sentir verdadeiro entusiasmo. Na Faculdade de Medicina não se encontrava um só rapaz a favor daquele; ao passo que este tinha por si quase toda a Politécnica. Nas duas escolas falava-se muito em "exploração, em roubo, em piratagem". A cifra dos bens de Amâncio, à medida que passava de boca a boca, ia tomando proporções fabulosas, faziam-na de mil, quatro mil, dez mil contos de réis. Paiva era agora requestado pelos colegas, como um boletim sanitário que traz os últimos telegramas da guerra. Por saberem de sua intimidade com o réu e das visitas cotidianas que ele fazia à casa de correção, não o largavam um só instante; cercavam-no, cobriam-no de perguntas: "Como estava Amâncio, se triste, abatido, desesperançado, ou se alegre, indiferente, risonho?!... E a tal Amelinha dos camarões?... que fazia? como se portava no negócio? - ia visitar o amante? escrevia-lhe? aparecia a alguém! comprazia-se com a desdita do preso ou era solidária nos sofrimentos dele?"
Paiva respondia para todos os lados, não tinha mãos a medir; os espíritos, porém, longe de se acalmarem com isso, mais se sofregavam e acendiam. A impaciência tomava o lugar da curiosidade: um sobressalto febril, de jogo, preava o coração dos estudantes; os ânimos palpitavam na expectativa de um desfecho escandaloso. Previam-se, com arrepios de gozo antecipado, o impudico espetáculo dos depoimentos, as brutais declarações dos médicos e todo o cortejo descomposto de um júri de desfloramento.
O artigo 222 do Código Criminal lá estava pairando nos ares, cínico e espetaculoso como o flammeum de Nero no banquete de Tigelino.
* * *
Campos, entretanto, não podia descansar com a idéia daquela desgraça. Abandonava tudo, esquecia os próprios interesses para correr às bancas dos advogados, consultando, propondo defesas; mais tonto, mais aflito do que se tratasse de salvar um filho.
A situação relacionara-o com Dr. Tavares, o qual, um pouco em represália a Coqueiro por havê-lo despedido de casa, sem as explicações devidas ao seu alto merecimento, e um pouco talvez na esperança de lucros pecuniários, mostrava-se ferozmente empenhado na questão. Nunca esteve tão verboso, tão cheio de entusiasmo e tão fecundo em citações latinas. Viam-no, a cada passo, em todos os grupos da Rua do Ouvidor, berrando, gesticulando sobre o assunto, como se tudo aquilo lhe tocasse diretamente.
- É incontestável, exclamara ele a quem lhe caía nas garras - é incontestável que Amâncio foi vítima de uma arbitrariedade! E esse delegado das dúzias que, sem mais nem menos, o mandou recolher à prisão - prevaricou! Prevaricou, principalmente porque Amâncio nada mais fez do que desflorar mulher virgem maior de dezessete anos, o que, perante a nossa lei, não constitui crime! Por conseguinte, a prisão preventiva não devia ser efetuada!
E a sua voz, aguda e sistemática, repetindo a frase friamente obscena da lei, causava no auditório o efeito vexativo que nos produz um cadáver nu.
Hortênsia já se escondia no quarto, quando o maçante se lhe pespegava em casa.
- Ah! Ele havia de mostrar a esses advogadozinhos de meia tigela, os quais, mal surge um processo andam a oferecer-se como protetores de qualquer uma das partes e acabam sempre por comprometer a causa! - Ele havia de mostrar o que é dignidade e retidão na justiça! E, se não tivesse outro meio escreveria uma série de artigos quer os poria a todos na rua da amargura! Campos, havia de ver!
E, chegando-se para este, em atitude misteriosa:
- Mas o senhor, justamente, é quem me podia ajudar se quisesse!...
- Ajudá-lo?
- Sim! Nós dois, brincando, dávamos cabo da panelinha de Coqueiro! Que julga? Sei tudo! Vi - com estes olhos! Sei, melhor que ninguém, como se armou a cilada ao pobre moço!
Campos declarou que, em benefício de Amâncio, estava pronto a fazer o que fosse preciso.
- Encarrega-se da publicação dos artigos?! exclamou o advogado.
- Pago-os até a quem os fizer... disse Campos - contanto que isso aproveite o rapaz! Todo o meu desejo é livrá-lo o mais depressa possível! É uma questão de consciência!
- Pois então, meu caro amigo, pode escrever que, ou o seu protegido não sofrerá o menor desgosto ou leva o diabo a caranguejola desta justiça de borra! Sou eu quem o afirma! Amanhã mesmo trago-lhe o primeiro artigo! Verá!
- Está dito!
Mas, nesse mesmo dia, quando Campos se dispunha a sair de casa, para ir entender-se com Saldanha Marinho que parecia resolvido a tomar a causa de Amâncio, entregaram-lhe uma carta.
Era de Coqueiro e dizia simplesmente: "Para que V. S. não continue iludido e não se sacrifique por quem não lhe merece mais do que o desprezo, junto remeto-lhe um documento que nos torna quase companheiros de infortúnio e que lhe dará uma idéia justa do caráter desse moço perverso, cuja intenção ao lado de sua família era desonrá-la como desonrou a minha!"
O negociante desdobrou, a tremer, o papel que vinha incluso e leu aquela célebre carta subtraída por Amélia alguns tempos antes.
Não quis acreditar logo no que via escrito. Uma nuvem passara-lhe diante dos olhos. "Mas não havia dúvida! Era a letra de Amâncio, era a letra daquele miserável, por quem ele ultimamente passara dias tão penosos!"
- Que ingratidão! E Campos que o tinha na conta de um rapaz honesto!... Como vivera iludido!... Agora, dava toda a razão a Coqueiro! Calculava já o que não teria feito o biltre na casa de pensão!
As tais pontas de mefistofélico iam desaparecendo da cabeça do irmão de Amélia para se revelarem na cabeça de Amâncio.
- E Hortênsia?! gritou-lhe de surpresa o coração.
-Ah! Por esse lado estava tranqüilo!... Por ela meteria a mão no fogo! - Demais, o teor da carta bem claro mostrava que o infame não conseguiria seus lúbricos desígnios! - no desespero brutal palavras via-se indubitavelmente que a "virtuosa senhora" fechara ouvidos ao malvado!
Mas, como se podia conceber tanta perversidade e tanta hipocrisia em uma criatura de vinte e poucos anos?!... E lembrar-se Campos de que, ainda naquela manhã, nem conseguira almoçar direito, de tão preocupado que estava com o destino de semelhante cachorro!...
Agora, nem de longe queria ouvir falar de Amâncio ou do que este se referisse. As suas boas intenções sobre o rapaz fugiram de um só vôo e o coração esvaziou-se-lhe de repente, como um pombal abandonado.
Mas ainda lá ficou uma idéia branda e compassiva que respeitava ao ingrato; ainda lá ficou uma mesquinha pomba esquecida, que já não tinha forças para acompanhar a revoada das companheiras - era a comiseração inspirada pela mãe do criminoso. Essa ficou.
- Que desgraça da infeliz senhora! possuir um filho daquela espécie!
E Campos, com as mãos cruzadas atrás, encaminhou-se lentamente para o segundo andar, em busca da mulher.
Não a acusou; não lhe fez de leve uma pergunta de desconfiança; apenas disse, pondo-lhe a carta defronte dos olhos:
- Mira-te neste espelho!
Hortênsia ficou lívida.
- Vê tu em que eu me metia!... acrescentou ele. - Defender aquele miserável! Calculo quanto não te incomodaste, minha santa!
E beijou-a na testa.
Ela sacudiu os ombros numa expressão de confiança na própria virtude: - O marido a conhecia bem, para que pudesse recear uma deslealdade de sua parte!
Logo, porém, que lhe escapou da presença, sentiu uma grande vontade de chorar. Correu ao quarto, fechou-se por dentro, e atirou-se à cama, abafando os soluços com os travesseiros que se inundavam.
* * *
Era um desespero nervoso, uma estranha mágoa por alguma coisa que ela podia determinar o que fosse, mas que só se abrandava com aquela orgia de lágrimas. Sentia gosto em vertê-las, abundantes, fartas, como se as derramasse no fogo que a devorava.
Não obstante, ao receber aquela carta, ainda lhe sobejara coragem para responder, sem afrouxar nos seus princípios de honestidade; mais, agora, uma súbita transformação ganhava-lhe os sentidos e parecia chamar-lhe à cabeça as ondas quentes de seu sangue revolucionado.
- E quem não se revoltaria, pensava Hortênsia - defronte da sorte tão contrária do lastimável moço, cujo grande crime consistia apenas no muito amor que ela lhe inspirara?... Ah! Era isso decerto o que a enchia de aflição e desalento! - era a desgraça dessa pobre criatura, contra a qual tudo parecia conspirar como se um gênio fantástico e mau a perseguisse! Que seria agora do mísero, sem a proteção de Campos?... Que seria do desgraçado, sem esse último companheiro que lhe restava no meio de tamanhas lutas?...
Violou uma donzela, é verdade! Mas deveriam responsabilizá-lo por isso?... Seria ele o verdadeiro culpado ou simplesmente uma vítima?... Falava-se tanto nos costumes de toda aquela gente de Coqueiro!... rosnavam com tanta insistência sobre os planos, os cálculos, as armadilhas tramadas ao dinheiro do rapaz!... De que lado estaria a razão?... E, quando se revoltassem todos contra o infeliz, teria ela, Hortênsia, o direito de fazer o mesmo?... Não lhe caberia grande parte na culpa que o acusavam? não poderia ela, só ela, ter evitado aquilo tudo com uma simples palavra de amor?... Por que, afinal o que lançou Amâncio nos braços da tal rapariga?... Foi a paixão? foi a beleza? foi o talento? - não! foi unicamente o despeito! foi o delírio, o desespero de um coração repudiado! - Sim, sim! Tudo aquilo sucedera, porque ela o repelira; porque ela, a imprudente, fechara-lhe os braços, quando o desgraçado, louco de paixão, lhe suplicava por tudo um bocado de amor, um pouco de caridade!...
Antes tivesse cedido!...
E embravecia-lhe o pranto. - Antes tivesse, porque, se assim fosse, o pobre moço, com certeza, não pensaria na outra! - Mas o infeliz, coitado! viu-se aflito, enraivecido, sofrendo, sabe Deus o quê! e sucumbiu, ora essa! sucumbiu por desalento, talvez por vingança, talvez por não ter outro remédio! - Não! definitivamente sentia muito pena daquele desditoso rapaz!
Amava-o agora. Seu espírito atrasado e muito brasileiro descobria nele uma vítima de fatalidades amorosas, e esse prisma romântico emprestava ao estudante uma irresistível simpatia de tristeza, uma deliciosa atração de desgraça.
Hortênsia sonhava-o "pálido, melancólico, desprezado no fundo de uma prisão, tendo por leito - um catre abominável, por única luz - uma trêmula aresta do sol que se filtrava pelas grades negras do cárcere".
E aquela encantadora figura do prisioneiro, com a cabeça languidamente apoiada nas mãos, os olhos úmidos de pranto, os cabelos em desalinho, sobre a fronte - a penetrava toda, enchia-lhe o coração, num aflitivo transbordamento de lágrimas.
- Oh! Aquela adorável figura de vinte anos sofria tudo aquilo porque a amava! - porque uma paixão insensata lhe entrara no peito; sofria porque Hortênsia recusara os beijos que o desventurado lhe pedira com tanta febre e com tanta ansiedade.
Pobre moço! Pobres vinte anos! dizia ela quase com as mesmas frases do marido. - Mas por que se haviam de ter vistos?... por que se haviam de amar?...
E a mulher de Campos, que até aí não sentira dificuldade em resistir às seduções do estudante, agora, fascinada pela dramatização daquela catástrofe que o heroificava, via-o belo, indispensável, grande na sua situação especial, conhecido das mulheres, temido e odiado dos homens, vivendo na curiosidade do público, percorrendo todas as fantasias, sobressaltando todos os corações.
E o contraste da sofredora condição em que o via presentemente com as atitudes brilhantes que ele outrora estadeara naquela própria casa, quando, de taça em punho, espargia a sua bela palavra quente e sonora, prendendo a atenção de velhos e moços, dominando, conquistando - esse contraste ainda mais a arrebatava para ele com toda a violência de uma alucinação.
Não mais se possui - um desgosto mofino apoderou-se dela; ficou insociável e muito triste; entregou-se a longas leituras místicas, acompanhando com interesse amores infelizes, lentos martírios da alma, que só terminavam no esquecimento da morte ou do claustro. Decorou entre lágrimas a carta do réu.
- Como ele me amava! dizia soluçando - como ele sofria, quando arrancou do coração estas palavras, ainda quentes do seu sangue!
De sorte que, ao lhe comunicar o marido a resolução de escrever a Amâncio, remetendo-lhe a terrível carta denunciadora e prevenindo-o de que lhe retirava a sua amizade, ela, com uma agonia a sufocá-la, resolveu também escrever ao moço uma carta que servisse, ao menos, para suavizar o golpe da outra.
* * *
O estudante, no dia seguinte, recebia na prisão as duas cartas.
Não se pode determinar qual delas o surpreendeu mais; notando-se, porém, que a de Campos produziu completo o efeito a que se propunha; ao passo que a outra, em vez de o consolar, enraiveceu-o.
- Pois aquela mulher ainda não estava satisfeita e queria insistir nas suas provocações?... Ela talvez fosse a culpada única de tudo que de mau lhe acontecera! - A coisas não tomariam decerto o mesmo caminho, se a maldita não lhe fizesse as negaças que fez e não lhe acordasse desejos que se não podiam saciar! - E agora?... além de perder a amizade de Campos, justamente quando mais precisava dela, havia de suportar a prosa lírica da Sr.ª D. Hortênsia!... "Que estava arrependida, que o adorava, que seria capaz de tudo por lhe dar um momento de ventura e que o esperava de braços abertos, logo que ele se achasse em liberdade."
Fosse para o inferno com as suas adorações! Diabo da pamonha! "Que o esperava de braços abertos!" Era quanto podia ser! Aquilo até lhe cheirava a debique! Aquilo parecia um insulto a sua desgraça, a sua terrível posição!
E chorava, o infeliz, chorava como se quisesse vingar nas lágrimas.
Depois da carta de Hortênsia, a vida se lhe fazia mais escura e mais apertada entre as paredes da sua prisão. Quase que já não podia agüentar a presença de Paiva, de Simões e de alguns outros colegas que lá iam. No meio das sombras, progressivamente acentuadas em torno dele, só a imagem tranqüila e doce de sua mãe permanecia com a mesma consoladora suavidade; sempre aquela mesma carinhosa figura de cabelos brancos, aquele corpo fraco, vergado e tão mesquinho que parecia pequeno demais para sustentar tamanho amor.
- Minha mãe! Minha santa mãe! exclamava o preso, quando seu espírito, esfalfado pelas desilusões, precisava remancear ao abrigo morno e quieto de um bom pensamento.
- Minha santa mãe!
XXI
Três meses depois, a Escola Politécnica e a Escola de Medicina apresentavam o quente aspecto de um sedição. - Amâncio fora absolvido.
Os estudantes formigavam assanhados como se acabassem de ganhar uma vitória. O nome do nortista era repetido com transporte; um grupo enorme de rapazes, capitaneado pelo Paiva Rocha e pelo Simões, aguardava o colega à saída do júri, para o conduzir em triunfo ao Hotel Paris, onde havia à sua espera um almoço e a banda de músicas alemães.
Fora muito extenso o último júri, quarenta horas seguidas; a defesa de Amâncio principiou à meia-noite e acabou às seis da manhã. O advogado, que "estava feliz como nunca", ainda aproveitou engenhosamente essa circunstância para afestoar o remate de seu pomposo discurso: "Não queria que o rei dos astros se envergonhasse com aquele nojento espetáculo de pequenas misérias! Não queria que o Sol tivesse de corar defronte de semelhante tolina! Pedia que se varressem de pronto as consciências; que se descarregassem os espíritos, para que limpamente recebessem a esplêndida visita da aurora! - Aí chegava o dia! aí chegava a luz, enxotando os fantasmas tenebrosos da noite e precipitando-os em debandada pelo espaço!
"Pois bem! Pois bem, meus senhores! Se ainda permanece nos vossos espíritos alguma sombra, alguma dúvida, alguma opinião vacilante sobre a inocência daquele pobre mancebo... (e mostrava Amâncio com um gesto supremo) - que essa dúvida se apague! que essa opinião vacilante se resolva na luz que nos assalta! que essa última sombra da noite se retire espavorida de envolta com as últimas sombras da noite que foge!"
- Bravo! Bravo! Apoiado! Muito bem!
E, no conflito da luz fresca, que entrava pelas janelas do edifício, com a luz vermelha do gás que amortecia, as palavras retumbantes do orador tomavam uma expressão de trágica solenidade. E os rostos lívidos e tresnoitados iam se esbatendo nas sombras da sala, como pálidas manchas brancas que se dissolvem.
Ninguém saíra antes de terminar a defesa; um empenho nervoso os prendia ali; as palavras do advogado eram aplaudidas com febre - todos queriam a absolvição de Amâncio.
Às nove horas da manhã a cidade parecia ter enlouquecido. Interrompeu-se o trabalho; os empregados públicos demoravam-se na rua; os cafés enchiam-se com a gente que vinha do júri. À porta das redações dos jornais não se podia passar com o povo que se aglomerava para ler as derradeiras notícias do processo, pregadas na parede à última hora.
Por toda a parte discutia-se a brilhante defesa de Amâncio de Vasconcelos: "Estivera magnífica! - Surpreendente! - Uma verdadeira obra-prima! uma glória para o advogado Fulano!" Repetiam-se frases inteiras do imenso discurso; faziam-se comparações: "Maître Lachaud não se sairia melhor!"
A Rua dos Ourives estava quase intransitável com a multidão que se precipitava freneticamente para ver sair o absolvido. À porta do júri, o tal grupo de estudantes capitaneado pelo Paiva, esperava-o formando alas ruidosas. Tudo era impaciência e sofreguidão.
Afinal, apareceu o homem. Vinha muito pálido e um pouco mais magro.
Ouviu-se então um rugido formidável que se prolongava por toda a rua. Os chapéus agitaram-se no ar.
- Viva Amâncio de Vasconcelos!
- Vivô! repetiram os colegas.
- Morram os locandeiros!
- Morram os piratas.
Amâncio passava de braço a braço, afagado, beijado, querido, como uma mulher formosa.
Mas Paiva e Simões apoderaram-se dele, e, seguidos pelo enorme grupo de estudantes, puseram-se a caminho para o hotel, entre as contínuas exclamações de entusiasmo, que rompiam de todos os pontos.
Entraram na Rua do Ouvidor. Por onde passava o bando alegre dos rapazes, um rumor ardente, ancho de vida, enchia a rua num delírio de vozes confundidas. As portas das casas comerciais atulhavam-se de gente; pelas janelas dos dentistas, das costureiras e dos hotéis, surgiam com o mesmo alvoroço, cabeças femininas de todas as graduações: - senhoras que andavam em compras; raparigas que estavam no trabalho, professoras de piano, atrizes, cocotes; e, em todas igual sorriso de pasmo, olhares incendiados, bocas entreabertas a balbuciar o nome de Amâncio. Braços de carne branca apontavam para ele num tilintar nervoso de braceletes.
- É aquele! diziam. - Aquele, moreno, de cabelo crespo, que ali vai!
- Mamãe! mamãe! gritavam doutro lado - venha ver o moço rico que saiu hoje da prisão!
E flores desfolhadas choviam-lhe sobre a cabeça, e os lenços de renda borboleteavam e iam cair-lhe aos pés, como uma provocação, e olhares de amor entornavam-se das janelas entre o ruidoso e pitoresco cata-sol das mulheres em grupo.
E Amâncio, tonto de prazer caminhava no meio dos amigos, abraçado a um grande ramo de flores naturais, que um preto lhe acabava de entregar e em cuja larga fita pendente via-se o nome dele em letras de ouro. Era uma lembrança de Hortênsia.
E o bando crescia sempre. O Largo de São Francisco já estava cheio e ainda a Rua do Ouvidor não se tinha esvaziado.
Ao passar pela Escola Politécnica, ouviram-se estalar foguetes e os vivas a Amâncio e à Liberdade reproduziram-se com mais veemência. Os músicos alemães responderam da porta do hotel com a Marselhesa. - A vertigem chegou então ao seu cúmulo, inflamada pela vibração corajosa dos instrumentos de metal. A Rua do Teatro, o Rocio e todos os becos e travessas circunvizinhas já se achavam tolhidas de povo; as janelas do Hotel Paris destacavam-se embandeiradas e cheias de gente, como nos dias de carnaval. E aquela festa, ali, no coração da cidade, tomava um largo caráter de manifestação pública.
Já ninguém se entendia com o estardalhaço das vozes, da música e dos foguetes. Amâncio, carregado em triunfo nos ombros dos colegas, entrou no hotel ao som do grande hino, chorando de comoção e agitando freneticamente o seu velho chapéu de feltro desabado e boêmio.
Francesas de cabelo amarelo desciam com espalhafato ao primeiro andar de Paris, para ver de perto o "tipo da ordem do dia", o belo moço de que todo o Rio de Janeiro se ocupava naquele momento - o herói daquele romance de amor que havia meses apressava tantos espíritos e sobressaltava tantos corações.
Ele, que até aí parecia sufocado e não dera palavra, como que despertou as primeiras notas da Marselhesa e recobrou de súbito a sua equatorial verbosidade de brasileiro nortista; acederam-se repentinamente as faces: os olhos luziram-lhe como duas jóias, e a sua voz era já segura e vibrante quando ao teto voaram as primeiras rolhas de champanha.
E, de pé, dominando a extensa mesa coberta de iguarias, a taça erguida ao alto, o corpo torcido em uma posição teatral, desencadeou o seu verbo apaixonado e brilhante.
* * *
Entretanto, a essas horas, Coqueiro se dirigia tristemente para casa. As mãos cruzadas atrás, a cabeça baixa, as sobrancelhas franzidas, como o ar trágico de um herói vencido.
Vira e ouvira tudo!
Oculto num botequim, vira passar o bando fogoso dos colegas que festejavam o amante de sua irmã; ouvira os "morras ao locandeiro! ao pirata!" ouvira as galhofas, os risos de escárnio, que lhe atiravam como a um inimigo de guerra. E uma raiva negra, um desespero surdo e profundo entraram-lhe no corpo que, nem um bando de corvos, para lhe comer a carniça do coração. Um duro desgosto pela vida o levava a pensar na morte, revoltado contra o mundo, contra a sociedade, contra sua família, contra a hora em que nascera.
- Maldito fosse tudo isso! Malditos seus pais! sua pátria! suas convicções! Malditas as leis todas que regiam aquela miserável existência!
Chegou lívido, sombrio, com os lábios a tremer na sua comoção mortífera. Um silêncio fúnebre enchia a casa; dir-se-ia que acabava de sair dali um enterro. Amélia chorava fechada no quarto e Mme. Brizard, estendida na preguiçosa, tinha a cabeça entre as mãos e meditava soturnamente. Sobre a mesa o almoço há horas esfriava, esquecido e às moscas.
É que já sabiam do terrível desfecho do júri: - Amâncio estava livre, senhor de si por uma vez! podendo ir para a província quando bem quisesse, porque, além de tudo, nem o dinheiro lhe faltava!...
- E eles que ali ficassem, a roer um chifre! - sem recursos, e obrigados a ocupar aquela casa, que era o preço de sua desonra comum.
- Mas, o culpado foste tu e tu! berrou de supetão Mme. Brizard, erguendo-se da cadeira com um movimento de cólera. - Se me tivesse ouvido, não ficarias agora com essa cara de asno. "Quem tudo quer, tudo perde!" Foi bem-feito, para que, de hoje em diante, preste mais atenção ao que te digo! - Agora - pega-lhe com trapos quentes!
O marido deixou cair a cabeça sobre o peito e quedou-se a fitar o chão. Mme. Brizard, depois de voltear agitada pela sala, acrescentou:
- Se fosse o único a sofrer as conseqüências de tuas cabeçadas - vá! Mas é que nós todos temos de as agüentar! Agora só quero ver como te arranjar! onde vais tu descobrir dinheiro para sustentar a casa! É preciso ser muito cavalo, para ter a fortuna nas mãos e atirá-la pela janela fora! Agora é que eu quero ver! Anda! Vai arrajnar hóspedes! Vê se descobres um novo Amâncio! ou quem sabe se contas viver do que der o cortiço da Rua do Resende?! Fizeste-a bonita; os outros que amarguem!...
Calou-se por um instante, arquejando, mas repinchou logo:
- Olha! Por estes três meses já podes avaliar o que não será o resto! - Não há mais um punhado de farinha em casa; a companhia já ontem nos cortou o gás, porque não lhe pagamos o trimestre vencido; o último criado que nos restava foi-se há mais de quatro semanas, dizendo aí o diabo; só nos resta a mucama, que é aquele estafermo que sabemos; o Eiras reclama todos os dias do tratamento de Nini! - E tu!.. tu! - sem um emprego, sem um rendimento, sem nada! - Então?! E pôs as mãos nas cadeiras, com um riso abominável de ironia. Então?! Estamos ou não estamos arranjadinhos?!... O que te afianço é que não me sinto nada disposta a tornar ao inferno da existência que curti na Rua do Resende! Vê lá como te arranjas!
Coqueiro fugiu para o quarto, sem responder à mulher. "Tinha medo de fazer um despropósito!"
- Que miséria de vida, a sua! refletia ele. - Nem ao menos a própria família o consolava! Por toda a parte a mesma perseguição, o mesmo ódio, a mesma luta! - Que seria de si?! que fim poderia ter tudo aquilo?! Onde iria cavar dinheiro para manter os seus?! - E as custas do processo, e as despesas que fizera?! - O alferes e o homem da venda exigiam o pagamento do que depuseram contra Amâncio a quem mal conheciam de vista; aquele o ameaçava com um escândalo, se Coqueiro não lhe "cuspisse ali os cobres"; o outro o abocanhava pela vizinhança, fazendo acreditar que o devedor era, nem só um caloteiro como um bêbado!
E não havia dinheiro para nenhuma dessas coisas!
- Um inferno! um verdadeiro inferno! - Os moradores da Rua do Resende há que tempos que não pingavam vintém; - Damião estava já pelos cabelos para arriar a carga: "Não podia mais aturar semelhante corja!" dizia e contava até que um dos inquilinos lhe tentara chegar a roupa ao pelo por questões de aluguéis.
E Coqueiro viu arrastar-se todo aquele mau dia na mesma inferneira.
À noite, foi preciso acender velas em substituição do gás suprimido. Amélia não comera desde a véspera e queixava-se agora de muitas dores na cabeça, náuseas, tonturas de febre e um fastio mortal; apareciam-lhe por todo o corpo pequenas manchas roxas. Mme. Brizard só abria a boca para fazer novas recriminações e praguejar; na sua cólera chegara a dar alguns tabefes no filho, e este rabujava a um canto, embesourado e casmurro.
- Antes morresse! antes, mil vezes antes! repisava Coqueiro, sentindo-se esmagar debaixo daquele desmoronamento. - Que faria agora de uma irmã prostituída, e de uma mulher desesperada?!...
E as horas arrastavam-se pesadas como cadeias de ferro. A casa mal esclarecida tinha uma tristeza lúgubre de igreja deserta.
Afinal, Mme. Brizard foi para a cama com o filho, Amélia parecia mais tranqüila; só Coqueiro velava, só ele, com o seu desespero a triturá-lo por dentro.
Não podia sossegar um minuto - era deixar-se ir consumindo pelo sofrimento, até que a dor cansasse de doer e os tais bichos negros do coração lhe comessem o último bocado de carniça. Sentia, porém, uma espécie de volúpia pungente em reler as cartas anônimas que lhe enviaram durante o dia; encolerizava-se com isso, mas não podia deixar de as ler, como quem não resiste a tocar numa parte dolorida do corpo.
Três, nada menos do que três cartas anônimas, e cada qual a mais insultuosa e mais perversa; não lhe poupavam coisa alguma: - a vergonha real da situação, o ridículo que havia de o acompanhar para sempre, a ojeriza que o público lhe votava espontaneamente; tudo lá estava; tudo vinha descrito, com uma minuciosidade cruel, e com pequeninas considerações ultrajantes, com o terrível cuidado de quem se vinga.
E, para o efeito ser mais completo, falavam intencionalmente, com entusiasmo, nas conquistas e nas simpatias do outro, do querido, do "feliz"! Não se esqueciam da menor circunstância lisonjeira para Amâncio: - o modo pelo qual o receberam ao sair da prisão - os vivas - as flores desfolhadas sobre ele - os oferecimentos - as declarações de amor - os ramilhetes que lhe deram - os brindes; tudo, tudo fora metido ali, para ferir, para danar, para moer.
Reconheceu logo que uma das cartas era de Lúcia; as outras deviam ser de seus próprios colegas ou, quem sabe?... de algum velho inimigo já esquecido por ele! - Tanta gente saíra despeitada da sua casa de pensão!... Ser credor é ser algoz!... exigir pagamento de uma conta a quem não tem dinheiro é exigir a sua inimizade eterna! Além disso, com os seus modos secos e retraídos ele sempre fora tão pouco estimado na academia!... não tinha, como o "prosa" do Amâncio, gênio para agradar a todo o mundo; não tinha as lábias do outro: não sabia fazer "discursatas e falações" a propósito de tudo!... Era um infeliz, que todos evitavam - um leproso! um lazeiro!
E a dor, sem se resolver nas lágrimas que lhe faltavam, encaroçava-se-lhe por dentro, numa grande aflição.
- Agora, como se apresentar nas aulas?!... Com que cara suportar o riso sarcástico dos colegas?!... Como resistir à curiosidade brutal do público que o esperava impaciente por cuspir-lhe no rosto?!... Como passar debaixo daquelas mesmas janelas que despejaram flores sobre à cabeça de Amâncio?!... - Amâncio! o homem que dormiu meio ano com sua irmã!...
E maquinalmente foi à secretária e tirou o velho revólver que fora do pai.
Que estranhas recordações à vista daquela arma! daquela arma que na sua infância o fizera chorar tantas e tantas vezes!... Belos tempos que não voltam!...
E contemplava distraído os bonitos do revólver - os arabescos de prata e madrepérola com o brasão do velho Lourenço Coqueiro em ouro.
Rica peça! Artística, bem trabalhada; não se lhe enxergava sinal de ferrugem, nem desarranjo nas molas. - Também, que havia nisso para admirar se o dono tinha por ela uma espécie de fetichismo e andava sempre a bruni-la e a azeitá-la? Era o único objeto que lhe falava ainda das extintas grandezas do pai: Quantas vezes não ouvira ele cavaquear o pobre velho sobre as alegorias daquele rico brasão!... E quantas vezes, a tremer de medo, não o vira descarregar aquela mesma arma contra uma laranja que um escravo segurava com a mão erguida!
- Ah! bem que se recordava de tudo isso!... Parecia-lhe ouvir ainda gritar o pai, quando lhe metia à força o revólver entre os dedos. "Não! Isso agora hás de ter paciência! tu, ao menos, ficarás sabendo dar um tiro!
E, todavia, não fiquei sabendo... balbuciou o filho de Lourenço, a experimentar nos lábios o contato frio do cano de aço. - Não fiquei sabendo dar um tiro, que, se o soubesse, acabaria aqui mesmo com esta vida estúpida e miserável!...
Se eu tivesse ânimo... pensou ele, estremecido com a idéia da morte - amanhã encontrariam o meu cadáver e não ficariam naturalmente fazendo de mim um juízo tão triste e tão ridículo! - Talvez até chegassem a amaldiçoar o outro e erguessem em volta de meu nome uma legenda respeitosa e compassiva...
Foi à gaveta, havia lá algumas balas, carregou a arma.
- Não há dúvida, é a melhor coisa que eu poderia fazer... reconsiderava Coqueiro, imóvel, a olhar indeciso para o revólver que tinha na mão.
Mas era bastante chegá-lo contra a boca ou contra um dos ouvidos, para que os seus dedos logo se paralisassem e para que um arrepio muito agudo lhe corresse pela espinha dorsal.
Faltava-lhe a coragem.
Duas vezes ergueu-o à altura da cabeça, duas vezes o desviou, com as mãos trêmulas e o corpo entalado numa agonia insuportável.
- É horrível! resmungava ele. - É horrível!
Ia principiar de novo as tentativas, quando da rua uma forte matinada lhe prendeu a atenção. Um grupo se aproximava, entre cantarolas e algazarras de risos.
Eram dez ou doze dos últimos convivas de Amâncio; haviam passado todo o dia e grande parte da noite a folgazar no Paris; muitos, como o autor da pândega, lá ficaram prostrados pela bebida, mas aqueles tiveram a fantasia de um passeio matinal ao Jardim Botânico e meteram-se barulhosamente no bonde.
Já no Largo do Machado, um deles, um, que de há muito trazia Coqueiro atravessado na garganta, lembrou que seria mais divertido apearem-se ali e seguirem a Rua das Laranjeiras. "A casa do velhaco era a alguns passos - bem lhe podiam cantar uma serenata debaixo das janelas!"
A idéia foi bem acolhida, e a ruidosa farândola despejou-se pelo caminho das Laranjeiras num hilaridade pletórica de bêbados.
Só pararam defronte da porta de João Coqueiro. Através das vidraças e das cortinas de uma das janelas, viram transparecer dubiamente a trêmula morte-cor de uma luz avermelhada.
- Estás dormindo, ó Joãozinho dos camarões?! berrou cambaleando o que tivera a idéia daquela romaria. - Dorme, dorme! é assim que fazem os sem-vergonhas de tua espécie! - Vendem a irmã e põem-se a descansar no colchão que lhe deixou o amante!
Seguiu-se um estrupido de gritos e risos:
- Fora! fora!
- Fiau, fiau!
- Larga essa casa que não é tua, gritou aquele. - É da outra! Ganhou-a com o suor de seu rosto! - Sai, parasita!
- Sai! Sai!
E espoucavam gargalhadas no grupo, e os guinchos sibilantes iam até o fim da rua: - Fora.
- Fora!
- Fiau!
- Sai, cão!
- Deixa a casa, que não é tua! - Fora!
- Fora o cáften!
- Fiau!
Os vizinhos chegavam às janelas, vozeando furiosos contra semelhante berraria.
- É que o sucede a quem mora perto de um João Coqueiro! bradou um da turma.
- Quem mora junto ao chiqueiro sente o fedor da lama! gritou um segundo.
- Queixe-se à Câmara Municipal! acudiu outro.
E formidável matação foi de encontro à vidraça iluminada do chalé de Amélia.
Um dos vizinhos apitou e outro despediu um jarro de água sobre os desordeiros.
Ouviu-se logo o estardalhaço impetuoso dos gritos, das descomposturas e do crepitar dos vidros que se partiam sob um chuveiro de pedras.
- Morra o infame! bramia a malta, já de carreira para o Largo do Machado. - Morra o cáften!
* * *
João Coqueiro presenciara tudo aquilo, grudado a um canto da janela, mordendo os nós da mão, os olhos injetados, o sangue a saltar-lhe nas veias.
- Oh! Era demais, pensava ele desesperado. - Era demais tanta injúria! - Se Amâncio estivesse ali, naquela ocasião, por Deus, que o estrangulava!
Abriu a janela. O dia repontava já, mas enevoado e triste. Não havia azul; céu e horizontes de neblinas, formavam uma só pasta cor de pérola, onde vultos cinzentos se esfumavam.
O homem da venda abria também as suas portas. Coqueiro cumprimentou-o, ele respondeu com um risinho insolente, acompanhado de pigarro.
Uma caleça rodejava lentamente ao largo da rua, o cocheiro vergado sobre as rédeas, o seu casquete sumido na gola do capotão. Coqueiro fez-lhe sinal que esperasse, embrulhou-se no sobretudo, enterrou o chapéu na cabeça, meteu o revólver no bolso e saiu.
- Hotel Paris! disse ao da boléia, atirando-se no fundo da carruagem. O cocheiro endireitou-se sobre a almofada, espichou o pescoço, sacudiu as rédeas e os animais dispararam, assoprando grossamente contra o ar frio da manhã.
* * *
Coqueiro enfiou pela escadaria do hotel.
Estava tudo deserto e silencioso; apenas, no salão principal, viam-se um preto velho e um caixeiro desdormido que, entre bocejos, se dispunha a principiar a limpeza da casa.
Dir-se-ia que ali passara um exército de bêbados. Por toda a parte vinho derramado, copos partidos, cacos de garrafa e destroços do vasilhame que servira à mesa; o oleado do chão escorregava com uma crusta gordurosa de restos de comida e vômito pesinhado; um espelho ficara em fanicos e um aquário desabara, fazendo-se pedaços e alagando o pavimento, onde peixinhos dourados e vermelhos jaziam, uns mortos e outros ainda estrebuchando.
O preto, de gatinhas, em manga de camisa e calças arregambiadas, procurava desencardir o sobrado com um esfregão de coco, que ia embeber ao canto da sala numa tina cheia d’água; enquanto o caixeiro, a jogar o corpo, muito esbodegado, erguia o que estava pelo chão e empilhava as cadeiras sobre as mesinhas de mármore, ao comprido das paredes.
- Onde é o quarto do Amâncio? perguntou-lhe João Coqueiro.
- Amâncio?... repetiu aquele, emperrando mo meio da sala para fitar o interlocutor com um olhar morto de sono! - Ah! bocejou. - O tal moço do pagode de ontem?...
Coqueiro sacudiu a cabeça perpendicularmente.
- É cá, no número dois, mas escusa bater, que ele aí não está. Ficou lá em cima, no onze, com a Jeanete.
E, voltando ao serviço:
- Se ele não é coisa de pressa, o melhor seria procurá-lo mais logo... Deve estar agora ferrado no sono, que levou na pândega até as quatro e meia!...
Coqueiro voltou-lhe as costas e dirigiu-se para o segundo andar. Bateu à porta do n.º 11.
Ninguém respondeu.
Tornou a bater.
Bateu de novo.
- Qui est lá!... perguntou na rouquidão do estremunhamento uma voz de mulher.
- Preciso falar a esse rapaz que aí está, o Amâncio!...
Ouviu-se um farfalhar de panos, chinelas arrastaram, e em seguida a porta abriu-se cautelosamente, mostrando pela fisga um rosto gordo, de olhos azuis.
- Qui est lá!...
Mas Coqueiro, em vez de responder, afastou a porta com um murro e atirou-se para dentro do quarto; ao passo que Jeanete, esfandogada de medo, desgalgava em fralda o escadão que ia ter ao primeiro andar.
Amâncio, em uma cama muito cortinada e muito larga, dormia profundamente, de barriga para o ar, pernas abertas e braços atirados sobre a desordem das colchas e dos lençóis. No chão, ao lado do escarrador, um travesseiro caído, e em torno, por todo o desarranjo da alcova, roupas espalhadas.
Coqueiro olhou um instante para ele, sem pestanejar; depois, sacou tranqüilamente o revólver da algibeira e deu-lhe um tiro à queima-roupa.
Amâncio soltou um ai.
A segunda bala já não o pilhou, mas o irmão de Amélia, abstrado, pateta, continuava a disparar os outros tiros até que a arma lhe caiu das mãos.
Nisto, como se acordasse de uma vertigem, saiu a correr tropeçando em tudo. No primeiro andar uma polícia lançou-lhe as garras aos cós das calças e o foi conduzindo a sua frente, sem lhe dizer palavra.
Entretanto, Amâncio despertou com um novo gemido e levou ao peito as mãos que se ensoparam no sangue da ferida. Olhou em torno, à procura de alguém; mas o quarto estava abandonado.
Então, fechou novamente os olhos estremecendo, esticou o corpo - e um palavra doce esvoaçou-lhe nos lábios entreabertos, como um fraco e lamentoso apelo de criança: - Mamãe!...
E morreu.
XXII
Começou logo a reunir povo na porta do hotel. Faziam-se grupos; os repórteres andavam num torniquete; viam-se Piloto por toda a parte, irrequieto, farisqueiro; e o fato ia ganhando circulação, com uma rapidez elétrica. Pânico, sobressalto quebrava violentamente a plácida monotonia da Corte; mulheres de toda a espécie e de todas as idades, empenhavam-se com a mesma febre na sorte dramática do infeliz estudante, e Coqueiro, alado pela transcendência de seu crime, principiava a realçar no espírito público, sob a irradiação simpática e brilhante de sua corajosa desafronta.
Às dez horas da manhã já não se podia entrar facilmente no necrotério, para onde fora, sem perda de tempo, conduzido o cadáver de Amâncio, entre um cortejo imenso de curiosos.
Choviam as interpretações, os comentários sobre o fato; todos queriam dar esclarecimentos, explicar os pontos mais obscuros do grande sucesso. "A bala atravessara-lhe as regiões torácicas e fora cravar-se num osso da espinha", afirmava um homem alto, elegante, de cabelos brancos, cujo ar empantufado prendia a atenção demais.
Esse homem, que alguns tomavam por um médico, outros por qualquer autoridade policial; outros por um jornalista, outros por um dos professores da faculdade onde estudava o defunto, não era senão Lambertosa, o ilustre gentleman da casa de pensão da Mme. Brizard.
E, sempre distinto, sempre viajado, pronto sempre a explicar as coisas cientificamente, agitava a bengala afagando a barriga bem abotoada, e de pernas abertas, pescoço duro, ia estadeando a sua "grande intimidade" com o célebre morto; citando fatos, contando magníficas anedotas que se deram entre os dois.
- Ah! Era um moço de invejável talento! - Boa memória, compreensão fácil e gosto cultivado. Para a retórica ainda não vi outro... Não, minto! - em Londres, em Londres, confesso que encontrei um outro nessas condições!...
E punha-se a falar de Londres, e passava depois à França, à Itália, à Europa inteira, e chegaria até aos pólos, se alguém quisesse acompanhá-lo na viagem.
Muitos outros dos antigos inquilinos de Mme. Brizard também apareceram no necrotério. Lá esteve a pálida Lúcia, cheia de melancolia, a fitar o cadáver, em silêncio, com os seus belos olhos alterados pelo abuso das lunetas. Agora morava ela com o seu Pereira em Niterói, numa casa de pensão de um italiano, educador de cães e macacos. Era a terceira que percorria depois da Rua do Resende.
Lá esteve, de passagem, o Fontes, com as suas amostras de renda debaixo do braço; lá esteve o triste Paula Mendes, para fazer a vontade da mulher, que exigira ver a "vítima daquele grande cão"!; lá esteve o Dr. Tavares que parecia tomar cada vez mais interesse no "escandaloso assassinato". E, quem diria? até lá esteve o esquisitão do Campelo que muito dificilmente se abalava com as questões alheias.
Por toda a cidade só se pensava no "crime do Hotel Paris"; os jornais saíam carregados de notícias e artigos sobre ele, esgotavam-se as edições da defesa e da acusação de Amâncio; vendia-se na rua o retrato deste em todas as posições, feitios e tamanhos; moribundo, em vida, na escola, no passeio. E tudo ia direto para os álbuns, para as paredes e para as coleções de raridades.
Hortênsia, quando lhe constou o terrível desfecho daquele episódio que, na sua fantasia romântica, tomava as proporções de um poema, caiu sem sentidos e ficou prostrada na cama por uma febre violenta. Durante esse tempo, o marido procurava na prisão o assassino para lhe oferecer os seus serviços e pôr à disposição dele o dinheiro de que precisasse. "Coqueiro podia ficar tranqüilo - nada havia de faltar à família, nem a pensão de Nini."
E foi em pessoa dar as providências para o enterro do outro.
O funeral atingiu dimensões gigantescas: parecia que se tratava da morte de um grande benemérito da pátria.
Por influência do advogado de Amâncio, que era político e bem relacionado, compareceram muitos figurões e até alguns homens do poder. Houve senadores, ministros em vigor, titulares de vários matizes, altos funcionários públicos, artistas de nome, doutores de toda a espécie, clubes de todas as ordens, ordens de todas as devoções, jornalistas, negociantes, empresários, capitalistas e estudantes; estudantes que era uma coisa por demais.
A cidade inteira abalou-se, demoveu-se, para deixar passar aquela estranha procissão de um magro cadáver de vinte anos.
Veio muita gente dos arrabaldes. De todos os cantos do Rio de Janeiro acudia povo e mais povo a ver o enterro. As ruas, os largos, por onde ele ia, ficavam acogulados de gente; os garotos grimpavam-se aos muros, escalavam as árvores, subiam às grades das chácaras; as janelas regurgitavam, como num domingo de festa.
O caixão foi carregado a pulso, coberto de coroas; no cemitério ninguém se podia mexer com a multidão que afluía.
Um delírio!
E no dia seguinte, descrições e mais descrições jornalísticas; necrológicos, artigos fúnebres, notícias biográficas e poesias dedicadas à "triste morte daquelas vinte primaveras".
E, o que é mais raro, o fato não caiu logo no esquecimento, porque aí estava o novo processo do assassino para lhe entreter o calor, à feição de um banho-maria.
Continuavam, pois, as notícias jurídicas; Coqueiro popularizava-se, ia conquistando opiniões e simpatias; ia aos poucos se instalando no lugar vago pelo desaparecimento do outro. Muitos colegas se voltavam já a favor dele; até Simões - até Paiva!
Paiva, sim! que agora, completamente restaurado com as roupas herdadas de Amâncio, deixava-se ver amiúde nos pontos mais concorridos da cidade e, entre as palestras dos amigos, mostrava-se todo propenso a justificar o ato do irmão de Amélia.
- Não! dizia ele, quando lhe tocavam nesse ponto - não! Coqueiro andou bem!... Eu, se tivesse uma irmã, fosse ela quem fosse, faria o mesmo naturalmente!...
* * *
Entretanto, pouco depois do enterro, no meio do burburinho de passageiros chegando no vapor do Norte, uma senhora já idosa, coberta de luto, saltava no cais Pharoux.
Vinha acompanhada por uma mulata, que trazia constantemente os braços cruzados em sinal de respeito, e por um velho gordo e bem vestido, cujas maneiras faziam adivinhar que ele ali não passava de um simples companheiro de viagem.
Como se já tivessem resolvido no escaler o que deviam fazer logo que saltassem, o velho, mal se viu em terra, chamou por um carroceiro, deu a este a sua bagagem com o competente endereço, fez sinal à mulata que seguisse a carroça e, depois de ajudar a senhora a sair do bote, perguntou, solicitamente, se ela queria tomar um carro.
A senhora, muito inquieta, respondeu que preferia ir a pé, e os dois, de braço dado, puseram-se a andar na direção da Rua Direita.
Essa senhora era D. Ângela, a mãe de Amâncio.
Campos já lhe havia escrito, comunicando a prisão do filho. A princípio, não se achou com ânimo de falar nisso à pobre mãe; mas seus escrúpulos fugiram totalmente; desde que lhe chegou às mãos aquela terrível denúncia de Coqueiro.
Ângela não esperava pelo golpe, e ficou a ponto de perder a cabeça. "Como?! Seria crível?... Seu filho, seu querido filho na prisão, com um processo às costas e sem ter quem lhe valesse!... Ó Santo Deus! Santo Deus! que isso era demais para um pobre coração de mãe! - Que mal teria ela feito para merecer tão grande castigo?!"
E resolveu seguir para a Corte, imediatamente, no mesmo vapor. Sentia-se corajosa, capaz de todas as lutas, de todas as violências, para salvar seu filho. Esqueceu-se de seus achaques, do estado melindroso de seu peito, para só cuidar dele; só pensar nessa criatura idolatrada que valia mais, no fanatismo de seu afeto, do que todas as grandezas da terra, todos os esplendores do mundo e todas as potências do céu.
- Oh! Haviam de restituir-lhe o filho!... Ela estava resolvida a atirar-se aos pés dos juizes, das autoridades, do Imperador se preciso fosse, para resgatá-lo! - Não era possível que só encontrasse corações tão duros, que resistissem a tanta lágrima, a tamanha dor e a tamanho desespero!
No primeiro paquete achava-se a bordo, apenas seguida de uma escrava que, entre as suas, lhe merecia mais confiança.
Mas, agora, pelo braço de um estranho que a não desamparava por mera delicadeza, ou talvez por compaixão; agora, no grosseiro tumulto do cais, estremunhada no meio daquela gente desconhecida - a infeliz sentia-se fraquejar. Não sabia que fazer - se ir em busca de Campos ou correr à toa por aquelas ruas, a gritar pelo filho, e reclamá-lo daquele mundo indiferente que formiga em torno de sua perplexidade.
E, por mais que se quisesse fingir forte, uma aflição crescia-lhe dentro e tomava-lhe a garganta. Tremiam-lhe as pernas e os olhos marejavam-se-lhe de lágrimas.
- Mas V. Exª. não disse que seu filho morava nas Laranjeiras?... perguntou o velho, compreendendo a perturbação de Ângela.
- Sim, foi para aí que ele me mandou dirigir as cartas... Tenho até aqui comigo o número da casa, mas, depois disso, já recebi a tal notícia da prisão, e...
- Bem, interrompeu o outro - o mais certo é irmos até lá. - Se não encontrarmos o rapaz, havemos de achar alguém que nos dê informações. É mais um instante! Eu ainda posso acompanhá-la; não tenho pressa; o melhor, porém, seria tomarmos um carro.
- Não, não! respondeu a senhora, sempre inquieta, a olhar para todos os lados, como se esperasse, por um acaso feliz, descobrir Amâncio, de um momento para outro.
Estavam já na Rua Direita. Ela, de repente, estacou e pôs-se a fitar a vidraça de um armarinho.
- Algum conhecido? perguntou o velho.
- Não. É que estes chapéus... tenha a bondade de ver se consegue ler aquele nome... eu, talvez me enganasse...
O velho leu distintamente "à Amâncio de Vasconcelos". - É o título! disse. - Eles agora batizam as mercadorias com os nomes que estão na moda. Algum tenor!
- É singular!... balbuciou a senhora.
- Por quê?
- É esse justamente o nome de meu filho.
- Oh! Não há só uma Maria no mundo!...
Mas D. Ângela fugira-lhe outra vez do braço para correr a uma nova vidraça. Eram agora bengalas e gravatas "à Amâncio de Vasconcelos" que lhe prendiam a atenção.
Acabavam de entrar na Rua do Ouvidor.
- Vê?... interrogou ela, muito preocupada e procurando esconder a comoção. - Ainda!
- Ah! fez o companheiro, já impaciente. - V. Exª. vai encontrar o mesmo por toda a parte. - É o costume! Olhe! Se me não engano, lá está o retrato do tal Amâncio! Tenha a bondade de ver!
D. Ângela aproximou-se do retrato, correndo, e soltou logo uma exclamação:
- Mas é ele! É meu filho! o meu Amâncio!
E começou a rir e a chorar muito perturbada.
O velho, meio comovido e meio vexado com aquela expansão em plena Rua do Ouvidor, principiava talvez a arrepender-se de ter sido tão cavalheiro com Ângela, quando esta, que estivera até aí a percorrer, como uma doida, outros mostradores, arrancou do peito um formidável grito e caiu de bruços na calçada.
Tinha visto seu filho, representado na mesa do necrotério, com o tronco nu, o corpo em sangue.
E por debaixo, em letras garrafais:
"Amâncio de Vasconcelos, assassinado por João Coqueiro no Hotel Paris, em tantos de tal."
Aluísio de Azevedo
O Homem
I
Madalena, ou simplesmente Magdá, como em família tratavam a filha do Sr. Conselheiro Pinto Marques, estava, havia duas horas, estendida num divã do salão de seu pai, toda vestida de preto, sozinha, muito aborrecida, a cismar em coisa nenhuma; a cabeça apoiada em um dos braços, cujo cotovelo ficava numa almofada de cetim branco bordada a ouro; e a seus pés, esquecido sobre um tapete de pelos de urso da Sibéria, um livro que ela tentara ler e sem dúvida lhe tinha escapado das mãos insensivelmente.
No entanto, não havia ainda um mês que chegara da Europa, depois de um longo passeio que o pai fizera com sacrifício, para ver se lhe obtinha melhoras de saúde.
Melhoras! Que esperança! - Magdá voltou no estado em que partiu, se é que não voltou mais nervosa e impertinente. O Conselheiro, coitado, desfazia-se em esforços por tirá-la daquela prostação, mas era tudo inútil: de dia para dia, a pobre moça tornara-se mais melancólica, mais insociável, mais amiga de estar só. Era preciso fazer milagres para distraí-la um segundo; era preciso de cada vez inventar um novo engodo para obter que ela comesse alguma coisa . Estava já muito magra, muito pálida, com grandes olheiras cor de saudade; nem parecia a mesma. Mas, ainda assim, era bonita.
Morava com o pai e mais uma tia velha chamada Camila numa boa casa na praia de Botafogo. Prédio talvez um pouco antigo, porém limpo; desde o portão da chácara pressentia-se logo que ali habitava gente fina e de gosto bem educado; atravessando-se o jardim por entre a simetria dos canteiros e limosas estátuas cobertas de verdura, e enormes vasos de tinhorões e begônias do Amazonas, e bolhas de vidro de várias cores com pedestal de ferro fosco, e lampiões de três globos que surgiam de pequeninos grupos de palmeiras sem tronco, e bancos de madeira rústica, e tambores de faiança azul-nanquim, alcançava-se uma vistosa escadaria de granito, cujo patamar guarneciam duas grandes águias de bronze polido, com as asas em meio descanso, espalmando as nodosas garras sobre colunatas de pedra branca. Na sala de entrada, por entre muitos objetos de arte, notava-se, mesmo de passagem, meia dúzia de telas originais; umas em cavaletes, outras suspensas contra a parede por grossos cordões de seda frouxa; e, afastando o soberbo reposteiro de reps verde que havia na porta do fundo, penetrava-se imediatamente no principal salão da casa.
O salão era magnífico. Paredes forradas por austera tapeçaria de linho inglês cor de cobre e guarnecida por legítimos caquimanos, em que se destacavam grupos de chins em lutas fantásticas com dragões bordados a ouro; as figuras saltavam em relevo do fundo dos painéis e mostravam as suas caras túrgidas e bochechudas, com olhos de vidro, cabeleiras de cabelo natural e roupas de seda e pelúcia. Cobria o chão da sala um vasto tapete Pompadour, aveludado, cujo matiz, entre vermelho e roxo, afirmava admiravelmente com os tons quentes das paredes. Do meio do teto, onde se notava grande sobriedade de tintas e guarnições de estuque, descia um precioso lustre de porcelana de Saxe, sobrecarregado de anjinhos e flores coloridas e pássaros e borboletas, tudo disposto com muita arte numa complicadíssima combinação de grupos. Por baixo do lustre, uma otomana cor de pérola, em forma de círculo, tendo no centro uma jardineira de louça esmaltada onde se viam plantas naturais. A mobília era toda variada; não havia trastes semelhantes; tanto se encontravam móveis do último gosto, como peças antigas, de clássicos estilos consagrados pelo tempo. Da parede contrária à entrada dominava tudo isto um imenso espelho sem moldura, por debaixo do qual havia um consolo de ébano, com tampo de mármore e mosaicos de Florença, suportando um pêndulo e dois candelabros bizantinos; ao lado do consolo uma poltrona de laquê dourado com assento de palhinha e uma cadeira de espaldar, forrada de gorgorão branco listrado de veludo; logo adiante um divã com estofos trabalhados na Turquia.
Era neste divã que a filha do Sr. Conselheiro achava-se estendida havia duas horas, deixando-se roer pelos seus tédios, aos bocadinhos, com os olhos paralisados num ponto, que ela não via.
Foi interrompida pelo pai.
- Ah!
- Como passaste a noite, minha flor?
Magdá fez um gesto de desânimo, soerguendo-se na almofada de cetim, e tossiu. O Conselheiro assentou-se ao lado dela e tomou-lhe as mãos com fidalga meiguice.
- Preguiçosa!...
Um belo homem! Alto, bem apessoado, fibra seca, barba a Francisco I, toda branca, olhos ainda vivos e uma calva incompleta que lhe ia até ao meio da cabeça, dando-lhe ao rosto uma fina expressão inteligente e aristocrata.
Fora da marinha, mas aos trinta e cinco anos pedira a sua demissão, instalara-se no Rio de Janeiro, e casara, entregando-se desde essa época à política conservadora. Enviuvou pouco depois do nascimento de Magdá, único fruto do seu matrimônio; chamou então para junto de si a irmã, D. Camila, que vivia nesse tempo agregada à casa de outros parentes mais remotos; a filha foi entregue a uma ama até chegar à idade de entrar como pensionista num colégio de irmãs de caridade.
Era a essa infeliz criança, tão cedo privada do amor de mãe, que o conselheiro dedicava a maior parte dos seus afetos, e era também das suas mãos pequeninas que recebia coragem para enfrentar os desconsolos da viuvez e as neves, que ia encontrando do meio para o resto do caminho da vida. E era ainda essa criança, já mulher, que o desgraçado via agora escapar-lhe dos braços e fugir-lhe para a morte, arrastando atrás de si um triste sudário de mágoas brancas, mágoas de donzela, mágoas flutuantes, que pareciam feitas de espuma, e contra as quais no entanto se despedaçavam todo o seu valor de homem e todas as forças do seu coração de pai.
Coitadinha! Havia dois anos que se achava nesse estado. Pode-se todavia afirmar que começara a sofrer deste a fatal ocasião em que a convenceram da impossibilidade do seu casamento com Fernando.
Que romance!
Fernando fora o seu companheiro de infância, o seu amigo; cresceram juntos. Quando ela nasceu, encontrou-o já em casa do pai com cinco anos de idade, e desde muito cedo habituaram-se ambos à idéia de que nunca pertenceriam senão um ao outro.
Segundo o que sabia, toda a gente, este Fernando era um afilhado, que o Sr. Conselheiro adotara por compaixão e a quem mandara instruir; o certo é que o estimava muito e não menos verdade era que o rapaz merecia esta estima; dera sempre boas contas de si, e desde o colégio já se adivinhava nele um homem útil e honrado. Um belo dia, porém, quando andava no penúltimo ano de medicina, o padrinho chamou-o ao seu gabinete e disse-lhe que, de algum tempo àquela parte, observava-lhe com referência a Magdá uma certa ternura, que não lhe parecia inspirada só pela amizade.
Fernando sorriu-lhe e fez-se um pouco vermelho.
- Com efeito, confessou, havia já bastante tempo que sentia pela filha do seu padrinho muito mais do que simples amizade. E toda a sua ambição, todo o seu desejo, era vir a desposá-la logo que se formasse; tanto assim, que tencionava, mal concluísse os estudos, pedi-la em casamento.
- Isto é impossível!
- Impossível? interrogou o rapaz erguendo os olhos para o Conselheiro. - Impossível, como?
O velho fez um gesto de resignação e acrescentou em voz sumida:
- Magdá é tua irmã.
- Minha irmã...?
Houve um constrangimento entre os dois. No fim de alguns segundos, o Conselheiro declarou que não tencionava fazer tão cedo semelhante revelação, e que nem a faria se a isso o não obrigassem as circunstâncias.
Fernando estava abismado. Sua irmã. Visto isto - toda essa história, que ele conhecia desde pequeno; essa história, em que figurava como filho de um pobre marinheiro viúvo, falecido a bordo, era...
- Uma fábula, concluiu o pai de Magdá, sempre de olhos baixos. - Inventei-a para esconder a minha culpa.
O moço teve um ar de censura.
- Bem sei que fiz mal, prosseguiu o velho, hesitando em levantar a cabeça. - Mas não podia declarar-me teu pai sem prejuízo de tua parte e sem enxovalhar a memória daquela que te deu o ser. Era casada com outro e tu nasceste ainda em vida de minha mulher. O marido de tua mãe estava ausente quando vieste ao mundo; ignorou sempre a tua existência, e enviuvou quando tinhas apenas dois anos de idade. Eu então carreguei contigo para casa, inventei o que até aqui supunhas verdade e nunca mais te abandonei.
Fernando deixou-se cair numa cadeira. O pai continuou, aproximando-se mais, e falando-lhe em surdina:
- Minha intenção era esconder esse segredo até no dia em que depois de minha morte, viesses a saber que estavas perfilado por mim e contemplado nas minhas disposições testamentárias; mas - o homem põe e Deus dispõe - para meu castigo, quis a fatalidade que te agradasses de tua irmã e, como bem vês, só me restava agora confessar francamente a situação. Ficas, por conseguinte, prevenido de que, de hoje em diante, deves empregar todos os meios para afastar do espírito de Magdá qualquer esperança de casamento, que ela por ventura mantenha a teu respeito...
Fernando declarou que preferia desaparecer dali. Partiria no primeiro vapor que encontrasse.
Não! isso seria loucura! Ele estava bem encaminhado e pouco lhe faltava para terminar a carreira... Que se formasse e partiria depois.
- Olha, concluiu o velho, passado um instante - caso prefiras estudar ainda um pouco na Europa, vê o lugar que te serve e conta comigo. Não sou rico, mas também não és extravagante; apenas o que te peço é que, de modo algum, reveles a tua irmã o que acabas de saber. Será talvez uma questão de temperamento, mas creio que morreria se o fizesse.
Quando o Conselheiro terminou, Fernando chorava.
- E o marido de minha mãe? perguntou.
- Há dez anos que morreu; não deixou parentes.
E o pai de Magdá, vendo que o filho parecia sucumbido, passou-lhe o braço nas costas: - Então! vamos, nada de fraquezas! um abraço! e que esta conversa fique aqui entre nós dois.
O rapaz prometeu e jurou que ninguém, e muito menos Magdá, ouviria de sua boca uma só palavra sobre aquele assunto. O velho agradeceu o protesto com um aperto de mão; e ficaram ainda alguns momentos estreitados um contra o outro, até que o Conselheiro se retirou, a limpar os olhos, e o rapaz caiu de novo na cadeira, dobrando os cotovelos sobre uma mesa e escondendo no lenço os seus soluços, que agora lhe rebentavam desesperadamente.
Foi Magdá quem veio despertá-lo dali a meia hora, depois de o haver procurado embalde por toda a casa.
- Ora, muito obrigado... ia dizer, mas deteve-se, intimidada pela expressão que lhe notara na fisionomia. - Que era aquilo?... Ele estava chorando?...
- Ó senhores! Hoje nesta casa estão todos amuados! Ao outro encontro chorando, que nem um bebê; este diz-me que não está bom e que eu entretenha-me com a tia Camila! Ora já se viu!
O pai afagou-lhe a cabeça. - Esta tolinha!...
- Mas, papai, que tem o Fernando?
- Não sei, minha filha.
- Diz que um amigo dele está muito mal...
- Pois aí tens...
- E você, papai, por que está triste?- Não estou triste, apenas preocupado. Não é nada contigo. Política, sabes? Mas vai, vai lá para dentro, que tenho que fazer agora.
- Política!...
Magdá afastou-se, meio enfiada, mas daí a pouco se lhe ouviram os gorgeios do riso nos aposentos da tia Camila.
Já lá estava o demoninho a bolir com a pobre da velha!
II
A tristeza de Fernando, em vez de diminuir com o tempo, foi crescendo de dia para dia. A irmã bem o notou, mas já sem vontade de rir, nem dará parte ao Conselheiro; estava então justamente no delicado período em que os últimos encantos da menina desabotoam nas primeiras seduções da mulher; transição que começa no vestido comprido e termina com o véu de noiva.
Quinze anos!
E que bem empregados! Muito bem feita de corpo, elegante, olhos negros banhados de azul, cabelos castanhos formosíssimos; pele fina e melindrosa como pétalas de camélia, nariz sereno feito de uma só linha, mãos e pés de uma distinção fascinadora; tudo isso realçando nos seus vestidos simples de moça solteira bem educada, na sua gesticulação fácil, na sua maneira original de mexer com a cabeça quando falava, rindo e mostrando as jóias da boca.
Aquela insistente frieza do irmão foi a sua primeira mágoa. Em começo não se preocupava muito com isso; quando viu, porém, que os dias se passavam e Fernando continuava mais e mais a seco e retraído, chegando até a evitá-la, ficou deveras apreensiva. - "Teria o rapaz mudado de resolução a respeito do casamento? - Estaria enamorado de outra?" Estas duas hipóteses não lhe saíam do espírito.
Agora muito poucas vezes achava ocasião de estar a sós com ele e, quando tal sucedia, Fernando, com tamanho empenho procurava escapar-lhe, que de uma feita a pobre menina foi queixar-se ao pai.
- É que naturalmente, respondeu o velho, o rapaz não tenciona casar contigo e procura desiludir-te a esse respeito.
Magdá ficou muito séria quando ouviu estas palavras.
- Ouve, minha filha, tu o que deves fazer é olhar para ele como se fosse seu irmão; vocês cresceram juntos e não se pode amar de outro modo... E queres então que te diga? Estes casamentos, forjados assim, entre companheiros de infância, nuca provaram bem. Santo de casa não faz milagre! Eu, em teu caso, ia tratando de atirar as vistas para outro lado...
- O Fernando então é um homem sem caráter?
- Sem caráter porque, minha filha?
- Ora, porque! Porque muitas vezes jurou que não se casaria senão comigo!...
- Coisas de criança! Hoje naturalmente pensa de outro modo. Talvez até já tenha noiva escolhida...
- Não, não creio... Se assim fosse, ele seria o primeiro a contar-me tudo com franqueza! A causa é outra, hei de descobri-la, custe o que custar!
Contudo não se animou a inquirir o noivo.
Mas, considerava a moça, como acreditar que Fernando descobrisse um novo namoro, se agora, mais que nunca, nadava metido com os estudos e não se despregava dos livros!... Onde, pois, teria ido arranjar essa paixão, se agora não ia à casa de ninguém?... Além disso, as suas tristezas não pareciam de um namorado; mostravam caráter muito mais feio e sombrio. O fato de pretender casar com outra não seria, de resto, razão para que a tratasse daquele modo! Era como se a temesse, se receiasse a sua presença... Dantes segurava-lhe as mãos com toda a naturalidade; afagava-lhe os cabelos; endireitava-lhe o chapéu na cabeça quando iam sair juntos; acolchetava-lhe a luva; trazia-lhe livros novos; gostava de brincar com ela, dizer-lhe tolices por pirraça, para faze-la encavacar; pregava-lhe sustos tapava-lhe os olhos quando a pilhava de surpresa pelas costas; pedia-lhe perfumes quando ele não tinha extrato para o lenço. E agora? Agora bastava que ela se aproximasse do Fernando, para este já estar todo que parecia sobre brasas e, ao primeiro pretexto, fugir e encerrar-se no quarto, fechado por dentro, às vezes até as escuras. Ora, estava entrando pelos olhos que tudo isto não podia ser natural... Magdá, pelo menos, nuca tinha visto um namorado de semelhante espécie!
- Em todo caso, resolva de si para si, ele deu-me a sua palavra de honra que me pediria a papai tão logo se formasse; por conseguinte não posso ainda queixar-me. Vamos ver primeiro como se sairá do compromisso.
E deliberou esperar até o fim do ano.
Entretanto, o Conselheiro, querendo a todo o custo arredar do espírito da filha a idéia de casar com o irmão, pensava em atrair gente à casa, para ver se despertava nela o desejo de escolher outro noivo. A dificuldade estava em arranjar as festas; sim, porque, para receber os convidados, só podia contar, além de Magdá, com a irmã, D. Camila. Mas D. Camila era uma solteirona velha, muito devota, muito esquisita de gênio e sem jeito nenhum para fazer sala. - Uma verdadeira "barata de sacristia" como lhe chamava nas bochechas o despachado do Dr. Lobão, médico da casa e amigo particular do Conselheiro.
- Ora, se Magdá tivesse um pouco mais de idade, considerava este, estaria tudo arranjado. Como, porém, encarregar uma menina de dezesseis anos de fazer as honras de um baile?
Salvou a situação, pedindo a um seu amigo velho, o Militão de Brito, homem pobre, casado e pai de três filhas solteiras já de certa idade, que fosse e mais a família passar algum tempo com ele. - A casa era grande e não haviam de ficar de todo mal acomodados.
Para justificar o pedido, observou que a filha estava na flor da juventude, precisava distrair-se, e que lhe doía a ele, como pai, traze-la enclausurada na idade em que todas as moças gostavam de brincar. O Militão, que também era pai, compreendeu a intenção da proposta, aceitou-a de braços abertos e teve a franqueza de confessar que aquele convite vinha do céu, porque ele igualmente via as suas raparigas, coitadinhas, muito pouco divertidas.
Mudou-se pois a família de Militão para a casa do Conselheiro e Magdá, adivinhando os planos do pai, sorriu intimamente. Inauguraram-se os bailes, e os pretendentes não se fizeram esperar. Pudera! Uma menina que não é pobre, com certa educação, algum espírito, e linda como a filha do Sr. Conselheiro Pinto Marques, encontra sempre quem a deseje.
O primeiro a apresentar-se foi um tal Martinho de Azevedo, rapaz de vinte e poucos anos, filho de um cônsul em que em não sei que parte da Europa; ares de fidalgo; bigode louro e olhos de mulher; não tinha nada de feio; ao contrário, chegava a ser impertinente com a sua inalterável boniteza risonha; e vestia-se como ninguém, graças a alguns anos que passara em Paris estudando um curso que não chegara a concluir.
Magdá esteve quase a desenganá-lo, antes mesmo que o sujeito se lhe declarasse; resolveu, porém, deixar isso ao cuidado do pai, que não se embirrava menos com ele. Com quem o Conselheiro não embirrou, e mostrou até simpatizar, foi um certo ministro argentino, levado à sua casa por um colega que já lá se dava; mas este segundo pretendente não foi feliz que o primeiro, nem que os outros apresentados depois.
Todavia as festas continuavam, e por fim a casa do Conselheiro Pinto Marques era tida e havida entre a melhor gente como das mais distintas e bem freqüentadas do Rio de Janeiro; e Magdá classificada ao lado das estrelas mais rutilantes do empíreo de Botafogo.
Assim se passou o resto do ano.
Ah! com que ansiedade contou a pobre menina os dias que precederam à formatura do irmão! Como aquele coraçãozinho palpitou de susto e de esperança ao lembrar-se de que em breve o seu Fernando, o único que aos olhos dela parecia bom, delicado, inteligente e sincero, tinha com uma só palavra de apagar todas as dúvidas que a torturavam, ou destruir-lhe por uma vez todos os sonhos de ventura.
Sim, porque a filha do Conselheiro, agora nos seus dezessete anos, estava bem certa de que amava Fernando; mais se convencera dessa verdade nesses últimos tempos em que ele se mostrara indiferente e esquivo. Só agora podia avaliar o bem que lhe faziam aquelas tranqüilas palestras que tantas vezes desfrutara com ele, ora nos bancos da chácara, ora assentados junta à janela, perto um do outro, ou em volta da pequena mesa de viex-chêne que havia numa saleta ao lado do gabinete do Conselheiro, e onde ela costumava ler e estudar no bom tempo em que Fernando se comprazia em dar-lhe lições de preparatórios.
As lições!... Quanto desvelo de parte a parte! Com que gosto ele ensinava e com que gosto ela aprendia!
Magdá, logo ao deixar o colégio das irmãs de caridade, entrou a estudar com o irmão, e foi nesse contato espiritual de três horas diárias que os dois mais se fizeram um do outro, e mais se amaram, e mais se respeitaram. Todavia, nesse tempo ela ainda não lhe tinha observado as feições, nem notado a inteireza de caráter nem a delicadeza do gênio; habituara-se a estimá-lo, e aceitava-o quase que pela fatalidade da convivência ou pela natureza efetiva do seu próprio temperamento; mas depois, quando teve ocasião de compará-lo com outros, amou-o por eleição, por entender que ele era o melhor de todos os homens, o mais digno de preferência.
Agora, depois daqueles frios meses de retraimento, Fernando parecia-lhe ainda mais belo e mais desejável; aquela transformação inesperada foi como uma dolorosa ausência em que as boas qualidades do rapaz ganharam novo prestígio no espírito da irmã, assumindo proporções excepcionais. Magdá esperava pelo dia da formatura, como se aguardasse a chegada do noivo; tinha lá para si que o seu amado reapareceria então como dantes, meigo, comunicativo e amigo de estar ao lado dela. Agora idolatrava-o; todo o grande empenho do Conselheiro em substituí-lo por outro apenas conseguia encarecê-lo ainda mais, fazendo-o mais desejável, mais insubstituível. Ela já não podia compreender como é que por aí se amavam outros que não eram Fernando; outros que não tinham aquela mesma barba, aqueles olhos tão inteligentes e tão doces, aquela mesma estatura bem conformada, forte sem ser grosseira, aquela boca tão limpa, tão bem tratada, que logo se via não poder servir de caminho à mentira ou a uma palavra feia. E muita coisa, que até então não lhe notara, agora a impressionava; a voz, por exemplo, o metal de sua voz, em que havia uma certa harmonia corajosa; aquela voz velada, discreta, mas muito inteligível; uma voz que não chamava a atenção de ninguém, mas que prendia a todo aquele que por qualquer circunstância a escutava. - E a cor do seu rosto? aquele moreno suave, de pele muito fina, em que ia tão bem, o cabelo preto? - E aquele modo inteligente de sorrir, quando ele descobria um ridículo noutrem? aquele ar condescendente com que Fernando ouvia as frioleiras do Martinho de Azevedo ou as bazófias do ministro argentino? aquele sorriso inteiriço, de alma virgem, onde não havia o menor vislumbre de inveja a ninguém, nem contentamento próprio por vaidade; aquele sorriso, que ela supunha ser a única a compreender.
A própria indiferença de Fernando agora a seduzia e namorava; achava-o por isso mesmo fora do vulgar dos outros homens um pouco misterioso, como que guardando no fundo do coração alguma coisa muito superior, muito excelente, que ele não queria expor às vistas dos profanos e só pertenceria àquela que escolhesse para inseparável companheira de sua vida.
Ah, Magdá contava que aquele segredo ainda seria também o seu; sua alma estava aberta de par em par e não se fecharia enquanto não houvesse recolhido todo o conteúdo daquele coração misterioso; só se fecharia para melhor guardar em depósito as gemas preciosíssimas que dentro de sua alma despejasse a alma do seu amado. - Oh, quanto não seria bom ser a esposa daquele homem, ser a sua criatura, ser a testemunha de todos os seus instantes! E ainda lhe passara pela mente a hipótese de uma traição por parte dele!... Mas onde tinha então a cabeça?... Pois Fernando lá seria capaz algum dia de dizer uma coisa e fazer outra?... Pois ela não via logo o modo pelo qual nos bailes de seu pai todas as moças solteiras procuravam requestá-lo, sem nada conseguir, nem mesmo alterar-lhe aquela fria abstração de homem superior?... Oh, sim, sim! a única que ele queria, a única que ele amava, era ela ainda e sempre! Tudo lho dizia: tudo lho confirmava! Nem podia ser que tamanho sentimento continuasse a crescer e aprofundar-se no seu coração de donzela, se, do fundo da aparente indiferença de Fernando não viesse um raio de calor manter-lhe a vida!
Amparando-se nestes raciocínios, Magdá viu chegar a véspera da formatura, quase tranqüila de todo. Nesse dia recolheu-se mais cedo que de costume; ajoelhou-se diante de um crucifixo de marfim, herdado de sua mãe, e do qual nunca se separara, e rezou, rezou muito, pedindo ao pai do céu, pelas chagas do seu divino corpo, que a protegesse e fizesse feliz. Falou-lhe em voz baixa e amiga, segredando-lhe ternuras e confidências, como se se dirigisse a um velho camarada de infância, bonacheirão, que a tivesse trazido ao colo em pequenina e que ainda se babasse de amores por ela. E contou-lhe o quanto adorava o seu Fernando e quanto precisava de casar com ele. - Deus não havia de ser tão mau que, só para contrariá-la, estorvasse aquela união!...
No dia seguinte Fernando estava formado e a casa do Conselheiro toda em preparos de festa; Magdá que havia muito não se animava a dirigir-lhe palavra, foi ter com ele e, depois de lhe dar os parabéns, interrogou-o com um olhar cheio de ansiedade. O moço fez que não entendeu, mas ficou perturbado.
- Então! disse Magdá.- Então o que, minha amiguinha?
- Pois não estás formado afinal?
- E daí?
- Daí é que havíamos combinado que me pedirias hoje em casamento...
Fernando perturbou-se mais.
- Ainda pensavas nisso?... gaguejou por fim, em ânimo de encará-la. E acrescentou depois, percebendo que ela não se mexia: - Parto daqui a dias para a Europa e não sei quando voltarei...
Magdá sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo, um punho de ferro tomar-lhe a boca do estômago e subir-lhe até a garganta, sufocando-a .
- Bem!
E não pode dizer mais nada, virou-lhe as costas e afastou-se de carreira, como se levasse consigo uma bomba acesa e não quisesse vê-la rebentar ali mesmo.
- Ouve, Magdá! Espera.
Ela havia alcançado já o quarto; atirou-se à cama. E a bomba estourou, sacudindo-a toda, convulsivamente, numa descarga de soluços que se tornavam progressivamente mais rápidos e mais fortes, à semelhança do ansioso arfar de uma locomotiva ao partir.
III
Terminada a crise dos soluços, Magdá sentiu uma estranha energia apoderar-se dela; uma necessidade de reação; andar, correr, fazer muito exercício; mas ao mesmo tempo não se achava com ânimo de largar a cama. Era uma vontade que se lhe não comunicava aos membros do corpo. Ergueu-se, afinal, mandou chamar o pai, e este não se fez esperar. Ia pálido e acabrunhado; é que estivera conversando antes com o filho a respeito do ocorrido. A notícia do procedimento de Magdá fulminara-o; supunha-a já de todo esquecida dos seus projetos de casamento com o irmão e agora se arrependia de não haver dado as providências para que este se apartasse dela; sentia-se muito culpado em ter sido o próprio a detê-lo em casa, e doía-lhe a consciência fazer sofrer daquele modo a pobre menina. No entanto, quando o rapaz lhe pediu licença para confessar a verdade à irmã, negou-a a pé firme, aterrado com a idéia de ter de corar diante da filha. - Não! Tudo, menos isso!
Fernando protestou as suas razões contra tal egoísmo: não era justo que se expatriasse amaldiçoado por uma pessoa a quem tanto estremecia, sem ter cometido o menor delito para merecer tamanho castigo. Ah! se o pai tivesse visto com que profunda indignação, com que ódio, com que nojo, ela o havia encarado!...
- Não! nunca! Que se poderia esperar de uma filha, que recebesse do próprio pai semelhante exemplo de imoralidade?...
Foi nessa ocasião que o criado o interrompeu com o chamado de Magdá. O Conselheiro, quando chegou junto dela, sentiu-se ainda mais comovido: "Não seria tudo aquilo um crime maior do que os seus passados amores com a mãe de Fernando?... Sim; estes ao menos não se baseavam em preconceitos e vaidades, baseavam-se nos instintos e na ternura". E o mísero, atordoado com estas idéias, tomou as mãos da filha, falhou-lhe com humildade perguntou-lhe com muito carinho o que ela sentia.
- Quase nada! Um simples abalo... Já não tinha coisa alguma...
E tremia toda.
- Queres que mande buscar o Dr. Lobão? Estou te achando o corpo esquentado.
- Não, não vale a pena; isto não é nada. Eu chamei-o papai, para lhe pedir um obséquio...
- Um obséquio? Fala, minha filha.
- Pedir um obséquio e fazer-lhe uma declaração...
E, brincando com os botões da sobrecasaca do Conselheiro: - Sabe? Estou resolvida a casar com o Martinho de Azevedo; desejava que meu pai lhe mandasse comunicar imediatamente esta minha deliberação...
- Temos tolice!...
- E queria que o casamento se realizasse antes da partida do Fernando...
- Estás louca?
- Se estiver, tanto pior para mim. Afianço-lhe que hei de fazer o que estou dizendo!
- Não sejas vingativa, minha filha; Fernando contou-me o que se passou entre vocês dois, disse0me tudo, e eu juro pela memória de tua mãe que o procedimento dele não podia ser outro... Foi correto, fez o seu dever!
- O seu dever? Tem graça!
- Mais tarde verás que digo a verdade; o que desde já posso afirmar é que o pobre rapaz não tem absolutamente a menor culpa em tudo isto. Não o deves ver com maus lhos, nem lhe deves retirar a tua confiança e a tua estima...
- Mas fale por uma vez! Não vê que as suas meias palavras me põem doida?...
- Não posso; é bastante que acredites em mim; eu juro-te que Fernando, negando-se a casar contigo, cumpre o seu dever. Vou chamá-lo e quero que...
- Não, não! atalhou a filha, segurando-lhe os braços. - Ele que não me apareça! Que não me fale! Detesto-o!
- Não acreditas em teu pai!...
- Não sei; acredito é que entre o senhor e ele há uma conspiração contra mim! Querem engodar-me com mistérios que não existem, como se eu fosse alguma criança! Ah! mas eu mostrarei que não sou o que pensam!
- Então, minha filha, então!
- Creio que já disse bem claro qual é a minha resolução a respeito de casamento, e agora só me convém saber se meu pai está ou não disposto a tratar disso!
- Não digo que não, mas para que fazer as coisas tão precipitadamente?...
O velho sentia o suor gelar-lhe o corpo.
- Custe o que custar, eu me casarei antes da partida daquele miserável! Se meu pai não fizer o que eu disse, o escândalo será maior! Ao menos falo com esta franqueza - Não tenho "mistérios"!
Ela havia-se desprendido das mãos do Conselheiro e passeava agora pelo quarto, muito agitada, com as faces em fogo, os lábios secos e os olhos ainda úmidos das últimas lágrimas. E em todos os seus movimentos nervosos, em todos os seus gestos, sentia-se uma resolução enérgica, altiva e orgulhosa.
- Não há outro remédio! Pensou o velho, limpando a fronte orvalhada e fria da neve, não há outro remédio!
E aproximou-se da filha, para lhe dizer quase em segredo, com a voz estrangulada pela vergonha:
- Fernando não se casa contigo, porque é teu irmão...
Magdá retraiu-se toda, como se lhe tivesse passado por diante dos olhos uma faísca elétrica, e fitou-os sobre o pai, que abaixou a cabeça num angustioso resfolegar de delinqüente.
- Ora aí tens... balbuciou ele, depois de uma pausa, durante a qual só se ouviam os soluços de Magdá que se lhe havia atirado nos braços. - Já vês que aqui o único culpado sou eu; nunca devia ter consentido que vocês se criassem juntos, sem lhes ter exposto a verdade. Tua mãe ignorou sempre que Fernando fosse meu filho...
- Vá ter com ele... pediu Magdá chorando. - Que me perdoe! Que me perdoe! Diga-lhe que eu não sabia de nada, e que sou muito desgraçada!
Quando o Conselheiro saiu do quarto, ela tornou à cama, e daí a pouco delirava com febre.
Transferiu-se a festa; mandou-se chamar logo o Dr. Lobão, que receitou; e, só à tarde do dia seguinte, a enferma deu acordo de si, depois de um sono profundo que durou muitas horas.
Despertou tranqüila, um pouco abstrata. - Tinha sonhado tanto!...
Levou um bom espaço a cismar, por fim soltou um profundo suspiro resignado e pediu que conduzissem o irmão à sua presença. Ele foi logo, acompanhado pelo Conselheiro, e assentou-se, sem dizer palavra, numa cadeira ao lado da cabeceira da cama. Magdá tomou-lhe as mãos em silêncio, beijou-las repetidas vezes, e em seguida levou uma delas ao rosto e ficou assim por algum tempo, a descansar a cabeça contra a palma da mão de Fernando. Como por encanto, a sua meiguice havia se transformado da noite para o dia: já não eram de noiva os seus carinhos, mas perfeitamente de irmã. Não por isso menos expansivos, antes parecia agora muito mais em liberdade com ele; pelo menos nunca lhe havia tomado as mãos daquele modo. Ainda fez mais depois: pousou a face contra o seu colo e cingiu-lhe o braço em volta da cintura.
- E eu que cheguei a supor que eras um homem mau!... balbuciou, com uma voz tão arrependida, tão humilde e tão meiga, que o rapaz a apertou contra o seio e deu-lhe um beijo no alto da cabeça.
Magdá estremeceu todo, teve um novo suspiro, e deixou-se cair sobre os travesseiros, com os olhos fechados e a boca entreaberta. Chorava.
- Então, agora estão feitas as pazes?... perguntou o Conselheiro, alisando com os dedos o cabelo da filha.
Esta ergueu as pálpebras vagarosamente e deu em resposta um sorriso sofredor e triste.
- E ainda pensas no Martinho de Azevedo?... interrogou o velho, afetando bom humor.
Ela voltou seu sorriso para Fernando, como lhe pedindo perdão daquela vingança tão tola e tão imerecida.
Todo o resto desse dia se passou assim, sem uma nuvem que o toldasse; a paz era completa, pelo menos na aparência. Magdá não se queixava de coisa alguma. O Dr. Lobão, quando foi à noite, encontrou-a de pé, muito esperta, conversando com a gente de Brito. O médico desta vez olhou para a rapariga com mais atenção e fez-lhe um cúmulo de perguntas à queima-roupa: - Se era muito impressionável; se era sujeita a enxaquecas e dores de cabeça; o que costumava comer ao almoço e ao jantar; se tinha bom apetite; se usava o espartilho muito apertado; desde que idade freqüentava os bailes; se as suas funções intestinais eram bem reguladas; e, como estas, outras e outras perguntas, a que Magdá respondia por comprazer, afinal já importunada.
Ela sempre embirrara com o Dr. Lobão; tinha-lhe velha antipatia; achava-o sistematicamente grosseiro, rude, abusando da sua grande nomeada de primeiro cirurgião do Brasil, maltratando os seus doentes, cobrando-lhes um despropósito pelas visitas, a ponto de fazer supor que metia na conta as descomposturas que lhes passava.
- A senhora tem tido muitos namorados? interrompeu ele, depois de estudar, medindo-a de alto a baixo, por cima dos óculos.
Magdá sentiu venetas de virar-lhe as costas e retirar-se.
- Não ouviu? Pergunto se tem tido muitos namorados!
- Não sei!
E ela afastou-se, enquanto o cirurgião resmungava:
- Que diabo! Para que então me fazem vir cá?...
Ia já a sair, quando o Conselheiro foi ter com ele:
- Então?
- Não é coisa de cuidado; um abalo nervoso. Que idade tem ela?
- Dezessete anos.
- É...! mas não convém que esta menina deixe o casamento para muito tarde. Noto-lhe uma perigosa exaltação nervosa que, uma vez agravada, por interessar-lhe os órgão encefálicos e degenerar em histeria...
- Mas, doutor, ela parece tão bem conformada, tão...
- Por isso mesmo. Ah! Eu leio um pouco pela cartilha antiga. Quanto melhor for a sua compleição muscular, tanto mais deve ser atendida, sob pena de sentir-se irritada e esbravejar por’aí, que nem o diabo dará jeito! E adeus. Passe bem!
Mas voltou para perguntar: - E a barata velha, como vai?
- Minha irmã...? ao mesmo, coitada! Enfermidades crônicas...
- Ela que vá continuando com as colheradas de azeite todas as manhãs e que não abandone os clisteres. Hei de vê-la, noutra ocasião; hoje não tenho mais tempo. Adeus, adeus!
E saiu com os seus movimentos de carniceiro, resmungando ao entrar no carro:
- Não tratam da vida enquanto são moças e agora, depois de velhas, o médico que as ature! Súcia! Não prestam p’ra nada! nem p’ra parir!
A festa de Fernando realizou-se na véspera da sua partida. Magdá nuca pareceu tão alegre nem tão bem disposta de saúde; pôs um vestido de cassa cor-de-rosa, todo enfeitado de margaridas, deixando ver em transparência a ebúrnea riqueza do colo e dos braços.
Estava fascinadora: toda ela era graça, beleza e espírito; causou delírios de admiração. Nessa noite dançou muito, cantou e, durante o baile inteiro, mostrou-se para com Fernando de uma solicitude, em que não se percebia a menor sombra de ressentimento; dir-se-ia até que estimava haver descoberto que era sua irmã. Conversaram muito; ela contou-lhe, ora rindo, ora falando a sério, as declarações de amor que recebera; citou nomes, apontou indivíduos, pediu-lhe conselhos sobre a hipótese de uma escolha e declarou, mais de uma vez, que estava resolvida a casar.
No dia seguinte apresentaram-se alguns amigos para o bota-fora. Magdá foi à bordo, chorou, mas não fez escarcéu; em casa compareceu ao jantar, comeu regularmente e até a ocasião de se recolher falou repetidas vezes do irmão, sem patentear nunca na sua tristeza desesperos de viúva, nem alucinações de mulher abandonada.
Só dois meses depois foi que notaram que estava tanto mais magra e um tanto mais pálida; e assim também que o seu riso ia perdendo todos os dias certa frescura sanguínea, que dantes lhe alegrava o rosto, e tomando aos poucos uma fria expressão de inexplicável cansaço.
Alguns meses mais, e o que havia de menina desapareceu de todo, par só ficar a mulher. Fazia-se então muito grave, muito senhora, sem todavia parecer triste, nem contrariada; as amigas iam vê-la com freqüência e encontravam-na sempre em boa disposição para dar um passeio pela praia, ou para fazer música, dançar, cantar; tudo isto, porém, sem o menor entusiasmo, friamente, como quem cumpre um dever. Vieram-lhe depois intermitências de tédio; tinha dias de muito bom humor e outros em que ficava impertinente ao ponto de irritar-se coma menor contrariedade. Não obstante, continuava a ser admirada, querida e invejada, graças ao seu inalterável bom gosto, à sua altiva de procedimento e à sua aristocrática beleza. O pai votava-lhe já essa reverente consideração, que nos inspiram certas damas, cuja pureza de hábitos e extrema correção nos costumes se tornam lendárias entre os grupos com que convivem; tanto assim que, vendo o Militão forçado a retirar-se com a família par uma fazenda que ia administrar, o Conselheiro não os substituiu por ninguém, e a casa ficou entregue a Magdá.
Quanto à saúde - assim, assim... Às vezes passava muito bem semanas inteiras; outras vezes ficava aborrecida, triste, sem apetite; apareciam-lhe nevralgias, acompanhadas de grande sobreexcitação nervosa. Então, qualquer objeto ou qualquer fato repugnante indispunha-a de um modo singular; não podia ver sanguessugas ,rãs, morcegos ,aranhas; o movimento vermicular de certos répteis causava-lhe arrepios de febre; se à noite não estando acompanhada, encontrava um gato em qualquer parte da casa, tinha um choque elétrico, perfeitamente elétrico, e não podia mais dormir tão cedo.
Uma madrugada, em que a tia foi acometida de cólicas horrorosas e sobressaltou a família com os seus gritos, Magdá sofreu tamanho abalo que, durante dois dias, pareceu louca. Desde essa época principiou a sofrer de uma dores de cabeça, que lhe produziam no ato do crânio, que ora a impressão de uma pedra de gelo, ora a de um ferro em brasa.
Agora também o barulho lhe fazia mal aos nervos: ouvindo música desafinada, sentia-se logo inquieta e apreensiva; o mesmo fenômeno se dava com o aroma ativo de certas flores e de certos extratos: o sândalo, por exemplo, quebrantava-lhe o corpo; o perfume da magnólia enfreneziava-a; o almíscar produzia-lhe náuseas. Ainda outros cheiros a incomodavam: o fartum que se exala da terra quando chove depois de uma grande soalheira, o fedor do cavalo suado, o de certos remédios preparados com ópio, mercúrio, clorofórmio; tudo isto agora lhe fazia mal, porém de um modo tão vago, que ela muita vez sentia-se indisposta e não atinava porque.
Notava-se-lhe também certa alteração nos gostos com respeito à comida; preferia agora os alimentos fracos e muito adubados; tinha predileções esquisitas; voltava-se toda para a cozinha francesa; gostava mais de açúcar, mas queria o chá e o café bem amargos
As cartas de Fernando não a alteraram absolutamente; a primeira, entretanto, fora recebida com exclamações de contentamento. Ele dizia-se feliz e divertido, apoquentamento apenas pelas saudades da família. Magdá escrevia-lhe de irmã para irmão, afetando muita tranqüilidade, procurando fazer pilhéria, citando anedotas, dando-lhe notícias do Rio de Janeiro, falando em teatros e cantores.
E assinava sempre "Tua irmãzinha que te estremece - Madalena".
IV
Decorreu uma no. O incidente romanesco do namoro entre os dois irmãos ia caindo no rol das puerilidades da infância; Magdá se lembrava dele com um criterioso sorriso de indulgência.
- Criancices! criancices!
Agora, no seu todo de senhora refeita, com as suas intransigências de dona de casa, com as suas preocupações de economia doméstica, ela estava a pedir um marido prático, um homem de boa posição, que lhe trouxesse tanto ou mais prestígio que o pai; mesmo porque este, ultimamente, e só por causa dela, havia-se alargado um pouco mais com aquelas festas e começava a sentir necessidade de apertar os cordéis da bolsa.
Não é brincadeira dar um baile por mês!
Foi essa a sua época mais fecunda em pretendentes; apareceram-lhe de todos os matizes, desde o pingue senador do império, até o escaveirado amanuense de secretaria; concorreram negociantes, capitalistas e doutores de vária espécie. Ela, porém, como se estivesse brincando a "Cortina de amor" em jogo de prendas, não entregou o lenço a nenhum. Não os repelia com denodo, antes tinha sempre para cada qual um sorriso amável; mas - repelia-os.
Todavia, de vez em quando, lhe vinham reações. - Precisava acabar com aquilo de uma vez, decidir-se por alguém. E fazia íntimos protestos de resolução, e empregava todos os esforços para se agradar deste ou daquele que lhe parecia preferível; mas na ocasião de dar o "Sim" hesitava, torcia todo o corpo, e afinal não se dispunha por ninguém.
Ah! Magdá sabia claramente que era preciso tomar uma resolução! bem parecia que o pai, coitado, já estava fazendo das fraquezas forças e morto por vê-la encaminhada; além disso, o Dr. Lobão, com aquela brutalidade que todos lhe perdoavam, como se ele fosse um privilégio, por mais de uma vez lhe dissera: "É preciso não passar dos vinte anos que depois quem tem de agüentar com as maçadas sou eu! compreende?"
Sim, ela compreendia, compreendia perfeitamente. - Mas por ventura teria culpa de estar solteira ainda? Que havia de fazer, se entre toda aquela gente, que o pai lhe metia pelos olhos, nenhum só homem lhe inspirava bastante confiança? - Não era uma questão de amor, era uma questão de não fazer asneira! Lá ilusões a esse respeito, isso não tinha; sabia de antemão que não encontraria nenhum amante extremoso e apaixonado; não sonhava nenhum herói de romance. - A época dessas tolices já lá se havia ido para sempre; sabia muito bem que o casamento naquelas condições, era uma questão de interesse de parte a parte, interesses positivos, nos quais o sentimento não tinha que intervir; sabia que no círculo hipócrita das suas relações todos os maridos eram mais ou menos ruins; que não havia um perfeitamente bom. - De acordo! mas queria dos males o menor!
Casava-se, pois não! estava disposta a isso, e até compreendia e sentia melhor que ninguém o quanto precisava, por conveniência mesmo da sua própria saúde, arrancar-se daquele estado de solteira que já se ia prolongando por demais. Estava disposta a casar, que dúvida! Mas também não queria fazer alguma irreparável doidice, que tivesse de amargar em todo o resto da sua vida... Nem se julgava nenhuma criança, para não saber o que lhe convinha e o que não lhe convinha! Enfim, a sua intenção era, como se diz em gíria de boa sociedade: "Casar bem".
Sim! uma vez que o casamento era arranjado daquele modo; uma vez que tinha de escolher friamente um homem, a quem se havia de entregar por convenção, queria ao menos escolher um dos menos difíceis de aturar; um homem de gênio suportável, com um pouco de mocidade e uma fortuna decente.
Bastava-lhe isto!
Nada, porém, de se decidir, e o tempo a correr! Os vinte anos vieram encontrá-la sem noivo escolhido; o pai principiava a inquietar-se, e o Dr. Lobão a dizer-lhe: "Olhe lá, meu amigo, é bom não facilitar! É bom não facilitar!...
"Que injustiça! o pobre Conselheiro não facilitava; não fazia mesmo outra coisa senão andar por aí arrebanhando para a sua casa todo homem que lhe parecia apto para casar com a filha; e tanto, que a roda dos seus amigos crescia largamente, e as suas festas amiudavam-se, e suas despesas reproduziam-se.
Uma notícia má veio, porém, enlutar a casa e fechar-lhe as portas por algum tempo - a morte de Fernando. O rapaz nas últimas cartas já se queixava da saúde; dizia que andava à procura de ares mais convenientes aos seus brônquios. Fugira da Alemanha para a França, de França para a Itália, desta para a Espanha, e fora morrer, afinal, em Portugal.
O Conselheiro ficou fulminado com a notícia, aparentemente mais sentido do quem a própria Magdá. Esta recebeu-a como se já a esperasse: saltaram-lhe as lágrimas dos olhos, mas não teve um grito, uma exclamação, um gemido; apenas ficou muito apreensiva, aterrada, com medo do escuro e da solidão. Durante noites seguidas foi perseguida por terríveis pesadelos, nos quais o morto representava sempre o principal papel, mas, durante o dia, não tinha uma palavra com referência a ele.
Não obstante, duas semanas depois, passeando na chácara, viu pular diante de si um sapo; e foi o bastante para que explodisse a reação dos nervos. Estremeceu com um grande abalo, soltou um grito agudo e sentiu logo na boca do estômago uma pressão violenta. Era a primeira vez que lhe dava isto; acudiram-na e carregaram-na para o quarto. Ela, porém, não sossegava; o peso do estômago como que se enovelava e subia-lhe por dentro até a garganta, sufocando-a num desabrido estrangulante. Esteve assim um pouco; afinal perdeu os sentidos e começou a espolinhar-se na cama, em convulsões que duraram quase uma hora.
Tornou a si nos braços das amigas da vizinhança, atraídas ali pelos formidáveis gritos que ela soltava. O pai e o Dr. Lobão também estavam a seu lado; o doutor, muito expedito, com os óculos na ponta do nariz, suando, rabujava enquanto a socorria:
- Que dizia eu? Ora aí tem! É bem feito! Acho ainda pouco! Quem corre por seu gosto não cansa! Se fizessem o que recomendei, nada disso sucederia! Agora o médico que a ature!...
E, voltando-se para uma das vizinhas que, por ficar muito perto dele, lhe estorvava às vezes o movimento do braço, exclamou com arremesso: - Saia daí! Também não sei o que tem a cheirar cá! Melhor seria que estivessem em casa cuidando das obrigações!
- Cruzes! disse a moça, fugindo do quarto. - Que bruto! Deus te livre!
Por esse tempo Magdá era acometida por uma explosão de soluços, e chorava copiosamente, o peito muito oprimido.
- Ora até que enfim! Rosnou o doutor. E, erguendo-se, soprou para o Conselheiro, a descer as mangas da camisa e da sobrecasaca, que havia arregaçado: - Pronto! Estes soluços continuarão ainda por algum tempo, e depois ela sossegará. Naturalmente há de dormir. O que lhe pode aparecer é a cefalalgia...
- Como?
- Dores de cabeça. Mas para isso você lhe dará o remédio que vou receitar.
E saíram juntos para ir ao escritório.
- É o diabo!... praguejava entre dentes o brutalhão, enquanto atravessava o corredor ao lado do Conselheiro, enfiando às pressas o seu inseparável sobretudo de casimira alvadia. - É o diabo! Esta menina já devia ter casado!
- Disso sei eu... balbuciou o outro. - E não é por falta de esforços de minha parte, creia!
- Diabo! Faz lástima que um organismo tão rico e tão bom para procriar, se sacrifique deste modo! Enfim - ainda não é tarde; mas se ela não casar quanto antes - um um! Não respondo pelo resto!
- Então o doutor acha que... ?
O Lobão inflamou-se: Oh o Conselheiro não podia imaginar o que eram aqueles temperamentozinhos impressionáveis!... eram terríveis, eram violentos, quando alguém tentava contrariá-los! Não pediam - exigiam! - reclamavam!
- E se não lhes dá o que reclamam, prosseguiu, - aniquilam-se, estrangulam-se, como leões atacados de cólera! É perigoso brincar com a fera que principia a despertar... O monstro já deu sinal de si; e, pelo primeiro berro, você bem pode calcular o que não será quando estiver deveras assanhado!
- Valha-me Deus! suspirou o pobre Conselheiro, que eu hei de fazer, não dirão?
- Ora essa! Pois já não lhe disse! É casar a rapariga quanto antes!
- Mas com quem?
- Seja lá com quem for! O útero, conforme Platão, é uma besta que quer a todo custo conceber no momento oportuno; se lho não permitem - dana! Ora aí tem!
- Não! Alto lá! isso não! A histeria pode ter várias causas, nem sempre é produzida pela abstinência; seria asneira sustentar o contrário. Convenho mesmo com alguns médicos modernos em que ela nada mais seja do que uma nevrose do encéfalo e não estabeleça a sua sede nos órgãos genitais, como queriam os antigos; mas isso que tem a ver com o nosso caso? Aqui não se trata de curar uma histérica, trata-se de evitar a histeria. Ora, sua filha é uma delicadíssima sensibilidade nervosa; acaba de sofrer um formidável abalo com a morte de uma pessoa que ela estremecia muito; está, por conseguinte, sob o domínio de uma impressão violenta; pois o que convém agora é evitar que esta impressão permaneça, que avulte e degenere em histeria; compreende você? Para isso é preciso, antes de mais nada, que ela contente e traga em perfeito equilíbrio certos órgãos, cuja exacerbação iria alterar fatalmente o seu sistema psíquico; e, como o casamento é indispensável àquele equilíbrio, eu faço grande questão do casamento.
- De acordo, mas...
- Casamento é um modo de dizer, eu faço questão é do coito! - Ela precisa de homem! - Ora aí tem você!
O Conselheiro suspirou com força, coçou a cabeça. Os dois penetraram no gabinete, e se o doutor, depois de escrever a sua receita, acrescentou, como se não tivesse interrompido a conversa: - Noutras circunstâncias, sua filha não sofreria tanto... nada disso teria até conseqüências perigosas; mas, impressionável como é, com a educação religiosa que teve. E com aquele caraterzinho orgulhoso e cheio de intransigências, se não casar quanto antes, irá padecer muito; irá vive em luta aberta consigo mesma!
- Em luta? Como assim, doutor?
- Ora! A luta da matéria que impõe e da vontade que resiste; a luta que se trava sempre que o corpo reclama com direito a satisfação de qualquer necessidade, e a razão opõe-se a isso, porque não quer ir de encontro a certos preceitos sociais. Estupidez humana! Imagine que você tem uma fome de três dias e que, para comer, só dispões de um meio - roubar! Que faria neste caso?
- Não sei, mas com certeza não roubava...
- Então - morria de fome... Todavia um homem, de moral mais fácil que a sua não morreria, porque roubava... Compreende? _Pois aí tem!
V
Depois do ataque, Magdá sentiu um grande quebramento de corpo e pontadas na cabeça. O Conselheiro, quando a viu em estado de conversar, falou-lhe com delicadeza a respeito de casamento, apresentando-lhe as doutrinas do Dr. Lobão, vestidas agora de um modo mais conveniente.
- Mas eu estou de acordo! repontou ela, estou perfeitamente de acordo! A questão é haver um noivo! Eu não posso casar sem um noivo!
- Tens rejeitado tantos!
- Porque não me convinha nenhum dos que me apresentaram; hoje, porém, estou resolvida a ser mais fácil de contentar, e creio que me casarei.
- Ainda bem, minha filha, ainda bem!
E abriram-se de novo as salas do Sr. Conselheiro, e começaram de novo as festas, e de novo começou aquela canseira de arranjar um - marido.
E espalhem-se convites para todos os lados! E corre a gente à confeitaria e aos armazéns de bebidas! E contrate-se orquestra! E chama-se a costureira! E ature-se o cabeleireiro! - Que maçada! Que insuportável maçada!
Entre os novos arrebanhados, apareceu o Sr. Comendador José Furtado da Rocha, velhote bem disposto, orçando pelos cinqüenta, mas dando tinta ao cabelo e escanhoando-se com muita perfeição. Era português, e havia-se opulentado no comércio, onde principiara brunindo pesos e balanças. Magdá aceitou-lhe a corte quase por brincadeira, a rir; ou talvez para não contrariar o pai, que se mostrava muito afeiçoado por ele; ou, quem sabe? talvez ainda na esperança de ver surgir de um momento para outro novo pretendente.
O velho parecia adorá-la e falava, com meias palavras e sorrisos de misteriosa intenção, em arranjar títulos, deixar palácio, correr a Europa inteira e comprar objetos de arte.
Um ajo! Mas, quando o Conselheiro, em nome do amigo, perguntou à filha se estava resolvida a casar com ele, Magdá sorriu, espreguiçou-se e, afinal, para não deixar o pai sem resposta, tartamudeou:
- Não digo que não, mas... sabe?... é cedo para decidir... Havemos de ver! havemos de ver!...
Três meses depois, o Comendador, já desenganado, casava-se em São Paulo com uma viúva ainda moça, professora de piano.
Apresentou-se então, solicitando a mão de Magdá, p Dr. Tolentino. Não tinha a metade do dinheiro do outro, mas em compensação era muito mais novo. Muito mais! E com um belo prestígio de homem de talento e um futurão na advocacia, se os seus pulmões lho permitissem.
Sim senhor, porque o Dr. Tolentino não gozava boa saúde. Era ainda jovem e parecia velho; extremamente magro, vergado, um pouco giboso, olhos fundos, faces cavadas, cabelo pobre e uma tosse de a cada instante. Todo ele respirava longas noites de estudo, sobre grossos livros de direito ou defronte das carunchosas pilhas dos autos; todo ele estava a pedir, com seu magro pescocinho, um longo cache-nez bem quente, e as suas mãos, extensas e magras, queriam luvas de lã; e os seus pés, longos e espalmados, exigiam sapatos de borracha. Não produzia lá muito bom efeito o vê-lo assim desmalmado, muito comprido dentro da sua sobrecasaca abotoada de cima a baixo, olhando tristemente para a vida por detrás dos seus óculos de míope.
Muito bom efeito - não, não produzia; mas também não produzia muito mau, graças à delicadeza dos seus gestos e à expressão inteligente do seu rosto cor de palha de milho. Cheirava a doença; mas, palavra de honra, falava que nem o José Bonifácio.
Não! definitivamente merecia a fama de homem ilustre!
O seu namoro à filha do Conselheiro foi calmo, correto e persistente. Porém inútil: Magdá, depois de muita negaça, muita hesitação e muito constrangimento, resolveu não o aceitar.
Já lá se ia entretanto quase que meio ano depois do primeiro ataque, e ela começava a torcer o nariz à comida, a fazer-se mais magra, mais irritável e mais sujeita a sobressaltos nervosos.
Abatia.
O drama, a música triste, o romance amoroso, provocavam-lhe agora um choro, que principiava pelas simples lágrimas e acabava sempre em convulsivos. Ao depois - aí estavam as pontadas no alto da cabeça, o embrulhamento do estômago, os terrores infundados, o exagero de todos os seus atos e em estranho desassossego do corpo e do espírito, que a fazia andar inquieta por toda a casa sem parar três segundos no mesmo ponto.
- Temo-la travada! Exclamava o seu médico; até que, uma ocasião, avançando furioso de punho fechado contra o Conselheiro, gritou-lhe, cerrando os dentes e arreganhando-os: - Que diabo, homem! casa esta pobre rapariga, seja lá com quem for!
- É boa! Respondeu o outro! - Ainda mais esta!... Pois você acha que, se houvesse aparecido com quem, eu já não a teria casado?
- Ora o que, meu amigo! As minhas observações não me enganam: ela tem qualquer amor contrariado, que não me confessa; e você com certeza sabe de tudo e cala o bico por conveniência... É que para o sujeito, naturalmente, é um tipo sem eira nem beira!... Ah! Eu compreendo estas coisas... mas, em todo o caso, fique sabendo para o seu governo que você está mas é preparando uma doida de primeira ordem! Ora aí tem!
O Conselheiro deu a sua palavra que não sabia de nada, e afirmou em boa fé que a filha não tinha namoro oculto, nem claro; se o tivera, já ele o houvera descoberto.
- Pois se não tem, é preciso arranjá-lo e arranjá-lo já!
Surgiu então o Conde do Valado.
Trinta a trinta e cinco anos. Elegante, louro, meio calvo, barba rente espetando no queixo em duas pontas de saca-rolha; olho azul, monóculo, o esquerdo sempre fechado; uma ferradura de ouro guarnecida de pequeninos brilhantes, na gravata, que também era toda sarapintada de ferraduras; luvas de pele da Suécia com três riscões negros em cima; sapatos ingleses, mostrando meias de cor, onde havia ainda pequenas ferraduras bordadas a seda.
Este, quanto ao chamado vil metal, não tinha nem pouco, nem muito; era pobre, pobre como o país onde nascera; mas descendia em linha reta de uma família portuguesa muito ilustre pelo sangue, e em cujos primeiros galhos até príncipes se apontavam. Vivia a custa de um cavalo igualmente puro no sangue e na raça, com o qual apostava no Prado. De resto - falava inglês, fumava cigarrilhos de Havana, bebia cerveja como qualquer doutor formado na Alemanha e tinha o distintíssimo talento de encher cinco horas só a tratar de jóquei-clube.
Magdá ficou muito impressionada quando o viu pela primeira vez passar a meio trote na praia de Botafogo fazendo corcovear à rédea tosa um alazão do Moreaux. Achou-o irresistível de botas de verniz, elegantemente enrugadas sobre o tornozelo, calção de flanela branca abotoado na parte exterior da coxa, jaleco de pelúcia cor de pinhão com passamantes e botões de prata, chapéu alto de castor cinzento e luvas de camurça. Por muitos dias conservou no ouvido o eco daquele estalar metódico e compassado, que as patas do animal feriam no calçamento da rua. E, em família, tanto e com tamanha insistência falou do tal conde, que o pai, mau grado as informações contrárias que obtivera a respeito dele, deu providências para o atrair à sua casa.
Foi uma corte sem tréguas a do Valado. Perseguia Magdá por toda a parte; passava-lhe a cavalo pela porta todos os dias; convidava-a para todas as valsas; fazia-lhe declarações de amor em todas as ocasiões.
- Então? perguntou o Conselheiro à filha, depois de lhe comunicar que o conde acabara de pedir a mão dela.
- Não sei, respondeu Magdá. Mais tarde, mais tarde terão a resposta... É bem possível que aceite...
Deram todos como certo o casamento da filha do Conselheiro com o estróina do conde. Fizeram-se comentários, reprovações. Mas, nesta mesma semana, uma noite, estando aquela ao piano e o outro ao seu lado, a virar-lhe as folhas da partitura, ela de repente deixou de tocar, soltou um grito e foi logo acometida por um novo ataque, ainda mais forte que o primeiro.
Havia descoberto, a passear no colarinho do fidalgo, um pequenino inseto da cor do jaquetão com que ele se exibia a cavalo. Acudiram-na de pronto com sais e algodões queimados. Fez-se uma desordem geral na sala; Magdá foi carregada a pulso para o quarto dando de pernas e braços por todo o caminho. E, daí a pouco, levantava-se a reunião e retiravam-se os convidados.
Não pode erguer-se da cama no dia seguinte, nem no outro, nem nos cinco mais próximos. Detinham-na grandes dores de cabeça, amolecimento nas pernas, e uma ligeira impressão dolorosa na espinha dorsal.
- Olhe! disse o Dr. Lobão ao Conselheiro - Isto ainda não é precisamente a tal fome de três dias, mas para isso pouco lhe falta!...
O pai de Magdá resolveu aproveitar a primeira estiada da moléstia para casar a filha com o conde.
- Decerto! decerto! aprovara o médico.
Todavia a caprichosa, ainda de cama, declarou que - definitivamente - mão se casaria com semelhante homem. - Nunca!
- Não! exclamou, com este é tempo perdido! Façam o que quiserem, eu não me caso!
- Mas porque milha filha?...
- Não sei, não quero!
- Ele te deu algum motivo de desgosto?...
- Ora! Já te disse que não quero!
E ninguém, nem ela própria, sabia explicar a razão porque. - Era lá uma cisma.
Quando se levantou estava desfeita; apareceram-lhe náuseas depois da comida e uma tosse seca que a perseguia enquanto estivesse de pé.
Foi então que o Dr. Lobão, enfurecido com a sua doente, porque se recusara a entregar-se ao conde, aconselhou o tal passeio à Europa.
VI
A viagem, como ficou dito, pouco lhe aproveitou ao sistema muscular e agravara-lhe sem dúvida o sistema nervoso. Magdá voltou mais impressionável, mais vibrante, mais elétrica. De novo, verdadeiramente novo, o que se lhe notava era só uma exagerada preocupação religiosa; estava devota como nunca fora, nem mesmo nos seus tempos de pensionista das irmãs de caridade. Mostrava-se muito piedosa, muito humilde e muito submissa aos preceitos da igreja. Falava de Cristo, pondo na voz infinitas doçuras de amor.
É que, enquanto percorrera as grandes capitais do mundo católico, visitando de preferência os lugares sagrados e as ruínas, o seu espírito, como se peregrinasse em busca do ideal fora lentamente se voltando para Deus. Preferira sempre os ermos silenciosos e propícios às longas concentrações místicas. As multidões assustavam-na com a sua grosseira e ruidosa atividade dos grandes centros de indústria e do comércio; o verminar das avenidas e boulevards, as enchentes de teatro, a concorrência dos passeios públicos, a aglomeração das oficinas e dos armazéns de moda, o cheiro do carvão de pedra, o vaivém dos operários, o zunzum dos hotéis; tudo isso lhe fazia mal. Agora, a sua delicadíssima sensibilidade nervosa reclamava o taciturno recolhimento dos claustros; pedia uma vida obscura e contemplativa, toda ocupada com um perenal idílio da alma com a divindade.
Em França, chegou a falar ao pai em recolher-se a um convento. O Conselheiro disparatou:
- Estava doida! Pois ele tinha lá criado uma filha com tanto esmero para a ver freira?... Não lhe faltava mais nada! Ah! bem quisera opor-se àquelas incessantes visitas aos mosteiros, aos cemitérios e às igrejas! Não se opusera - aí estavam agora as conseqüências! - Ser freira! Tinha graça! Não havia dúvida - tinha muita graça que a Sra. D. Madalena fosse a Paris para ficar num convento! Mas era bem feito!... era muito bem feito, porque, desde o dia em que se deu o que se dera com a visita ao túmulo de Eloisa e Abelardo, que ele devia estar prevenido contra semelhantes passeios e tomar providências a respeito daquela mania religiosa!
A visita ao túmulo dos legendários amantes fora com efeito muito fatal à filha do Conselheiro. Esta, depois de contemplá-lo em silêncio e por longo tempo, estática, abriu num pranto muito soluçado, findo o qual, pôs-se a dançar e cantar, num ritmo, que ia aos poucos se acelerando. O pai quis contê-la; Magdá fugiu-lhe, correndo pelo cemitério, saltando pelas sepulturas, tropeçando aqui e ali, tão depressa caindo como se levantando, a soltar gritos que pareciam uivos de fera esfaimada. Afinal, já sem forças e com as roupas em frangalhos, abateu por terra, ofegante, mas encabujando ainda num rosnar convulsivo, até perder os sentidos, e logo pegar em sono profundo, do qual só despertou vinte e tantas horas depois, já no hotel, para onde a levaram, sem que ela desse acordo de si.
Estava no período da coréia e das convulsões.
Este acidente, porém, em vez de lhe servir de lição e de afastá-la de tudo que lhe pudesse causar novas crises, foi, ao contrário, como que o ponto de partida da sua declinação para as coisas religiosas. Começou desde então a sentir-se oprimida por uma ansiedade sem objetivo nem causa aparente; às vezes uma grande mágoa a sufocava, enchendo-lhe a garganta de soluços indissolúveis; outras vezes eram titilações por todo o corpo, uns pruridos que a irritavam, que lhe metiam vontade de morder as carnes, de açoitar-se, de beliscar-se até tirar sangue. E, quando cessavam estas tiranias da matéria, voltavam de novo as mágoas, e então o que a consumia era um desejo esquisito, que lhe comia por dentro, onde e porque não sabia dizer; e depois ma esperança de conforto, um como ideal despedaçado no seu interior, cujas incalculáveis partículas se lhe espalhassem por todo o ser e procurassem fugir, transformadas em milhões de suspiros.
Valia-se então das súplicas religiosas e ficava longo tempo a rezar, banhada em lágrimas, os olhos injetados, os lábios trêmulos, o nariz frio de neve. Porém a oração não a confortava, e a infeliz pedia a Deus que a matasse naquele mesmo instante ou lhe enviasse dos céus um alívio para a suas aflições.
Foi neste estado que Magdá tornou ao Rio de Janeiro. A velha Camila, cuja beatice emperrara com o tempo e já tresandara a idiotia, rejubilou ao vê-la assim; durante a viagem da sobrinha, ela se recolhera ao convento de Santa Teresa, onde tinha amigas e onde costumava dantes ir passar dias e às vezes semanas inteiras, no tempo em que ainda não estava tão mal de saúde. Qual não seria, pois, o seu gosto, quando Magdá, fechando-se com ela no quarto, abriu o coração e franqueou à devota todas as vagas mortificações e místicos arrebatamentos da sua pobre alma enferma?
- Fizeste muito bem, minha filha! aplaudiu a tia, abraçando-a transportada. - Fizeste muito bem em te voltares para a igreja! Deixa lá falar teu pai, que não entende disto e está tão contaminado de heresia como qualquer homem deste tempo. Deixa-o lá e entrega-te às mãos de Deus, que terás bem-aventurança na terra, como mais tarde a pilharás no céu.
A sobrinha falou em casamento.
- Se encontrares marido, respondeu a velha, e entenderes que deves casar - casa-te, menina, que essa é a vontade de teu pai; mas também se não casares, nem por isso serás menos feliz, uma vez que já estejas na divina graça de Nosso Senhor Jesus Cristo...
E, depois de cruzar as mãos sobre o peito e revirar os olhos para o céu, acrescentou: - Não tenho eu vivido até hoje tão solteirinha como no dia em que nasci?... E, olha, rapariga, que o homem nunca me fez lá essas faltas! Ainda em certa idade, quando andava no fogo dos meus vinte aos trinta, vinham-se assim umas venetas mais fortes de casamento; mas que fazia eu? - Disfarçava; metia-me com os meus santinhos; rezava à Nossa Senhora do Amparo, e com poucas - nem mais pensava em semelhante porcaria! A coisa está em tirar uma pessoa o juízo daí! Olha: decora a oração que te vou ensinar, e reza-a sempre que sentires formigueiros na pele e comichões por dentro!
A oração constava do seguinte:
"Jesus, filho de Maria, príncipe dos céus e rei na terra, senhor dos homens, amado meu, esposo de minha alma, vale0me tu, que és a minha salvação e o meu amor! Esconde-me, querido, com o teu manto, que o leão me cerca! Protege-me contra mim mesma! esconjura o bicho imundo que habita minha carne e suja minha alma! - Salva-me! Não me deixes cair em pecado de luxúria, que eu sinto já as línguas do inferno me lambendo as carnes do meu corpo e enfiando-se pelas minhas veias! Vale-me, esposo meu, amado meu! Vou dormir à sombra de tua cruz, como o cordeirinho imaculado, para que o demônio não se aproxime de mim! Amado do meu coração, espero-te esta noite no meu sonho, deitada de ventre para cima, com os peitos bem abertos, para que tu me penetres até ao fundo de minhas entranhas e me ilumine toda por dentro com a luz do teu divino espírito! Por quem és, conjuro-te que não me faltes, por que, se não vieres, arrisco-me a cair em poder dos teus contrários, e morrerei sem estar no gozo da tua graça! Vem ter comigo, Jesus! Jesus, filho de Deus, senhor dos homens, príncipe dos céus e rei na terra! Vem que eu te espero. Amém."
Magdá decorou isto e, desde então, todas as noites, antes de dormir, ficava horas esquecidas ajoelhada defronte do seu crucifixo de marfim, a repetir em êxtases aquelas palavras que a entonteciam com a sua dura sensualidade ascética. E os olhos prendiam-se-lhe na chagada nudez do filho de Maria e ungiam-lhe ternamente as feridas, como se ela contemplasse com efeito o retrato de seu amado. Mas, naquele corpo de homem nu, ali, no mistério do quarto, trazia-lhe estranhas conjeturas e maus pensamentos, que a mísera enxotava do espírito, coroando envergonhada da sua própria imaginação.
Foi a partir desse tempo que deu para andar sempre vestida de luto, muito simples, com a cabelo apenas enrodilhado e preso na nuca; um fio de pérolas ao pescoço, sustentando uma cruz de ouro, e mais nenhuma outra jóia. E, assim, a sua figura ainda parecia mais delgada e o seu rosto mais pálido. A tristeza e a concentração davam-lhe à fisionomia uma severa expressão de orgulho; dir-se-ia que ela, a medida que se humilhava perante Deus, fazia-se cada vez mais altiva e sobranceira para com os homens. O todo era o de uma princesa traída pelo amante, e cuja desventura não conseguira abaixar-lhe a soberbia, nem arrancar-lhe dos lábios frios numa queixa de amor ou um suspiro de saudade.
Os seus atos mais simples e os seus mais ligeiros pensamentos ressentiam-se agora de um grande exagero. Nunca se mostrara tão intolerante nos princípios de dignidade e na pureza dos costumes; nunca fora tão aristocrata, tão zeladora da sua posição na sociedade, nem tão convicta dos seus merecimentos e dos seus créditos.
Uma conduta irrepreensível! Se sofria ou não para sustentar os deveres de mulher honesta só o sabia a discreta imagem de marfim, a quem unicamente confiava os segredos das suas lutas interiores; os desesperos e as misérias da sua carne; se tinha desejos, tragava-os em silêncio com a mais inflexível nobreza e o mais afinado orgulho. Ao vê-la, na singela gravidade do seu trajo, o rosto descolorido pela moléstia, os movimentos demorados e sem vida, sentia a gente por ela um profundo respeito compassivo, uma simpatia discreta e duradoura. O triste ar de altiva resignação que se lhe notara nos olhos, outrora tão ardentes e tão talhados para todos os mistérios da ternura; a desdenhosa expressão de fidalguia daqueles lábios já sem cor, instrumentos que a natureza havia destinado para executar a música ideal dos beijos e cujas cordas pareciam agora frouxas e embambecidas; aquela respiração curta e entrecortada de imperceptíveis suspiros; aquela voz, poderosa na expressão e fraca na tonalidade, onde havia um pouco de súplica e um pouco de arrogância - súplica para Deus e arrogância para os homens; enfim - tudo que respirava da sua adorável figura de deusa enferma: tudo nos conduzia a amá-la em segredo reverentemente, como um soldado a sua rainha.
Agora a bem poucos dava a honra de uma conversa; falava sempre sem gesticular e em voz baixa, e ninguém, a não ser o pai, lhe alcançava um sorriso. A dança, o canto, o piano, tudo isso foi posto à margem; as partituras dos seus autores favoritos já não se abriam havia longos meses; a sua caixinha de tintas vivia no abandono; os seus pincéis de aquarela, dantes tão companheiros dela, já lhe não mereciam sequer um beijo. Iam-se-lhe agora os dias quase que exclusivamente consumidos na leitura, lia mais que dantes, muito mais, sem comparação, mas tão somente livros religiosos ou aqueles que mais de perto jogavam com os interesses da igreja; gostava de saber as biografias dos santos, deliciava-se com a "Imitação de Jesus Cristo", e não se fartava de ler a Bíblia, o grande manancial da poesia que agora mais a encantava; decorara o "Cântico dos Cânticos" de Salomão, principalmente o capítulo V que principia deste modo:
"Venha o meu amado para o seu jardim, e coma o fruto das suas macieiras.
"Eu vim para o meu jardim, irmã minha esposa; seguei a minha birra aromática; comi o favo com o mel; bebi o meu vinho com o meu leite. Comei, amigos, e bebei, e embriagai-vos, caríssimos!
"Eu durmo e o meu coração vela; eis a voz do meu amado que bate; dizendo: - Abre-me, irmã minha pomba minha, imaculada minha, porque sinto a cabeça cheia de orvalho, e me estão correndo pelos anéis do cabelo, as gotas da noite."
E estes, como todos os outros versículos de Salomão, lhe punham no espírito uma embriagues deliciosa, atordoavam-na como o perfume capitoso e melífluo de flores orientais ou como um vinho saboroso e tépido que a ia penetrando toda, até a alma, com a sua doçura aveludada e cheirosa. E, de pois de repeti-los muitas e muitas vezes, corria a tomar nas mãos a imagem de Cristo, e abraçava-a, e cobria-a de beijos, soluçando e murmurando: "Meu amado, meu irmão, meu esposo!" E dizia-lhe em segredo, num delírio crescente: "Eu sou a tua pomba imaculada; sou o mel de que teus lábios gostam; sou o leite fresco e puro com que tu te acalmas; tu és o vinho com que me embriago!"
- Isto acaba mal! Isto com certeza acaba muito mal! exclamava entretanto o Dr. Lobão, furioso contra o Conselheiro, sobre quem ele fazia recair toda a responsabilidade do estado de Magdá. - Pois já não bastavam os terríveis elementos que havia para agravar a moléstia?... Como então deixou nascer e desenvolver-se o demônio daquela beatice, que só por si era mais que suficiente para derreter os miolos a qualquer mulher?!
Uma tarde, na semana santa, ela saiu em companhia da velha e voltou sem sentidos no fundo de um carro. Tinham ido ouvir um sermão na Capela Imperial, e Magdá fora aí mesmo acometida por um ataque de convulsões em delírio.
O Conselheiro revoltou-se formalmente contra a irmã:
Aquilo era um abuso que orçava pela petulância! era um desrespeito ao que ele determinara dentro de sua casa e com relação à sua própria filha! Por mais de uma vez havia declarado já que a Sra. D. Madalena não podia ir à igreja e muito menos demorar-se aí horas e horas; e fazia-se justamente o contrário! Se D. Camila não podia passar sem isso, que fosse sozinha! Podia lá ficar o tempo que quisesse, fartar-se de sermões e rezas, deliciar-se com aquela bela atmosfera impregnada de incenso e bodum de negros! Que fosse; ninguém se privava de ir, mas, com um milhão de raios! não arrastasse consigo uma pobre doente para pô-la naquele estado! Era muito bonito, não tinha dúvida! Ele em casa a desfazer-se com cuidados de meses e meses para minorar os sofrimentos da filha, a fazer sacrifícios para a ver boa; e a besta da irmã a destruir tudo isso em poucas horas! Não! não tinha jeito! A continuarem as coisas por aquele modo, ele ver-se-ia obrigado a tomar sérias providências contra semelhante abuso! Se D. Camila não se queria conformar com o que ditava o bom senso, que tivesse paciência, mas voltaria por uma vez para o convento!
E o que mais o irritava era o modo fraudulento porque tudo aquilo se fazia; eram as confidências secretas, as combinações em voz misteriosa, a espécie de conspiração que havia contra ele, entre Magdá e a velha. Enganavam-no: saiam para "dar um passeio pela praia", e agora ficava descoberto o que eram os tais passeios! Roubavam-lhe até o amor e a confiança de sua filha! - Dantes, Magdá não dava um passo, nem mesmo pensava em fazer fosse o que fosse, sem primeiro consultá-lo, ouvi-lo; e agora - evitava-o; falava-lhe em meias palavras; parecia ter segredos inconfessáveis! Dissimulava!
- Tudo isso é da moléstia! Explicou o Dr. Lobão, cujas visitas à casa do Conselheiro rareavam ultimamente, porque o feroz médico vivia muito preocupado com o estabelecimento de uma casa de saúde, que acabava de montar fora da cidade. Mas o pobre pai não se consolava com a explicação do doutor e sofria cada vez mais por amor da sua estremecida enferma. Magdá, com efeito, estava agora toda cheia de dissimulações e reservas; parecia viver só exclusivamente para uma idéia secreta, um ideal muito seu, que ela colocava acima de tudo e de todos. Fazia-se muito manhosa, muito amiga de sutilezas, de disfarce, empenhando-se em esconder as suas mais simples e justificáveis intenções e fazendo acreditar que existiam outras de grande responsabilidade. Os passeios clandestinos que continuava a dar coma tia, cegando a vigilância do Conselheiro, para estar algum tempo na igreja, tinham para ela um irresistível encanto de fruto proibido, e a preocupação em esconde-los constituía o melhor interesse de sua existência.
As duas saíam em passo de quem vai espairecer um pouco pelas imediações de casa, mas a certa distância aceleravam a marcha, apressavam-se, conversando em segredo em segredo os seus assuntos religiosos. A rapariga, à medida que se aproximava do templo, ia ficando excitada, palpitante, olhando repetidas vezes para trás, como se receiasse que a seguissem. Afinal chegava, ofegante, com o coração na garganta e, depois de verificar que não erra seguida por ninguém, entrava na igreja, trêmula e assustadiça, como se entrasse no latíbulo de um amante. E aquele silêncio das naves; aquela meia sombra em que rebrilhavam os ouros dos altares; aquela solidão compungida; o ar fresco dos lugares de teto muito alto; tudo isso lhe punha no corpo um meigo quebranto de volúpia sobressaltada.
Ajoelhava sempre num ponto certo; tinha já a sua imagem predileta, era um grupo de Mater Dolorosa, de tamanho natural, com o Cristo deitado ao colo, morto, todo nu, os braços pendentes, o sangue a escorrer-lhe pelas faces e pela ebúrnea rigidez do corpo. Adorava este Cristo, amava-o, preferia-o, tinha íntimas predileções por ele; achava-o mais formoso do que todas as outras imagens sagradas. Embriagava-se com ver-lhe aquele rosto muito pálido, aqueles olhos de pálpebras mal fechados, adormecidos no negrume dos martírios, aqueles lábios roxos, imóveis, aqueles longos cabelos que lhe caíam pelos ombro, aquela barba nazarena que parecia ter bebido de cada mulher da terra uma lágrima de amor.
E Ela, no murmúrio das suas orações, dizia-lhe ternuras de esposa; pedia-lhe consolos e confortos, que ele não lhe podia dar; falava-lhe com o magoado orientalismo do "Cântico dos Cânticos"; e suas palavras eram quentes como beijos e ternas e doloridas como suspiros de quem ama. Por aquela imagem querida acentuava na sua imaginação e melancólica figura desse ente perfeito e desejado, de que na Bíblia lhe falavam as filhas de Jerusalém. Era esse o amado que, em sonhos, lhe pedia para pedir a porta, porque lhe estavam correndo pelos anéis do cabelo as gotas da noite; esse era o amado cândido e rubicundo, escolhido entre milhares; era esse, cujos olhos são ternos e doces, nem como as pombas que, tendo os ninhos ao pé do regato das águas, estão lavadas em leite e se acham de assento junto das mais largas correntes dos rios; era esse o amado, cujas faces são iguais a canteiros de flores aromáticas e cujos lábios destilam a mais preciosa mirra; era esse de mãos superfinas, feitas ao torno, cheias de jacintos; esse de ventre de marfim, guarnecido de safiras; esse de pernas de mármore sustentadas sobre bases de ouro; esse que era escolhido como os cedros e cuja figura a chorosa e lânguida sulamita comparava ao Líbano.
Era esse que ela supunha amar; a quem supunha dar tudo o que seu coração e alma possuíam; e, vendo-se descoberta e proibida de ir às místicas entrevistas com ele, foi tomada por um grande desgosto, sobrevindo as convulsões, e tendo de guardar a cama por muitos dias, porque lhe apareceu então uma febre de caráter especial, apresentando todos os sintomas da pirexia comum, mas que todavia não se subordinava aos medicamentos que a esta combatem.
- Ora aí tem! É a febre histórica! Classificou logo o Dr. Lobão. E, em resposta às perguntas do Conselheiro, despejou um chorrilho de nomes técnicos, dizendo que: "Aquilo não podia ser febre tifóide, nem ter sua origem na flegmasia encefálica, nem tão pouco na alteração de algum órgão esplâncnico, porque uma meningite, ou uma encefalite ou mesmo a febre tifóide comum não poderia chegar àquele grau, por que não havia doente capaz de resistir!"
O certo é que Magdá, ao levantar-se da tal febre, estava reduzida a uma fraqueza extrema. Voltaram-lhe a dor da espinha, a tosse e a inapetência completa; se insistia em comer, vomitava incontinente. O Dr. Lobão, na sua venerável pretensão de médico antigo, declarou sem cerimônia que, "pela contração tônica dos músculos, pressentia a aproximação da letargia".
- A letargia! Agora é que eram elas! Aí estava o que ele menos desejava que viesse!
Depois de praguejar contra todo mundo e ralhar cuidadosamente com o Conselheiro, aconselhou a este que levasse a doente para outro arrabalde mais campestre, onde não houvessem igrejas perto de casa e onde ela pudesse estar mais em liberdade e mais em movimento. E, logo que se sentisse melhor, convinha despertar-lhe o gosto por qualquer ocupação manual. "Nada de belas artes, nem leituras! Exclamava o cirurgião. - Jardinagem, serviço de horta, jogos de exercícios, como o bilhar, a caça, a pesca! E passeios! Muitos passeios ao ar livre, pela fresca manhã, sem chapéu, sem muito medo de apanhar sol! E, se os passeios fossem depois de um banho bem frio - melhor seria! Era preciso que Magdá não deixasse de tomar ferro e aquele xarope de Easton, que ele receitara. Na alimentação devia procurar sempre comer um pouco de carne sangrenta, mariscos, e tomar bom vinho Madeira."
- Ora, aí tem! Faça isto, concluiu ele, e veja se consegue esconder-lhe o diabo dos tais livros religiosos, que ela tem lido ultimamente.
E resmungou ainda, depois de novas pragas: - Pena é que se lhe não possa esconder também aquela barata velha, que é ainda pior do que todas as cartilhas da doutrina cristã!
VII
A mudança estava marcada para daí a quinze dias. Iriam refugiar-se na Tijuca, num casarão, que o Conselheiro possuía para essa bandas. Sobrado muito antigo e de aparência tristonha, todo enterrado no fundo de uma chácara, enorme e destratada, que em alguns pontos até aprecia mato virgem. Janelas quase quadradas; paredes denegridas pela chuva e pelo tempo; nas grades da escadaria principal heras e parasitas grimpavam livremente; as trapoerabas cobriam os degraus e alastravam por toda a parte; e lá no alto, à beira desdentada do telhado, habitava uma república de andorinhas.
Para chegar à casa, tinha-se de atravessar uma longa e tenebrosa alameda de mangueiras, que começava logo no portão da entrada e se ia estendendo por ali acima lúgrebe como um caminho de cemitério. Era triste aquilo com os seus altos muros de pedra e cal, pesados, cobertos de limo, e transbordantes de copas de árvores velhas. O casarão, olhado pelas costas ou pelo franco esquerdo, deixava-se ver em toda a sua grosseira imponência, porque dava esses lados para a rua, fazendo esquina com as suas próprias paredes. Metia aflição entrar lá; um pavoroso silêncio de igreja abandonada enchia os enormes quartos nus e enxovalhados de pó; um ar frio e encanado, como o ar de corredores de claustro, enregelava e oprimia o coração naqueles longos aposentos sem vida. Tudo aquilo transpirava cheiro de velhice, cheiro de moléstia; sentia-se a friagem da morte e a fedentina úmida das catacumbas.
O Conselheiro, porém, mandou correr uma limpeza geral na casa; fez ir para lá os móveis e objetos necessários; e, uma bela tarde, meteu-se afinal num landeau com a filha e mais a velha Camila e abandonaram Botafogo.
Foram com o carro fechado até certa altura do caminho, porque Magdá, de tão incomodada que passara a noite da véspera, não tivera ânimo de por outra roupa e apenas enfiara um sobretudo de casimira e agasalhara a cabeça e o pescoço com uma saída de baile.
Chegaram pouco antes do crepúsculo. O sol acabara de retirar-se, mas a terra ainda palpitava na luz. As aves iam-se chegando aos seus penates; toda a natureza se aninhava para dormir; só as vadias das cigarras continuavam espertas, a cantar, fazendo sobressair o seu interminável lá menor dentre os pacatos bocejos da mata que se espreguiçava ali mesmo, a dois passos da casa, tranqüila e submissa somo um animal doméstico. Magdá sentiu-se ternamente impressionada pelo taciturno aspecto do casarão que, lá naquelas alturas, se lhe afigurava um velho mosteiro ignorado. A circunstância da hora também contribuiu para isso; aquela hora sem dono, que não pertence ao dia nem à noite - era dela; chamou-a a si, como se recolhesse um enjeitado, e tomou-lhe carinho. Era o momento predileto para as suas concentrações e para seus êxtases: em tudo descobria a essa hora o carpir de uma saudade; cada moita de verdura ou cada grupo de árvores tinha para a filha do Conselheiro suspiros e queixumes de amor. Parecia-lhe a terra, nesse lamentoso e supremo instante em que o sol morre, se vestia de luto e chorava a perda do esposo que além se afogava, em pleno horizonte, atirando-lhe de longe os seus últimos beijos de fogo. Magdá ouvia então os abafados soluços da viúva e sentia-lhe o frio orvalhar do pranto.
- Bem, minha filha, vamos para cima, que já cai sereno.
Ela havia escolhido para seus aposentos uma sala e dois cômodos do andar superior. O quarto da cama era quadrado, muito singelo, uma verdadeira cela, em que o inseparável crucifixo de marfim assentava ao ponto de impressionar; tinha uma só janela, essa mesma gradeada de ferro e sem vista, porque ficava justamente de fronte de uma grande pedreira em exploração. O Conselheiro teve de contrariar a filha para dar a estas salas um pouco de conforto e elegância.
- Para que? dizia ela, não é preciso! em qualquer parte a gente vive e morre...
Como estava transformada! Ainda assim notava-se-lhe nas maneiras a mesma correção fidalga e nos gestos a fina escolha e apurada sobriedade, que dantes a distinguiam tanto entre as suas amigas. D. Camila foi também para o andar de cima, fazendo-se acompanhar por uma corte de santos de várias espécies, tamanhos e virtudes. Além dos escravos, levaram apenas uma criada branca, para tratar de Magdá.
Instalados, o Conselheiro tomou um homem para arranjar o jardim e ocupou os seus negros na reparação da chácara, acompanhando ele próprio o serviço, na esperança de despertar igual desejo no ânimo da filha.
Mas qual! Ela, desde o momento que se enterrou ali, parecia até mais desanimada, mais triste e metida consigo. Agora dava para não ir à mesa e fechar-se no quarto, comendo pedacinhos de pão de instante a instante, roendo queijo seco, chupando frutas ácidas e mastigando goiabas verdes. E sempre a cismar.
O pai embalde protestava contra isto; embalde lhe dizia que ela estava-se preparando para uma séria irritação do estômago; embalde queria arrastá-la par a mesa nas horas da comida; embalde lembrava passeios pela manhã ou ao cair da tarde, a pé, a cavalo, de carro, como ela escolhesse. Era tudo inútil: Magdá continuava agarrada ao quarto - cismando.
- Então, ao menos, que acordasse mais cedo, fosse para baixo conversar com ele na chácara; tomar leite mungido na ocasião; ver o pombal que se estava fazendo; dar uma vista-d’olhos pelo galinheiro e pela horta.
Magdá prometia, resmungava: - Que sim, que sim, porque não? Do outro dia em diante estaria de pé logo ao amanhecer!
Mas, no dia seguinte, quando iam chamá-la ao quarto, à uma hora da tarde, respondia de mau humor:
- Deixem-me em paz! Oh!
- Nesse caso vamos de novo para Botafogo! Exclamou afinal o Conselheiro, perdendo a paciência. - Eu, se vim enfurnar-me aqui, foi na esperança de fazer-te mudar de regime e com isso alcançar-te algumas melhoras! Vejo, porém, que é muito pior a emenda que o soneto!
Ela teve um tremor de músculos, e ficou muito impressionada com o tom quase áspero que o pai pusera nestas palavras.
- Não sei que desejam de mim!... disse.
- Desejo que fiques boa. Aí tens tu, o que desejo!...
- Só parece que julgam que me faço doente para contrariar os outros! Se estivesse em minhas mãos, seria mais agradável a todos; não me ponho melhor e bem disposta, porque não posso!...
- Está bom, está bom, balbuciou o Conselheiro, acarinhando-a, arrependido por não ter sido tão amável desta vez como das outras. - Não vás agora afligir-te com o que eu disse... Aquilo não teve a intenção de magoar-te...
Ela prosseguiu em tom infeliz e ressentido: - Se vim para cá, foi porque me trouxeram... não reclamei nada... Não me queixei de coisa alguma... Sinto-me aqui perfeitamente... dou-me até muito bem, e só peço e suplico que não me contrariem; que me deixem em paz pelo amor de Deus; que não me apoquentem; que...
Vieram os soluços e Magdá principiou a excitar-se.
- Então, minha filha, que tolice é essa?
- É que eu não posso ouvir falar assim comigo!... bem sabem que estou nervosa! bem sabem que estou doente!
- Sim, sim, tens razão... Passou! Passou!
E o Conselheiro, deveras surpreso com aquelas esquisitices da filha, espantado por vê-la fazer-se tão humilde, tão coitadinha, puxou-a brandamente para junto de si e afagou-a como se estivesse a consolar uma criança.
- Acabou! Acabou!
Magdá chorava com a cabeça pousada no colo dele.
- Então, então, não te mortifiques... Aqui ninguém faz senão o que for do teu gosto... Vamos, não chores desse modo...
Qual! o resultado foi passar pior esse dia e aumentarem as suas rabugices no dia imediato; - Que desejava morrer! - Acabar logo com aquela miserável existência! Que ali todos já estavam fartos de a suportar! Que todos se aborreciam com ela e procuravam meios e modos de contrariá-la, só para ver se a despachavam mais depressa! Que bem quisera recolher-se a um convento, mas não lhe deixaram! Pois antes tivessem consentido, porque agora até a própria criada parecia fazer-lhe um grande obséquio, quando era obrigada a ter um pouco mais de trabalho com ela.
No fim de contas apareceu-lhe de novo a tal febre de caráter especial; agora, porém, com delírios e movimentos luxuriosos, sobrevindo uma profunda letargia, contra a qual eram inúteis todos os recursos do médico.
Parecia morta. No fim de longas horas de esforços, o Dr. Lobão, já desesperado, teve, a contra gosto, de aceitar o conselho de um colega ainda moço e de idéias modernas - a compressão do ovário.
Efeito pronto: Magdá tornou a si depois da operação, livre já das impertinências e infantis rabugices, que tivera antes da febre. Voltara à sua habitual gravidade, às suas maneiras austeras de fidalga enferma; mas começou a sentir-se vagamente magoada nos melindres do seu pudor: queria parecer-lhe adivinhava que, durante a inconsciência da sua anestesia, o insolente do médico a devassara toda; sentia ainda nos lugares mais vergonhosos do corpo a impressão de mãos estranhas que os apalparam e comprimiram. E a idéia de que alguém a vira descomposta e que lhe tocara nas carnes, revoltou-a como imperdoável ultraje feita à sua honra e ao seu orgulho de mulher pura. Todavia não se achava com coragem de interrogar ninguém a esse respeito, e, foi tal o seu vexame, que a infeliz escondeu-se no quarto, a chorar de acanhamento e raiva.
- Oh! exclamou o doutor, enquanto o Conselheiro lhe deu conta disto: - Eu punha-a esperta e sã em pouco tempo, se me dessem carta branca para isso! A questão dependia toda do enfermeiro que lhe arranjasse! Aquelas lamúrias e aquelas lágrimas ir-se-iam logo embora com a primeira semana de lua de mel!
No entanto, Magdá continuava a sofrer: a tosse não a deixava senão quando ela se recolhia à cama; deitada não tossia nunca, mas, em compensação, aparecia-lhe uma espécie de asma. Agora, uma das suas manias era pôr-se à janela do quarto e aí permanecer horas e horas esquecidas, a ver o serviço da pedreira que ficava defronte, olhando muito entretida para os cavoqueiros, e ouvindo a toada que eles gemem quando estão minando a rocha para lhe tocar fogo. Parecia gostar de ver os trabalhadores; como se lhe aprazia aquela rica exibição de músculos tesos que saltavam com o peso do macete e do furão de ferro, e daqueles corpos nus e suados, que reluziam ao sol como se fossem de bronze polido.
E, quando alguém ia chamá-la para a mesa ou para conversar com o pai, respondia zangada, sem tirar os olhos da pedreira:
- Não posso ir! Deixem-me!
E se insistiam: - Ó senhores, que maçada! Não posso ir, já disse! Estou doente! Oh!
Depois do ataque de letargia, foram voltando pouco a pouco s esquisitices de gênio e os caprichos de crianças estragadas com mimos; quase nunca se desprendia do quarto e, nas poucas vezes que lhe surgia por lá alguma camarada dos bons tempos, por tal modo se mostrava seca e até grosseira, que a amiga tratava de abreviar a visita e saía sem a menor intenção de voltar.
Nem mesmo a própria criada queria já suportá-la, apesar de muito bem paga. "Pois não! Era uma impertinência todo dia! um rapelão por dá cá aquela palha! - Se a gente não ia logo correndo saber o que serrazina queria quando chamava - tome sarabanda! - Oh! Insuportável! Uma verdadeira fúria! De mais a mais a "barata velha" ultimamente também dera para ficar pior, e havia quase duas semanas que se não desgrudava da cama nem à mão de Deus Padre!"
Pobre velha! Consumia-se numa infernal complicação de moléstias; eram intestinos, era cabeça, eram pernas, era o diabo! Parecia uma decomposição em vida: fedia como coisa podre! Já se não alimentava pela boca; os seus gemidos eram arrotos de ovo choco, e os humores que ela expelia por toda a parte do corpo empesteavam a casa inteira.
- Essa não tem mais que esperar! declarou bem alto o Dr. Lobão, olhando-a desdenhosamente por cima dos óculos, como se a mísera fosse já um defunto e não pudera ouvir-lhe a desumana profecia. - Está despachada! A consumpção deu-lhe cabo do canastro!
Metia dó. Veio uma velhinha, sua camarada de muitos anos, ajudá-la a morrer, e consigo trouxe duas escravas, especialistas em servir a enfermos desenganados, porque a senhora tinha mania de acompanhar os últimos instantes de todas as amigas que se iam antes dela. A casa parecia um hospital: sentia-se cheiro de enfermaria e andavam todos sarapantados, cheios de terror pela morte; de manhã à noite faziam-se rezas em torno do doente. O Conselheiro quis que a filha se afastasse daquele espetáculo e fosse passar algum tempo em outra parte; Magdá opôs-se de pé firme e deixou-se ficar ao lado da tia, rezando com tamanho empenho que fazia crer que só com seus esforços contava para salvar-lhe a alma.
O médico dissera a verdade: quatro dias depois da sentença lavrada por ele, D. Camila pediu um padre, muito aflita. Era já a morte que pegava de agoniá-la.
Correu-se a chamar Nosso-Pai.
Não veio logo; e a moribunda, como quem está com o pé no estribo para uma longa viagem e arrisca a partir sem levar um objeto que lhe há de fazer muita falta em caminho, remexia inquieta a cabeça sobre os travesseiros, lançando contínuos olhares de impaciência para a porta do quarto.
O Viático demorava-se.
O Conselheiro ia de vez em quando até a janela de uma das salas que davam para a rua e passeava ansioso pelo segundo andar.
- Chegou! Disse por fim, retornando ao aposento da irmã.
Houve uma enternecida agitação. Ouviu-se o toque de uma campainha ecoando nos corredores da casa, e a velha Camila teve um suspiro de alívio. - Já não partiria sem a sua extrema unção!
O padre entrou com os ajudantes, muito cerimonioso debaixo do pálio, agasalhando a hóstia consagrada junto ao peito, com os cuidados de quem traz uma vasilha cheia até as bordas e não quer entorná-la. Fez-se em redor dele e da paciente respeitoso silêncio; apenas se ouviam, além dos roncos da moribunda, a voz abafada do sacerdote, que resmungava numa alternativa de sussurros, ora mais alto, ora mais baixo, sem fazer pausas, como se estivesse contando intermináveis algarismos.
A cerimônia durou pouco e, quando o religioso se retirou com a sua comitiva, a velha parecia tranqüila, nem que houvesse tomado um milagroso remédio de efeito imediato. Magdá, por detrás dos pés da cama, orava, ajoelhada defronte de uma mesinha coberta por alva toalha de rendas sobre a qual um crucifixo, entre duas velas de cera que ardiam com pequenos estalinhos secos; tinha os olhos muito abertos e postos sobre a imagem do Crucificado, transbordando lágrimas que lhe rolavam silenciosas pela face; as mãos cruzadas sobre o peito numa postura de êxtases. O Conselheiro puxou uma cadeira para junto do leito da irmã e assentou-se, colocando a sua mão direita por debaixo do úmido crânio da agonizante; esta começou a agitar-se de novo nos travesseiros. Então, a velhinha amiga dela ajoelhou-se do lado oposto e obrigou-a a segurar nos dedos já sem vida uma das velas, que acabava de tirar de cima da mesa, e pôs-se a rezar em voz baixa. Camila rouquejava gemidos que iam se transformando num pigarro contínuo; as suas pupilas estavam já imóveis e veladas; escolhia-lhe das ventas e da boca aberta, como um buraco feito na cara, uma grossa mucosidade esverdinhada e fedentinosa. Assim levou algum tempo, arquejando; até que afinal a respiração lhe foi aos poucos amortecendo na garganta, e até que os olhos espremeram a última lágrima e os pulmões sopraram o derradeiro fôlego.
Nessa ocasião, Magdá acabava de levantar-se e marcava compassos de música com o dedo sobre a mesinha, dançando com o corpo de um para o outro lado, numa cadência inalterável, em tirar a ponta dos pés do mesmo lugar e movendo os calcanhares suspensos do chão.
- Um! dois! - Um! dois! - Um! dois!
Era um novo ataque de coréia.
VIII
Com a morte da velha Camila, despedira-se da casa a mulher que estava ao serviço de Magdá e fora substituí-la uma rapariga ali mesmo da vizinhança.
- Justina, uma sua criada, para a servir.
Portuguesa, das ilhas, forte, rechonchuda e muito amiga de conversar. Teria trinta anos, era viúva, com três filhos: o mais velho já encaminhado numa oficina de encadernador; o imediato morando com a madrinha em Belém, e o mais novo, que ainda mal se agüentava nas pernas, acompanhava para onde ela ia.
- Não! que isto de crianças, quando estão pequenas, as mães devem aturá-las! como não?
Diziam que fora sempre mulher de bons costumes, e com efeito parecia, ao menos pela cara. Muito risonha, corada, dentes claros e olhos castanhos, um pouco recaídos para o lado de fora com uma natural expressão de lástima, que aliás não perturbava em nada a alegre vivacidade da sua fisionomia. Tinha papadas, e fazia roscas no cachaço; uma penugem de fruta na polpa do queixo e dois pincéis de aquarelas nos cantos da boca. Quando andava tremiam-lhe os quadris como imensos limões de cheiro feitos de borracha.
Logo às primeiras palavras que ela trocou com Magdá mostrou-lhe simpatia. É que era justamente uma dessas criaturas vindas ao mundo para cuidar de doentes; naturezas que só amam deveras àquelas a quem devem muitas canseiras; que só amam depois de grandes sacrifícios; depois de muita noite perdida e muito sono interrompido. Nascera enfermeira, nascera para os fracos; gostava de encarregar-se de crianças e, quanto mais achacadinhas fossem estas tanto melhor. Os raquíticos, os aleijados, eram gente da sua predileção. Com o leite do seu último pequeno criara um fedelho, que estava morre-não-morre quando lhe foi parar às mãos; pois ela, depois de salvar-lhe a vida, a custo de longos meses de desvelo sem descanso, tomou-lhe tal carinho que o queria mais do que ao próprio filho, um maroto este, forte e sadio como um bezerro. "Um coisinha ruim! afirmava sorrindo.- Não há mal que lhe entre! Nunca vi! - nem chora, o brutinho, Deus me perdoe!"
Magdá quis saber onde é que ela estivera até então empregada; qual a casa donde vinha.
- Em parte alguma, não senhora. Morava com a tia Zefa ali mesmo defronte, naquela casinha de duas janelas com entrada pela estalagem.
- Que gente vem a ser essa?
- A tia Zefa é filha da velha Custódia; lavadeiras, como não? Vem já de trás estas amizades! Nós, por bem dizer, fomos criados pela tia Zefa; foi de lá que eu saí para casar, e minha mana, a Rosinha, vosmecê não conhece, essa ainda mora com ela.
- Ah! tem uma irmã...
- Então! Muito mais nova do que eu. Solteira, mas já tem o seu noivo. Não é por ser minha irmã, porém é uma rapariga que se pode ver! O Luiz...
- Bem, bem! Você então traz um filho em sua companhia!
- Ora coitado! Não há de incomodar... E, se se fizer tolo, carrego-o logo lá p’ra defronte, que a velha é perdida por ele. Se o é! Dá-lhe um tudo! Não viu vosmecê aquele chapeuzinho de pluma com que ele veio ontem? Pois quem foi que o deu? Foi ela!
E riu-se toda.
- Bem, bem, trate de ir buscar o que é seu e tome conta desse quarto aí ao pé, porque, não sei se sabe, você tem de fazer-me companhia à noite. Ando muito doente e às vezes é preciso que me dêem o remédio, compreende?
- Como não, minh’alma? Pode vosmecê ficar descansada por esse lado, que esta que aqui está não lhe dará razões de queixa!
E já parecia radiante com aquela expectativa de ter uma enferma à sua guarda. Uma enferma nas condições da filha do Conselheiro era o seu ideal. E, por cima de tudo, "bom ordenado, comida com fartura, seu copo de vinho ao jantar e daí até, quem sabe? talvez seu vestidinho de vez em quando..."
- Não há dúvida, foi um bom achado!
Um achado! Ela é que foi um bom achado para Magdá. Esta nunca houvera tido criada tão alegre, tão amorosa e tão diligente no serviço..
Além do que: muito sã, muito limpa e muito séria. Perto daquela figura socada, de carne esperta e luzente, a pobre senhora ainda parecia mais magra e mais pálida; gostava, porém, de senti-la ao seu lado, aquecer-se naquele calor de saúde, parasitar um pouco daquele húmus ressumbrante de seiva, sorver aquela forte exalação sanguínea de fêmea refeita e bem adubada.
Nunca entravam em confidências e palestras, que a orgulhosa filha do Conselheiro não dava para essas coisas; mas a mesquinha enferma gostava de deitar-se sobre um tapete no chão, defronte da janela do quarto, a aí ficar, cismando nos seus tédios, com a cabeça pousada no morno e carnudo regaço da criada. Às vezes adormecia assim e então abraçava-se com ela e enterrava o rosto entre as almofadas dos seus peitos, respirando com um regalo inconsciente de criança que já não mama, mas ainda gosta de sentir ao pegar no sono a calentura do colo materno.
Em breve, a Justina era tão indispensável para Magdá, quanto uma ama a um orfãozinho recém-nascido. A infeliz moça passava assim muito melhor; conseguia ficar com algumas coisas no estômago e tinha certa regularidade no sono. Um dia, em que a rapariga lhe pediu licença para ir a Belém ver o filhinho que estava à morte, ela quase teve um ataque, tal foi a sua contrariedade.
- É por pouco tempo... esclareceu aquela - Eu volto logo. Três ou quatro, quando muito; de mais deixo uma outra no meu lugar...
Foi, sempre foi, mas à senhora tanto custou a sua ausência que jurou nunca mais consentir que de novo se separassem. Ficou nervosa e impertinente que causava pena. Veio-lhe outra vez a mania das rezas, voltaram-lhe os monólogos à meia voz e os sobressaltos sem causa aparente.
- Maldito pequeno! lembrar-se de cair doente! e logo agora!
A Justina demorou-se mais do que contava. Uma semana depois da sua partida Magdá, que não havia comparecido ao almoço, fez voltar o lanche das duas da tarde, que o pai lhe mandara levar ao quarto.
- Não me aborreça! Gritou ela à substituta da Justina; uma sujeita alta, ossuda, de nariz comprido e mal encarada. Cheirava a morrinha de cachorro, Magdá não a podia ver.
- Saia daqui! Não ouviu?
A mulher observou com a sua voz grossa e compassada:
- O senhor disse para a senhora não deixar de tomar ao menos o caldo, que foi temperado por ele.
- Papai que me deixe em paz! Ponha-se lá fora! Ponha-se lá fora!
A criada saiu, tesa que nem um granadeiro, a resmungar com a bandeja nas mãos; e Magdá fechou a porta sobre ela, com estrondoso ímpeto, atirando-se depois no divã e sacudindo a cabeça como se estivesse sufocada.
- Que gente, meu Deus! Que gente!
E levou uma boa hora a fitar um só ponto, com os olhos apertados e as sobrancelhas franzidas e mais retorcidas que um recamo japonês. Ergueu-se afinal, inteiriçada num espreguiçamento suspirado e longo, deu em seguida alguns passos indolentes pela alcova, tomou um resto de leite frio que havia numa xícara sobre a mesa, e encaminhou-se sonambulamente para a janela. Aí encostou o rosto entre os dois varões da grade e segurou-se com as mãos nos outros que ficavam mais próximos.
- Ah!... respirou, igual ao cego que obtém, depois de grandes esforços, chegar ao ponto que deseja. E olhou à toa para os fundos do céu que se estendiam lá por detrás do horizonte. E seu olhar errou pelo espaço, perdido como andorinha doida a que roubassem o ninho, percorrendo inquieta e tonta, de um só vôo, léguas e léguas de azul, até ir afinal cair prostrada, de asas bambas, no cimo da pedreira que lhe enfrontava com a janela.
Prendeu-lhe toda a atenção o que se passava ali; os trabalhadores suspendiam por instante o serviço, alvoroçados com a chegada de uma raparigona que lhes levava o jantar. Que alegria! A cachopa era sem dúvida mulher de um deles, o mais alto e mais barbado, porque ela, mal soltou no chão o cesto de comida, lhe arrumou uma carícia de gado grosso um murro nos rins, e retraiu-se logo, a rir, toda arrepiada, esperando que o macho correspondesse. Este cascalhou uma risada de gozo alvar e ferrou-lhe na anca a sua mão bruta de cavoqueiro, tão escrostada e escamosa, que se não podia abrir de todo. Depois; acercaram-se de um pedaço de pedra, em que a mulher foi depondo o que trouxera na cesta; e de cócoras, ao lado uns dos outros, puseram-se todos a comer sofregamente, no meio de muito rir e palavrear de boca cheia.
Magdá, sem conseguir escutar o que eles tanto conversavam, não lhes tirava os olhos de cima, profundamente entretida em ver aquilo. E, coisa estranha, em tal momento daria de bom grado os melhores diamantes que possuía para ter ali um pouco do que eles comiam lá no alto da pedreira com tamanha vontade. Ela, que já não podia sofrer os imaginosos acepipes da mesa de seu pai, sentia vir-lhe água à boca pela comida dos trabalhadores, e até parece incrível, tinhas desejos de beber da mesma garrafa em que eles bebiam pelo gargalo, fazendo questão para que nenhum lograsse ao outro.
No dia seguinte, justamente àquelas horas, apresentou-se ao pai, já vestida e pronta para sair.
- Bravo! Exclamou o Conselheiro, surpreendido pela novidade - Bravo! muito bem!
E marcou apressado a página do livro que estava lendo e, como se temesse que a filha mudasse de resolução, correu logo a buscar o chapéu e a bengala. "Ora até que enfim aquela preguiçosa se resolvia a passear!"
Quando se achavam na rua, Magdá foi tomando a direção da pedreira; o pai acompanhou-a sem proferir palavra. Só pararam lá perto.
O morro, com as suas entranhas já muito à mostra, arrojava-se para o céu, como um gigante de pedra violentado pela dor; via-se-lhe o âmago cinzento reverberar à luz do sol, que parecia estar doendo. E enormes avalanches de granito, ruídas e arremessadas pela explosão da pólvora, acavalavam-se em ciam à base da rocha, lembrando estranha cachoeira que houvera-se petrificado de súbito. Cá em baixo, daqui e dali, ouviam-se retinir ainda o picão e o macete, e lá no alto, no escalavrado cume do penhasco, quatro homens, agarrados com todos os dedos a um imenso furão de ferro, abriam penosamente uma nova mina no granito, gemendo em tom monótono e arrastando uma toada lúgubre.
De cada vez que eles suspendiam a formidável barra de ferro para deixarem-na cair novamente dentro do furo, recomeçava o choro lamentoso que, de tão triste, parecia uma súplica religiosa.
- Vamos lá?... propôs Magdá ao pai, depois de admirar de perto aquele monstro que ela contemplava todos os dias da janela gradeada do seu quarto.
- Onde, minha filha?... perguntou o Conselheiro, sem ânimo de acreditar no que ouvia.
- Lá em cima, onde aqueles homens estão brocando a pedra. Quero ver aquilo.
- Estás sonhando, ou me supões tão louco que consinta em tal temeridade? Esta pedreira é muito alta!
- Não faz mal...
- Sentirás vertigens antes de chegar ao fim!
- Mas eu quero ir!
- Deixa-te disso.
- Ora que me hão de contrariar em tudo!
- É que é uma imprudência sem nome o que desejas fazer, minha filha!
Já amuada, soltou-se do braço do pai e correu para os lados por onde se subia à montanha.
- Espera aí! gritou o velho tentando alcançá-la! espera aí, caprichosa! Eu te acompanho!
A caprichosa havia galgado o primeiro lance de pedra.
A subida foi penosa.
Ah! o caminho era muito estreito, irregular e coberto de calhaus. O pé às vezes não encontrava resistência, porque o cascalho rodava debaixo dele.
Mas subiam. Magdá, sem querer dar parte de fraca, segurava-se arquejante ao braço do pai; este mesmo, porém, sabe Deus com que heroísmo conseguia não perder o equilíbrio.
- Vamos adiante! Vamos adiante! Dizia ela, quase sem fôlego.
- Descansemos um pouco, minha filha.
Não, ela não descansaria, enquanto não alcançasse o morro. Felizmente o caminho em cima era quase plano e com pequeno esforço chegava-se daí ao lugar onde trabalhavam os quatro homens. Mais um arranco, e lá estariam.
Afinal conseguiram chegar. Mas, ah! quando a pobre Magdá, toda trêmula e exausta de forças, já no tope da pedreira, defrontou com o pavoroso abismo debaixo de seus pés, soltou um grito rápido, fechou os olhos, e teria caído para trás, se o Conselheiro não lhe acode tão a tempo.
- Magdá, minha filha! Então! então!
Ela não respondeu.
- Está aí! está aí o que eu receava! Lembrar-se do subir a estas alturas!... E agora a volta...?
- Pode voscência ficar tranqüilo por esse lado, arriscou um dos cavoqueiros, que se havia aproximado, a coçar a cabeça. - Se voscência quiser, eu cá estou para por esta senhora lá em baixo, sem que lhe aconteça a ela a menor lástima.
- Ainda bem! respondeu S. Ex. com um suspiro de desabafo.
O trabalhador que se ofereceu para conduzir Magdá era um mocó de vinte e tantos anos, vigoroso e belo de força. Estava nu da cintura para cima e a riqueza dos seus músculos, bronzeados pelo sol, patenteava-se livremente com uma independência de estátua. Os cabelos, empastados de suor e pó de pedra, caíram-lhe sobre a testa e sobre o pescoço, dando-lhe uma satírica feição de sensualidade ingênua.
- Vamos! Vamos! Apressou o Conselheiro, entregando-lhe a filha.
O rapaz passou um dos braços na cintura de Magdá e com o outro a suspendeu de mansinho pelas curvas dos joelhos, chamando-a toda contra o seu largo peito nu. Ela soltou um longo suspiro e, na inconsciência da síncope, deixou pender molemente a cabeça sobre o ombro do cavoqueiro. E, seguidos de perto pelo velho, lá se foram os dois, abraçados, descendo, pé ante pé, a íngreme irregularidade do caminho.
Era preciso toda atenção e muito cuidado para não rolarem juntos; o moço fazia prodígios de agilidade e de força para se equilibrar com Magdá nos braços. De vez em quando, nos solavancos mais fortes, o pálido e frio rosto da filha do Conselheiro roçava na cara esfogueada do trabalhador e tingia-se logo em cor de rosa, como se lhe houvera roubado das faces uma gota daquele sangue vermelho e quente. Ela afinal teve um dobrado respirar de quem acorda, e entreabriu com volúpia os olhos. Não perguntou onde estava, nem indagou quem a conduzia; apenas esticou nervosamente os músculos num espreguiçamento de gozo e estreitou-se em seguida ao peito do rapaz, unindo-se bem contra ele, cingindo-lhe os braços em volta do pescoço com a avidez de quem se apega nos travesseiros aquecidos para continuar um sono gostoso e reparador. E caiu depois num fundo entorpecimento, bambeando as pálpebras; os olhos em branco, as narinas e os seios ofegantes; os lábios secos e despregados, mostrando a brancura dos dentes. Achava-se muito bem no tépido aconchego daquele corpo de homem; toda ela se penetrava do calor vivificante que vinha dele; toda ela aspirava, até pelos poros, a vida forte daquela vigorosa e boa carnadura, criada ao ar livre e quotidianamente enriquecida pelo trabalho braçal e pelo pródigo sol americano. Aquele calor de carne sã era uma esmola atirada à fome do seu miserável sangue.
E Magdá, sentindo no rosto o resfolegar ardente e acelerado do cavoqueiro, e nas carnes macias da garganta o roçagar das barbas dele, ásperas e mal tratadas, gemia e suspirava baixinho como se estivesse a acarinhá-la depois de longa e assanhada pugna de amor.
Quando o moço, já em baixo, a depôs num banco de pedra que ali havia, a enferma abriu de todo os olhos, deixou escapar um grito e cobriu logo o rosto com as mãos. Agora não podia encarar com aquele homem de corpo nu que ali estava de fronte dela, a tirar com os punhos o suor que lhe escorria em bagas pela testa.
Chorou de pejo.
O seu pudor e o seu orgulho revoltaram-se, sem que ela soubesse determinar a razão porque. Uma cólera repentina, um sôfrego desejo de vingança, enchiam-lhe a garganta com um novelo de soluços. O pranto parecia sufocá-la quando rebentou.
- Eu maguei-a, ó patroazinha?... perguntou o trabalhador, com humildade, quase sem poder vencer ainda o cansaço. E o imprudente tocou com a mão no ombro de Magdá, procurando, coitado, dar-lhe a perceber o quanto estava consumido por vê-la chorar daquele modo. Ela estremeceu toda e fugiu com o corpo, nem que se houvessem chegado um ferro em brasa; e abraçou-se ao pai, escondendo no peito deste os soluços que agora borbotavam sem intermitência.
O pobre cavoqueiro, ainda com o peito para cima e para baixo, quedava-se a olhar para os dois com uma cara palerma de desgosto. E assim que ele fazia o menor movimento de corpo, a senhora retraía-se assustada e enterrava mais a cabeça entre os braços do Conselheiro. Foi preciso que este o afastasse dali, dizendo-lhe que lhe aparecesse logo mais em casa para receber uma gorjeta.
Mal se pilhou no quarto, Magdá foi estraçalhando as roupas, como se as trouxera incendiadas; mas sentia também nos seus cabelos, no seu rosto, em toda ela, o mesmo cheiro de animal suado, o mesmo enjoativo bodum de carne crua. Parecia-lhe mais - que a sua própria transpiração já tresandava àquele mesmo fartum do mocó da pedreira.
- Diabo! diabo! diabo!
E os movimentos que fazia par sacar a camisa eram tão violentos, que ela parecia querer arrancar até a própria pele do corpo.
Um mal querer desnorteado, contra tudo e contra todos, apoderou-se do seu espírito. Estava furiosa e mais ainda por não saber contra quem e contra o que.
Não podia queixar-se a ninguém, nem de ninguém, e sentia-se no entanto ofendida, ultrajada, no seu orgulho e no seu pudor. A vontade que tinha era de mandar matar no mesmo instante aquele maldito homem - para nunca mais o ver, para nunca mais o sentir.
Só depois de muito bem lavada e coberta de perfumes, recolheu-se à cama, ainda estrangulada de raiva. Também, foi só adormecer e começou logo a sonhar com o amaldiçoado cavoqueiro.
IX
Sonhou com ele a noite inteira; mas que sonhos! E o melhor é que então o pobre diabo lhe já aparecia não por um prisma repugnante; ao contrário imaginando-se ao lado daquele corpo robusto, Magdá sentia todo o seu organismo rejubilar de satisfação; ainda melhor do que quando se aninhava no colo de Justina. Perto dele gozava, em sonho, um bem-estar de calmo conforto, como o dos tísicos junto aos bois, na morna atmosfera dos currais.
Tanto o amaldiçoara acordada, quanto o estremecera durante o sonho; este contudo nem sempre foi agradável e em certas fases até pelas horripilações do pesadelo.
Começou vendo-se no alto da pedreira, a olhar para o espaço, justamente como acontecera na realidade; mas a pedreira afigurava-se-lhe agora três ou quatro vezes maior. De repente, falta-lhe o terreno debaixo dos pés, e ela cai, não para trás e sim bem de frente - no ar. Nisto, uma garra fortíssima empolga-lhe as roupas das costas, sustentando-lhe a vertigem da queda, sem todavia impedir que ela continuasse a resvalar; mas já não cai, desliza suavemente, como se estivesse voando. Um braço musculoso cinge-lhe as curvas dos joelhos, outro toma-a pela cintura e o seu colo é recebido em cheio por um largo peito nu, onde há cabelos que lhe põem cócegas na pele: Magdá ri com as cócegas, e sua cabeça repousa num táureo pescoço de Hércules, cujo suor lhe umedece as faces. E, assim abraçados, deslizam voluptuosamente no espaço, descendo numa embriagadora delícia de vôo contínuo.
O vôo dura um tempo infinito. E ela, como receiando ficar desamparada, trata de agarrar-se ao outro o melhor que pode. Estreitam-se mais.
E mais.
Há já um princípio de frenesi no modo por que se estreitam. A moça procura com ânsia unir-se bem ao corpo do cavoqueiro; quer que seus peitos lhe fiquem bem colados ao peito; quer que os seus braços sintam em toda a extensão a carne das espáduas do homem; que a sua barriga se ajuste à dele e que as suas coxas lhe apalpem os rins.
E continuam a descair, a descair, sem para nunca. Magdá sente nas faces uma impressão desagradável de frio; sela imediatamente o rosto contra o outro rosto, e deixa-se aquecer, ao calor de beijos. Então os seus olhos desmaiam de gosto; as suas narinas arfam com mais força, porque ela não pode respirar pela boca, que está toda tomada pela outra boca. Um arrepio percorre-lhe o corpo, agitando-o até na mais pequenina fibra; e o seu sangue enlouquece; e os suspiros quebram-se-lhe na garganta, desfazendo-se em gemidos.
E estreitam-se mais. E unem-se. E confundem no ar os membros enleados e trêmulos. O cavoqueiro soluça, arqueja; ele já não tem uma só parte de si em que não o sinta. E, de improviso, um violento sopro de vida a invade toda, esquentando-a por dentro, penetrando-lhe as vísceras, soprando-lhe nas veias um calor estranho, alheio, que a ressuscita e faz saltarem-lhe dos olhos lágrimas de gozo.
Terminaram caindo, ainda abraçados, aos pés do Conselheiro, que os esperava lá em baixo, vestido com uma túnica vermelha e agitando na mão, colericamente, a sua grossa bengala de cana da Índia. Magdá escondeu o rosto. Mas desta vez não era o moço da pedreira quem lhe fazia vexame, era o próprio pai; não foi, pois, o colo deste que ela agora procurou para ocultar o orvalho do seu pudor, foi o colo do outro.
Houve um duro silêncio, durante o qual S. Ex., cujas barbas haviam crescido muito, e cuja calva reluzia que nem a de um patriarca da Bíblia, olhava, ora para a filha, ora para o rapaz, como se estivesse a compará-los.
- Com efeito!...
E sacudia a cabeça, e esticava os beiços, sem desviar a vista. No capricho do sonho, o pobre Conselheiro tinha perdido as suas maneiras distintas e afáveis, e até no modo de se exprimir era grosseiro e burguês.
- Com efeito!... repisou ele, estalando um riso de sarcasmo. - É até onde pode chegar o aviltamento!... Dar-se a um trabalhador da mais baixa espécie!... É inacreditável!
- A culpa não foi minha, papai...
- Cale-se! Não sei onde estou, que lhe não quebre esta bengala nas costas!
- Creia, patrão, que... ia arriscar o rapaz.
- Ó tratante! berrou o velho. - Ainda te atreves a abrir o bico? Ora espera que te ensino!
E cresceu para o moço, que o esperou sem tugir nem mugir, com o aspecto resignado de uma besta que tem dono. Magdá, porém, já se havia metido entre os dois e , de joelhos, chorando, abraçava-se às pernas do patriarca.
- Piedade, meu pai! piedade!
- Qual piedade, nem qual carapuças! Não fosse tão assanhada!
- Tenha compaixão de dois infelizes, cuja falta foi só uma e única...
- E acha pouco, sua desavergonhada? Acha talvez que esta não basta para me fazer subir ao arame! Tem graça!
E, enquanto a filha soluçava, sem erguer os olhos: - Ingrata! Eu a matar-me para a fazer gente; para lhe ar uma certa educação - e ela a meter-me os pés! Criar uma filha com tanto carinho, para vê-la depois entregue a um homem de pedreira!...
- Perdoe, meu pai!
- Não perdôo nada!
- Juro-te que não tenho culpa do que sucedeu...
- Perversa! Eu a sacrificar-me a instruí-la e arranjar-lhe um futuro, e ela a sujar-se de lama e a cobrir-me de vergonhas!
- Não fui eu, papai, foi a minha natureza; foi a minha carne; foram os meus sentidos!...
- Qual carne, nem qual sentidos! A patifaria tem sempre desculpas!
Fez uma pausa e prosseguiu depois, comovendo-se, mau grado seu: - Dei-lhe tudo o que se podia desejar! Foi já o professor de piano; foi já o professor de canto; foi já o mestre de desenho! E venha o explicador de francês! E venha outro para história e geografia pátria! E outro para isto! E outro para aquilo! E compre-se mais este dicionário! E assine-se mais este jornal! E corra-se aos Castelões a buscar o camarote do Lírico! E olhe o carro que não esqueça! E veja essa luva de vinte botões que saia! E venha a bela da jóia! E venha o belo vestido de seda! E olhe o chapéu à Sarah Bernhardt! E olhe as regatas! E olhe as corridas! E dêem-se festas todos os meses! E façam-se viagens à Europa! - E tudo isto afinal p’ra que? - Sim! tudo isto p’ra que?! Só quero que me digam de que serviu tanto sacrifício!
- Perdoe-me!
- Não! não perdôo, nem devo perdoar! Se queria casar, há muito tempo que o podia ter feito; o que não lhe faltou foram pretendentes! A senhora torceu o nariz a todos! E, logo que o Dr. Lobão me fez ver a necessidade urgente de uni-la a alguém, trouxe-lhe o meu amigo José Furtado!
- Um velho!
- Não será uma criança, mas também não é nenhum bisavô! Outra qualquer a teria agarrado com unhas e dentes! Um homem de conta, peso e medida!
- Pudera! Principiou a vida a limpar pesos e balanças!
- E que tem isso? Um homem honrado, trabalhador e econômico. Entrou na vida com um barril nas costas, mas hoje é uma das mais sólidas fortunas do Rio de Janeiro!
- Não é de dinheiro que eu preciso!
- Pois então casasse com o Dr. Tolentino...
- Um defunto!
- Defunto! Não terá uma saúde perfeita, coitado, mas é uma das mais bem constituídas cabeças do Brasil. Muito talentoso, muito ilustrado! Membro da Sociedade de Geografia de Lisboa, e consta até que vai receber diploma de sócio não sei que importante congregação científica da Bélgica!
- Também não é de ciência que eu preciso!
- Nesse caso, porque não aceitou o Conde do Valado?
- Um libertino!
- Não é tanto assim.
- Um vicioso comum que, se deixa de falar um instante em cavalos, é para discutir cocotes.
- Que exagero! Não direi que os seus costumes sejam tão puros como os do comendador José Furtado ou como os do Dr. Tolentino, mas é um mocó ilustre, descendente em linha reta de uma das mais importantes casas de Portugal. Seus avós figuraram todos na história e o seu nome tornaria fidalga a mulher que o possuísse!
- Eu não preciso de nobreza!
- Não precisas de nobreza; não precisas de ciências; não precisas de dinheiro! Então de que diabo precisas tu?
- De um homem...
- Um homem! Quanta desfaçatez! De que precisavas, grandíssima desavergonhada, era de uma boa carga de pau, para te apagar o fogo do rabo!
E o velho, possuindo-se de novo acesso de cólera, estendeu o braço, enxotando a filha e mais o moço da pedreira.
- Já! Rua seus bandalhos! E que eu nunca mais lhes ponha a vista em cima! Estão amaldiçoados!
- Meu pai! meu pai!
- Aqui já não há pai, nem mãe! Não sou pai de mulheres à-toa! Ponham-se a andar, e que sejam muito felizes! Boa viagem!
- Deixe-me ao menos ir lá dentro buscar as minhas jóias, um pouco de roupa e os meus livros...
- Jóias, roupas, livros! para que? A senhora já não tem tudo quanto deseja, para que mais?... As boas roupas fizeram-se para os nobres, as jóias para os ricos e os livros para os sábios! A senhora nada tem que ver com esta gente e com estas coisas! Só queria "um homem", pois já o tem! É andar! Ele que lhe compre jóias; que se encarregue de vesti-la, de sustentá-la e de consolá-la. Tem obrigação disso; e, se não dispõe de meios, invente-os - trabalhe! Se não puder tratá-la a bicos de rouxinol, comam feijão com carne seca, que a senhora tem obrigação de contentar-se com o que ele lhe der! É o "seu homem" e, por conseguinte, é quem de hoje em diante a governa com direito de vida e de morte! Acompanhe-o submissa para onde ele for, seja para o inferno ou seja para o paraíso! A partir desse momento- o seu destino é o dele! E deixem-me!
- Meu pai!
- Foi tempo! Nada mais há de comum entre nós! Para continuar a ser seu pai, seria preciso que eu me fizesse pai também daquele pedaço d’asno; e eu não quero ter filhos de tal espécie!
E S. Ex,. notando que Magdá não se resolvia a largar-lhe as pernas e continuava a chorar, ordenou, voltando-se para o cavoqueiro:- Olá, seu coisa! Tome conta dessa mulher! É sua! Pode levá-la para onde bem entender!
- Ah! exclamou a filha, caindo por terra, de borco, com os braços estendidos no chão, enquanto o velho, arrepanhando a sua túnica da cor simpática às histéricas, se afastava para casa, muito fresquinho e senhor de si, assoviando, de cabeça impertigada, nem como se a coisa tivera sido com ele.
Magdá permanecia de bruços, a soluçar. Então o mocó da pedreira inclinou-se sobre ela e deu-lhe com toda delicadeza u ósculo nos cabelos. Depois tomou-a ao colo e pôs-se a caminhar, vagarosamente, muito vagarosamente, na direção da fatal montanha onde ele trabalhava. E toda a natureza, que parecia haver entristecido e tomado luto com a maldição do velho, começou a reanimar-se, a rir de novo, tingindo-se de luz purpúrea e entoando em voz baixa epitalâmeos sensuais. E os dois, abraçados, formando um só grupo, lentamente penetraram numa deliciosa alameda de laranjeiras, cujos galhos se vergavam na sua passagem para lhes beijar a fronte, derramando-lhes sobre a cabeça uma odorífera chuva de flores desfolhadas. E do céu baixava doce harmonia religiosa, que parecia balbuciada por uma nuvem de anjos.
Nisto - despertou.
Circunscreveu o olhar em torno de si, reconhecendo a custo a própria alcova. O seu pequeno relógio Luiz XV, de bronze dourado, marcava, no mostrador de porcelana de Sèvres esmaltada, meia hora depois do meio-dia. Uma cortina cinzenta, de seda de Leão, quebrava na janela a luz que batia de fora, e dava ao quarto o tom opalino de um crepúsculo de inverno. Magdá suspirou, espreguiçando-se. O drama fantástico de toda aquela noite dissolveu-se: teatro e personagens desapareceram. Mal ouvia-se, ainda, bem distintamente, o tal coro religioso que baixara dos céus para solenizar a sua passagem na encantada alameda; a moça soergueu-se no leito, concheando a mão no ouvido que ficava do lado da janela e, meio maravilhada, pôs-se a escutar com atenção aquela tristonha cantilena que persistia ali, na vida real, como um prolongamento do sonho.
Caiu logo em si: era a toada melancólica dos trabalhadores que minavam a pedreira. E ali deixou-se tombar de novo sobre os travesseiros e aí permaneceu, com os olhos muito quietos, enquanto duas lágrimas lhe serpeavam ao comprido das faces.
Oh! Sentia-se profundamente envergonhada do que sonhara a noite inteira.
- Minha’alma, rosnou a nova criada, afastando o reposteiro da porta com a cabeça - o senhor mandou perguntar como vosmecê passou de ontem p’ra hoje.- Diga-lhe que pode vir daqui a pouco, e você volte já para me vestir.
Quando se achou preparada, foi esperar o pai na sal contígua à sua alcova.
- Então, minha filha, como passaste a noite.
- Bem, respondeu ela, beijando-lhe a mão.
- Dormiste?
- Bastante.
- Pareces-me, no entanto, fatigada... Como te sentes hoje de humor! - No mesmo.
- Aquela loucura de ontem...
Magdá estremeceu e abaixou as pálpebras. Dir-se-ia que o pai lhe lançava no rosto uma falta humilhante.
- Ficaste tão apreensiva com a tal subida da pedreira que...
- É melhor não falarmos mais nisso...
E tomou as mãos do Conselheiro, fazendo-o chegar-se para bem junto dela. E, depois de contemplá-lo em silêncio com um meio sorriso, abraçou-o, demoradamente, como se procurasse ficar convencida por uma vez de que aquelas tolices do sonho não tinham o menor fundamento, e que seu pai, o seu extremoso pai, a quem tanto queria do fundo do coração, ainda ali estava a seu lado, para amá-la como sempre e protegê-la contra o maldito intruso que habitava dentro dela e que a consumia para alimentar-se.
- O senhor é muito meu amigo, não é verdade, papai?...
- Ora, que pergunta, minha filha!
- Diga!...
- Pois ainda não tens certeza disso?
- E o senhor seria capaz de abandonar-me, capaz de desprezar-me, fosse lá pelo que fosse?
- Mas que lembrança é esta, Magdá? Desprezar-te, eu? Enlouqueceste!
- Ama-me muito, não é verdade? Por coisa alguma desta vida seria capaz de enxotar-me da sua companhia, não é assim? Responda.
- Deixa de criancices, minha flor, e olha! - toma o teu chocolate que ali está esfriando há meia hora. Mas que é isto?... Choras?... Então! então! Que tu sentes, Magdá? Fala, meu amor.
Ela começou a soluçar.
- Nada! nada! nervoso! Acordei hoje muito nervosa!
- Mas não te aflijas deste modo. Vamos - toma o teu chocolate e desce comigo ao jardim. Anda! Vê se consegues não pensar em coisas que te façam mal... Não sejas crianças...
O Conselheiro, à força de carinhos, conseguiu que ela tomasse, além de meia chavena de chocolate, uma colherada do xarope de Esston, que o Dr. Lobão havia receitado.
A arrastou-a para a chácara.
Mas, pobre senhora! mal acabava de descer a escada do jardim, deu logo, cara a cara com o moço da pedreira, que ia buscar a espórtula prometida pelo Conselheiro.- Ah! exclamou toda trêmula, corando e abaixando as pálpebras. E tratou de abraçar-se ao pai e esconder a cabeça no colo deste, como na véspera, depois da síncope.
O bom velho não pode compreender o que era aquilo.
- Tens alguma coisa? perguntou. - Sentes alguma novidade? Fala.
- Voltemos para cima! Voltemos para cima! Dizia a moça, aflita, sem mostrar o rosto.
O trabalhador, muito rendido, continuava defronte deles, com os olhos em terra, a torcer vexadíssimo entre as mãos e o seu seboso casquete de pele de lebre.
- Ó patrão, se quer, eu apareço noutra ocasião...
- Sim, sim, é melhor, volveu o Conselheiro, muito ocupado com Magdá.
- Não! acudiu esta, sempre com o rosto escondido. - Despache-o de uma vez! Para que fazer este homem voltar ainda aqui?
Ao perceber uma pequena parte destas palavras, o cavoqueiro fez uma careta que tanto podia ser de surpresa como de lástima, e resmungou meio sentido:
- Voscência queira desculpar, mas eu, se aqui vim, foi porque me disseram p’ra vir... Tinha que com isso não ofendia pessoa alguma... mas, a vista de que ando mal, peço desculpa e o mais que posso fazer - é não tornar cá!
- Não! opôs S. Ex. - Espere um instante. E, passando o braço pela cintura da filha, segredou ao ouvido desta: - Vamos, vamos lá para cima. Creio que hoje não estás boa...
X
O cavoqueiro ficou a esperar no jardim, encostado p’r’ali numa árvore, e a fazer de lá suas considerações.
- Que macacos o lambesse se entendia aquela gente! A tal dos "me deixes" ficara a modos que assanhada quando ele lhe pôs as vistas em riba! Pois estava que não havia razão de zangar, antes pelo contrário - havia p’r’agradecer: Sim! Prestara-lhe um serviço; que não era lá nenhum grande serviço; mas enfim, que diabo, na ocasião, ela não tinha quem a pusesse cá em baixo!
Tecia este raciocínio quando sentiu no ombro uma palmada de mão polpuda.
- Estás a cismar, ó Luiz!
- Olá, S’óra Justina! Bons olhos a vejam! Como chegou vosmecê?
Ela chegara bem, graças a Deus.
- E o pequeno? Como ficou?
- Ora! Pronto p’ra outra!
- Vosmecê está chegando agora!
- Não. Já estive lá na estalagem com a tua gente. Estão muito apertadas de serviço com a roupa de uma família que embarca depois d’amanhã. E tu! Não foste hoje ao trabalho?
- Já se vê que sim, Pus o casaco para vir aqui, mas volto.
- Isto é novidade...
- Não é nada, é que ontem a senhora aí de cima...
- Minh’ama...
- Deve ser - foi passear lá na pedreira e...
- Ah! Ela subiu à pedreira...?
- Subiu, mas caiu, logo com um faniquito: eu carreguei-a cá p’ra baixo... Vai então o pai - disse-me que lhe aparecesse para me dar ma gorjeta, e eu vim. Ora aí tem vosmecê!
- ‘Sta direito. Já falaste?
- Já, mas não entendo esta gente. Se a S’ora Justina chega um bocadinho antes, havia de presenciar o mais bonito!
- Qu’houve?
- Pois a moça não fez aqui umas partes?...
- Que foi, Luiz?
- Pois não! Vinha descendo muito bem a escada e assim que me bispou - zás!
- Zás - como?
- Abriu a chorar que nem uma criança, e agora o verás.
- Coitada! Eu sei - é moléstia!
E a Justina comoveu-se. Sempre que lhe tocavam na ama, apertava mais as sobrancelhas e ficava com uma cara de profunda lástima.
- Arrenego de tal moléstia! replicou o trabalhador. - Uma coisa dá para espantos, nem que a gente fosse alma do outro mundo! Olhe que se o pai não me dissesse para esperar aqui, juro-lhe que já cá não estava! Diabo de uma esganiçada, que parece que está parte não parte pelo meio! Ontem, quando a trouxe, tive medo de chegar cá embaixo com um pedaço em cada mão!
- Não sejas má língua, Luiz! Não seria a primeira vez que perdesses por falar de mais! Se não fosse semelhante balda, estarias a esta hora casado já com a Rosinha...
- Ora, sua mana mesmo foi que teve a culpa! Ela gosta mais de falar do que eu!
- Como teve a culpa, se tu és que andavas todo o santo dia a debicar o Comendador? Pois não dizias a todo mundo que ele era um sapo-boi e não o arremedavas lá na estalagem para quem queria ver?... A caçoada chegou aos ouvidos do homem, e ele de o dito pelo não dito - não quis mais ajudar o casamento da afilhada... Fez muito bem! Tu, no caso dele, farias o mesmo! Como não?
- Sim, mas se sua irmã não fosse lá contar o que se fazia na estalagem, o homem não bufava e teria caído com os cobres para o enxoval!
- Fez de tola!
- Ah! mas deixe estar que o casório há de ser, mesmo sem a ajuda do sapo velho! O pobre também vive!
A outra era do mesmo parecer: - Como não? que isto de raparigas, a gente deve despachá-las logo, antes que o demo as tente!
E, vendo que um escravo do Conselheiro descia a escada. - Olha! Aí vem o negro com a tua gorjeta.
Com efeito, eram dez mil réis que o pai de Magdá mandava ao cavoqueiro.
- Que fico muito obrigado, ouviu? E quando precisar, lá estou às ordens.
O escravo afastou-se.
- Vê lá agora se te metes hoje nalguma bebedeira!... observou Justina, a bater-lhe no ombro. - E até logo, que ainda não me apresentei à patroa!
Já a certa distância, parou, para gritar:
- Olha! dize à tia Zefa que não me deixe o pequeno socar-se muito de aipim, que foi isto o que derrubou o outro!
E galgou de carreira a escadaria do Conselheiro, num ativo remeximento de quadris em evidência.
- Vou comprara um bilhete inteiro! Deliberou consigo Luiz, guardando a cédula na algibeira.
Luiz era filho da tia Zefa, e morava com esta, mais a avó e mais a Rosinha, irmã de Justina e noiva dele, na tal casita de duas janelas, com entrada pela estalagem que ficava em frente da chácara do Sr. Conselheiro. Viera novo para o Brasil, onde se achava perfeitamente aclimado; não sabia ler nem escrever; tinha, porém, força e saúde, "que é o principal para quem deseja ganhar a vida". O seu casamento estava já para se realizar havia um ano, porque Luiz queria fazer coisa aceiada. "Não! Que para um homem atrasar a vida, junto com a da mulher, antes fique solteiro! A pequena que esperasse , que o que tinha de ser dela às mãos lhe chegaria! Com outra não se casava - isso é que era dos livros! Ah! se a fortuna se lembrasse dele, já tudo estaria feito; mas o diabo da sorte andava arisca; todos os vigésimos da loteria, que ele comprara às ocultas da mãe e da avó, saíram-lhe brancos... Só mesmo podia contar com o triste peculiozinho do trabalho; o verdadeiro, por conseguinte, era ir se preparando aos poucos - hoje com uma coisa, amanhã com outra, conforme desse o cobre e conforme as pechinchas que aparecessem. Seu padrinho de batismo, um velhote apatacado que emprestava dinheiro a juros, esse prometera entrar com uma famosa cama de jacarandá, que tinha em casa e da qual não se servia desde a morte da mulher. Ah! esse não era o Comendador! Muito seguro, muito apertado, não havia dúvida! mas, também, prometendo, podia a gente contar com o bruto - a cana era certa! Ora, pois, com o dinheiro que lá estava na Caixa Econômica, ele teria um fato novo e um arranjo de roupa branca. Vinte e cinco mi réis seriam para um relógio de prata dourada, dos modernos. - Isso era sagrado! Porque ele não admitia que ninguém se casasse sem ter relógio e corrente. Corrente já tinha - cordão de ouro que foi do pai e que vivia fechado na cômoda da tia Zefa ao lado dos ouros da família."
E estava a ver defronte dos seus olhos todo aquele tesouro: grandes rosetas redondas e abertas, do tamanho de moedas de vintém; anelões de chapa em cima; um crucifixo de trazer ao pescoço em dias de festa; uma figa que era uma riqueza, no peso; um alfinete de peito representando um anjo a tocar trombeta; três pulseiras lisas e polidas; outras de coral com fecho de ouro; vários objetos de filigrama de prata fabricados no Porto; um paliteiro e dois castiçais também de prata, sem contar com dois diamantezinhos que a vovó ganhara aos vinte anos, quando se casou, e que fazia questão de levá-los às orelhas para a sepultura. "Era lá mania da velhinha - respeitava-se!"
"Ora... a Rosinha, além de tudo, tinha também os seus cobritos juntos; por conseguinte, Luiz, com mais algum tempo de economias, bem que podia casar com ela". Foi sacudido por este risonho raciocínio que o cavoqueiro, já de volta do serviço, entrou em casa às sete da noite, mais satisfeito que de ordinário, graças à gorjeta do pai de Magdá, e talvez por haver tomado depois do trabalho alguns martelos de vinho com os companheiros.
A pequena sentiu-lhe cheiro de bebida logo que ele entrou.
- An... an...! Você hoje entortou o cotovelo, hein, seu Luiz? Muito bonito!
- Um nada! Foi para beber à saúde da moça dali defronte...
- A filha do Conselheiro... Ah! E deram a molhadura?
- Já se deixa ver que sim, Mas aviem-me esse jantar, que estou a tinir!
E assentou-se à mesa, que tia Zefa cobria nesse instante com uma toalha de linho grosso, enquanto a Rosinha corria a buscar á dentro a tigela de sopa. A avó chegou-se também para vê-lo comer, como fazia todos os dias. Uma velhinha engraçada, a vovó Custódia! - seca, pequenita, a pele enrugada que nem um jenipapo maduro; a cabeça que era um algodão; a boca fechando e abrindo sempre, e toda cheia de pregas, tal qual a boca de um saco fechado. Mas toda ela ainda esperta, agarrando-se à vida com as unhas, que os dentes já á se tinham ido.
Sentia-se ali um cheiro especial de roupa engomada e de roupa lavada. Justificando esse cheiro, viam-se acumulada por toda a parte, sobre as mesas, sobre as cadeiras, pilhas de camisas dobradas, montões de peças de roupa branca, e, dependuradas de uma corda, pelo cós, muitas anáguas, e muitas saias, penteadores bordados e vestidos de linho com guarnições de renda. Um candieiro de querosene iluminava a pobre sala de duas braças de largura e três de comprimento, toda caiada de cima a baixo, e com uma pequena barra de roxo-terra. Havia um armário de pinho sem pintura, onde se guardava a louça, aquela grossa louça de doze vinténs o prato, e aquelas canecas de pó de pedra, onde eles tomavam café antes de levantar o dia. Na parede - uma gaiola de pindoba com um gaturamo. A casa constava ainda d duas alcovas e outra salinha; ao fundo um pequeno quintal que dava para o cortiço. Era propriedade da mãe do Luiz; deixou-lha o marido, um ferreiro, que morreu de desastre.
O rapaz, enquanto jantava, falou a respeito das esquisitices da filha do Conselheiro, causou grande impressão na sua gente. Quiseram pormenores; crivaram-no de perguntas: "Se Magdá tinha cara de doida; se era bonita; se se dava ao respeito". Luiz respondia a tudo, devorando colheradas de feijão amassado com farinha.
- Pois mana Justina diz que ela é muito boa, observou Rosinha. - E o caso é que lhe tem dado muita coisa! Ainda há dias mostrou-me um anel, que...
- Um anel? De ouro?
- Sim, senhora, de ouro! Juro por esta luz! Eu vi! Lindo! Com umas pedrinhas em ciam!
A notícia do anel abriu um silêncio comovido.
A tia Zefa observou afinal:
- Aquela chorou na barriga da mãe! Tem muita sorte o diabo da rapariga! Hão de ver que ainda encontra marido, apesar dos filhos...
- Ora se encontra! respondeu Luiz. - Isso é tão certo como me achar eu aqui! Pois não se vê como está o Manoel das Iscas por ela?... Não fala noutra coisa! "Porque a S’óra Justina p’ra cá! A S’óra Justina p’ra lá!" Até já fede!
- Que me estás tu a dizer, rapaz?
- Ora! Caidinho! E, se ela o souber levar, apanha-o mesmo!
- Uma sorte grande! O Iscas já tem alguma coisa de seu!
- Olá! Só aquele correr de casas, que ele fez agora, dá-lhe com que passar mais duas vidas!...
Depois do Iscas, a filha do Conselheiro tornou a entrar para assunto da conversa, e discutiram-se com assombro os presentes dados por ela à Justina. Por fim o cavoqueiro ergueu-se da mesa, tomou a sua viola e foi esperar pela hora de dormir, assentado à porta da estalagem, repinicando o seu fado favorito. Rosinha acompanhou-lhe logo e instalou-se ao lado dele como costumava fazer; ao passo que as duas velhas, tomando cada qual a sua cadeira, ficaram defronte uma da outra, a falar; entre bocejos e cochilos, no que tinham trabalhado esse dia e no que iam trabalhar no dia seguinte. Daí a pouco já não diziam palavra, e a própria Rosinha dava marradas no noivo, cabeceando de sono. Só a viola do cavoqueiro continuava bem acordada, quebrando o denso recolhimento das nove e meia com o seu "tir-lim-tim-tim" monótono e embebido de saudade.
Luiz cantava:
"O sol prometeu à lua
Uma faixa de mil cores;
Quando o sol promete à lua,
Que dirá quem tem amores!...
"Tir-lim-tim-tim! Tir-lim-tim-tim!
"Tia a amar-me, e eu a amar-te,
Não sei qual será mais firme!
Eu como sol a buscar-te,
Tu como sombra a fugir-me!"
Essa cantilena chegava até a casa do Conselheiro reduzida a uma toada errante e tão lânguida que entristecia. Magdá escutava-o da sua alcova, deitada no colo de Justina, à espera do sono.
E quando, lá pela meia-noite, conseguiu adormecer, continuou logo a sonhar com o moço da pedreira.
XI
O sonho ligava-se ao da véspera. Tornou a ver-se no colo do rapaz, abandonando a casa paterna e dirigindo-se vagarosamente para a montanha; esta, porém, surgia-lhe adora defronte dos olhos, não como pedreira esbrugada, mas em plena efervescência de verdura e toda coberta de flores.
Começaram a subir. Uma floresta virgem abria-se diante deles, para lhes dar passagem, e logo se fechava sobre os seus passos, como cortinas de um leito de folhas. O moço parecia não cansar com o peso que levava, e Magdá por sua vez sentia-se leve, muito vaporosa; e, à proporção que se afastava de casa e ia-se entranhando na mata, fazia-se melhor, mais satisfeita e feliz.
Afinal, deram com uma planície. Haviam chegado ao cimo da montanha; aí o círculo de verdura que os guardava abriu em clareira, destoldando o azul, onde o sol resplandecia, transbordante de ouro por entre espumas de prata. Reinava na luz um meio tom suave e comunicativo; tudo era doce, temperado e calmo; as vozes da natureza chegavam aos seus ouvidos apenas balbuciadas; as folhas e asas cochichavam, como se temessem acordar alguém; perto corria um regato sussurrando.
O moço pousou Magdá sobre a relva e assentou-lhe ao lado dela, tomando-lhe as mãos entre as suas.
- Como te sentes agora, minha flor! Segredou-lhe, aproximando o rosto.
- Muito, muito melhor... respondeu a filha do Conselheiro com um suspiro. - Sinto-me ainda um pouco fraca, mas conto que estes ares me restituam as forças...
- Em breve estarás perfeitamente boa e serás completamente feliz! disse o outro, e soltou-lhe um beijo na boca. Magdá percebeu então que o hálito do moço tinha o perfume de murta, e que as barbas dele eram agora mais macias do que os arminhos da sua saída de baile. E, encantada com a descoberta, notou ainda que as mãos do cavaqueiro já não eram tão duras e mal tratadas, mas bem torneadas e de uma flexibilidade muito enérgica e nervosa; que o cheiro do seu corpo já não tresandava a cavalo suado, mas rescêndia a um odor fecundo de carne sadia e limpa, lembrando o cheiro de leite fresco; que os seus dentes eram alvos e puros como as areias da praia; que o seu peito era mais branco e mais rijo que o granito da pedreira; que os seus cabelos, roçando nela, acordavam desejos, e que seus braços eram cadeias de fogo em que toda ela se abrasava de amor.
- Gostas de me ter a seu lado?... perguntou ele.
- Tu restitues-me a vida... respondeu Magdá, cingindo-o pelos rins e pousando o rosto abatido e frio sobre o colo vigoroso e largo do amigo. - Oh! balbuciou depois, aconchegando-se mais - como eu me sinto bem assim! Com a cabeça aqui! A gozar nos meus peitos o calor do teu corpo! Deixa-me ficar ainda! Deixa-me ficar um instante, meu senhor e meu amado!
E apertava-o nos míseros braços, fechando os olhos e aspirando com força, como se quisesse sorver de um só hausto, a vitalidade que ele de si exalava, mais capitosa que o vapor de um vinho velho fervendo ao fogo.
- Tu és só meu?
- Todo teu e para sempre!
- Nunca amarás outra mulher?
- Não, Magdá, nunca!
- Se me esqueces por outra, eu morreria de ciúmes, antes que as feras me devorassem aqui! Olha! vê como, só com pensar nisto, tremo toda...
Ele puxou-a de vez para o seu colo e afagou-a.
- Não chores, disse. - Descansa, que nunca mais nos separaremos. Eu serei eternamente o teu companheiro, o teu amigo, o eu esposo! Quando te sentires com força, irás a pé, pelo meu braço, passear ao outro lado da montanha, que ainda é mais belo do que este. Depois chegaremos até lá em baixo, no vale, onde encontrarás tudo o que de melhor há na vida: os mais saborosos frutos, as flores mais mimosas, as aves mais lindas, as águas mais puras, o sol mais carinhoso e os seres mais benfazejos da natureza. Lá tudo é nosso amigo; tudo nos ama; nenhuma ente da terra te fará mal, porque aqui tu és rainha e eu sou o rei. Não tenho para te oferecer aposentos como os de teu pai; não tenho carruagens, nem sedas, nem baixelas de prata; mas, em compensação, nenhuma outra te disputará o poder sobre estes teus domínios, nem o amor deste teu escravo! Quando sentires vontade de comer, eu irei buscar os pomos mais suculentos e gostosos; quando tiveres sede, eu trarei nas minhas mãos a água mais cristalina das nossas fontes; quanto te sentires cansada, eu te carregarei nos meus braços. Eu percorrerei o mundo inteiro para te matar um desejo! E, quando dormires, estarei a teu lado, pedindo a Deus que te dê bons sonhos e encha tua alma de consolações.
- Como sou feliz agora, meu amigo...
- Sim, tu serás muito feliz, porque aqui não haverá ódios nunca, nem invejas, nem ambições, nem vícios; aqui só o amor existe! Este é o seu reino; nada aqui vive senão dele e para ele! Amarmo-nos será o nosso único destino e o nosso único dever. Desde que o não fizéssemos, seríamos logo expulsos deste paraíso por indignos e maus, e teríamos de ir chorar a nossa miséria lá na outra existência, onde os homens se detestam e atraiçoam a todo momento. Vês estas árvores, estes pássaros, todo este mundo alegre e feliz que canta em torno dos nossos beijos! pois todo ele vive só para se amar! Vê! repara como todos crescem aos pares; como concebem e como produzem! Olha para cima da tua cabeça; olha para debaixo dos teus pés; olha para os lados e observa! - Está tudo amando? Em cada beijo que damos, um infinito de vidas se forma entre nossos lábios!
- E há quanto tempo vives aqui neste reino encantado do amor?
- Não sei; não me lembra como vim ao mundo, nem conheci o autor dos meus dias; porém, à força de pesquisas, cheguei a crer que sou o mais recente produto de uma geração privilegiada, que chegou mais depressa do que as suas congêneres ao meu estado de aperfeiçoamento. O fundador da minha dinastia era de sílex, nasceu com o mundo, e, no entanto, meu pai era já nada menos que um quadrúmano; de mim não sei ainda o que sairá...
- Mas tu estão não é o moço da pedreira?...
- Tolinha! Aquilo foi um disfarce que tomei para te poder alcançar.
-- Como assim?
- Desejei-te e jurei que havia de possuir-te. Mas como me aproximar de ti?... Lembrei-me da pedreira que fica defronte da tua janela, tomei a forma de um cavoqueiro e comecei a namorar-te, a empregar todos os meios para atrair-te. Tu a princípio te negaste; eu, porém, não desanimei e todos os dias te chamava cantando. Afinal, uma bela tarde, não pudeste mais resistir, e lá foste. Estava ganha a vitória! Fiz logo com que perdesses os sentidos; ofereci-me a teu pai para transportar-te nos meus braços e, assim que te pilhei no colo, penetrei-te com o meu desejo e com o meu amor; enleei-te toda no meu querer, e então, quando já te não possuía, fui buscar-te num sonho, e hoje és minha para sempre!
- Sim, sou tua. toda tua, não há mais dúvida; és o meu dono, pertenço-te; mas uma coisa não compreendo...
- Que é?
- A razão porque, para me seduzires, tomaste a forma de um grosseiro trabalhador de pedreira e não de elegante e gentil cavalheiro, que houvesse penetrado nas salas de meu pai e de mim se apossado licitamente, por meio do casamento...
- Tão tolo sou eu que caísse na asneira de namorar-te sob a forma de um homem de sociedade; porque, se assim o fizesse, lograria apenas impressionar-te o espírito, já tão viciado pela própria sociedade; e não conseguiria por em jogo os teus sentidos, como obtive disfarçado em simples trabalhador, de corpo nu, forte, inteiro, e de homem para toda a mulher! Se eu tomasse a forma de um janota, não estarias a estas horas aqui comigo, porque tu não me seguiste seduzida pela minha inteligência, que te não mostrei; nem pela minha riqueza de caráter, que escondi; vieste pura e simplesmente arrastada pela minha beleza varonil e pela masculinidade do meu corpo! Se eu me tivesse apresentado a ti sob a forma de um elegante rapaz, desconfiarias de mim, como desconfiaste de tantos que te pretenderam; havias de supor-me tão corrompido e tão inutilizado como os outros; não acreditarias na integridade do meu sangue, na sinceridade de minha saúde, e ainda menos na do meu amor. E, quanto ao fato de justificar a nossa união pelo casamento, para que e porque semelhante formalidade pueril e ridícula... O casamento é a prova pública do amor, e nós por enquanto não temos público! Deixa isso lá para a tua mesquinha sociedade, onde se casam enganando-se uns aos outros; onde se casam sempre por qualquer interesse, que não é o da procriação...
- Não! Lá também há casais que se amam...
- Muito raros. Além disso, o meio que os cerca é quanto basta para corrompê-los em pouco tempo e fazê-los tão ruins como os outros. Viverão a primeira lua de mel em pleno amor, mas na seguinte já o marido procura com quem trair a esposa, e esta já precisa chamar em seu socorro toda a energia de que é capaz para ver se consegue não enganar o marido! Ah! - Uma gente adorável, não há dúvida!
- E achas que Deus não se zangará comigo por eu não ter ido à igreja receber a sua benção antes de acompanhar-te?
- Zangar-te contigo! Quem! Deus? Que loucura! Ele, ao contrário, filhinha, longe de amaldiçoar-te porque me amas deste modo, mais ainda te estimarás por isso. Ele quer que as suas criaturas se amem como nós dois nos amamos! O seu coração é um grande manancial de ternura, que se derrama noite e dia, a todo o instante, sobre as nossas almas, para fecundá-las, como o sol se derrama sobre a terra. Quando, em longas noites de luar, ficavas cismando esquecida à janela do teu quarto e suspiravas sem saber por quem, era ele que me trazia de longe os teus beijos errantes e solitários com o mesmo sopro benfazejo com que conduz a cada momento de uma a outra flor o pólen dourado e fecundo!
- Deus?
- Sim, Magdá, tudo o que vem das suas mãos de pai trás o gérmen do amor, que é a vida. A própria terra nada mais é do que um grande ovo, que ele incuba com a calentura do seu amor eterno! O Criador deu ao homem vesículas seminais, o ovário à mulher, para que eles se correspondessem, e se amassem, e se reproduzissem. Só nos amando assim, como agora nos amamos, podemos glorificá-lo, porque o amor é a perpetuidade da sua obra! E ainda me vens falar em cerimônias de igreja!... Mas aqui, minha amada, eu não sou o mocó da pedreira, nem tu és a filha de um Conselheiro; aqui somos apenas um casal que se ligou pelos únicos laços que Deus criou para unir o homem à mulher - a cópula! Aqui somos o macho e a fêmea; aqui somos iguais porque somos e seremos igualmente puros, castos e eternos! A única substância da nossa vida nestas infinitas e deliciosas regiões do amor, é o próprio amor! nosso Deus - o amor! nosso ideal - o amor! Só por ele e para ele nos achamos aqui reunidos os dois, assim abraçados e presos nos lábios um do outro!
E com estas palavras o moço estreitou Magdá contra todo seu corpo. E calaram-se ambos.
- Sim, disse ela afinal, quando recuperou a fala - sim, que me importa a outra vida, se tudo o que é de melhor concebem o meu coração e o meu cérebro é o teu amor? Desapareça tudo o mais; arrazem-se todos os mundos; apaguem-se todas as paixões; sufoquem-se todas as crenças; aniquilem-se todos os instintos; e este amor ilimitado, ardente, sempre novo e sempre vivo, há de sobreviver, como um espírito imortal, como um príncipe incriado, uma força mais arbitrária e mais indomável do que a força impulsiva da matéria!
E seus lábios uniram-se de novo aos lábios dele, e seu corpo de novo estrebuchou na relva em convulsões de amor. Em volta a natureza festejava aquelas núpcias com uma orquestra em surdina de beijos e arrulhos. Um crescendo ansiar de suspiros estalados ia-se formando lentamente; até que, de súbito, um geral espasmo se apoderou de toda a montanha, levantando4he pela raiz a cabeceira verde. Encrespou-se-lhe o dorso. Às arvores, com as folhas arrepiadas, extorciam-se, atirando-se umas às outras e rangendo os galhos; as flores palpitavam sob o doudejar das borboletas; os répteis corriam de rojo por toda a parte, rondando, seguros e assanhados; vermes esfervilhavam, brotando aos cardumes do solo úmido; as rolas acoitavam-se, gemendo de gosto e ruflando as asas no chão; ouviam-se rouxinolar duetos de amor no fundo azul das matas; insetos zumbiam voando, agarrados no ar; aos pares; uma nuvem de poeira cor de fogo remoinhava no espaço, embebedando as plantas; e o sol, vitorioso e potente, resplandecendo na sua armadura de ouro, emprenhava a terra na esplêndida fornicação da luz.
XII
Acordou muito nervosa e muito triste. O sonho deixara-a num grande abatimento físico e moral; pungia-lhe um como remorso de quem se arrepende de haver passado a noite em claro, no deboche. Sentia-se humilhada.
- Maldito homem! maldita a hora em que ela se lembrou de subir à pedreira.
Não é que não compreendesse perfeitamente que tudo aquilo era devido ao seu lastimável estado de doença; mas, por melhores esforços empregados para se convencer de que lhe não cabia a mais ligeira responsabilidade em semelhantes extravagâncias, um profundo vexame apoderava-se do seu espírito, constrangendo-a de vergonha contra si própria. Reconhecia-se criminosa por aqueles delitos de uma sensualidade tão brutal e tão baixa; não podia conceber como era que ela - ela! a filha do Conselheiro Finto Marques, a intolerante, a escrupulosa por excelência, a irrepreensível nos seus gostos e nas suas predileções, mantinha, segregadas nos meandros da sua fantasia, tais sementes de luxúria, que bastava cair uma única no misterioso terreno dos sonhos para rebentar logo uma floresta inteira de concupiscência. Lembrou-se de contar tudo com franqueza ao Dr. Lobão e pedir-lhe que lhe arranjasse um remédio contra aqueles desvarios; mas só a idéia de repetir, de confessar certos particularidades do seu delírio, faziam-na tremer toda de pejo. "Ah! se a tia Camila ainda fosse viva!." E o que ela não se animou de confiar ao médico, disse em confidência de alcova ao seu crucifixo, pedindo-lhe entre lágrimas, pelo amor da Virgem Mãe Santíssima, que a protegesse; que a livrasse daqueles pensamentos impuros; que lhe mandasse dos céus todas as noites um dos seus anjos para lhe velar o sono e impedir que a sua pobre alma, enquanto ela dormia, fosse vagabundear por ali, como a alma de qualquer perdida.
Cristo não a atendeu. À mísera, depois de um dia como os outros, dia arrastado entre colheradas de remédio e tédios de enferma, sem um riso, nem a sombra de uma esperança de alegria, mal adormeceu, animada no colo da Justina, acordou em sonho nos braços do cavoqueiro.
Continuava a sua existência fantástica. Despertou com um beijo dele.
- Ah! disse, e olhou em torno de si, procurando reconhecer o sítio da quimérica felicidade.
Sorriu logo, satisfeita: era o mesmo lugar em que na véspera havia pegado no sono acalentada pelo amante. - Era, que dúvida! - lá estavam as mesmas árvores, agora tranqüilas e confortadas; as mesmas paineiras sussurrantes, o inalterável regato de águas diamantinas em que se destacavam os nenúfares, formando pequenas ilhas cor de esmeralda e guarnecidas de grandes flores vermelhas e brancas. E, como para se certificar de que o seu amado ainda era também o mesmo, pôs-se a tatear-lhe a musculatura dos braços e do peito.
- Era ele mesmo! Era! Nem outro possuía aquela rijeza de carnes junto àquela maciez de pele.
Apalpou-o todo. Depois, como se ainda não estivesse bem convencida, esfregou o rosto nas barbas dele, meteu os dedos por entre os anéis do seu cabelo, cheirou-lhe a boca.
- Era! Era o mesmo! cheirava a murta.
E beijou-o.
Olha, falou o moço. - Enquanto dormias tu, andei por aí colhendo estas frutas. Deves sentir fome.
- E' verdade, respondeu Magdá. - Tenho uma fome enorme. Há muito tempo que não como.
E ergueu-se a meio para o banquete.
- Vê como são boas... observou o outro, trincando um cajá e levando-lhe à boca o pedaço que tinha entre dentes.
Ela comeu e pediu outro bocado, mas queria assim mesmo - de boca para boca.
- Como é bom! Como é bom! repetia batendo palmas.
- Estes, que estão picados de passarinho, são os mais doces. Olha! experimenta.
Ela afinal deitou-se no colo dele, para comer à moda das crianças. O rapaz escolhia os melhores frutos, mordia-os primeiro e dividia o pedaço com ela, ambos a rirem-se muito desta brincadeira.
- Mais! mais!
Ele mostrou uma grande manga.
- Oh! Que bela! exclamou a filha do Conselheiro, tomando em cheio nas mãozinhas a imensa manga que o companheiro lhe apresentava. E, farta de admirá-la, lembrou com um repente
- Vamos chupá-la os dois juntos?...
- Como?
- Deita-te aqui no chão, ao meu lado. Assim!
E, uma vez deitados, começaram, com o rosto muito unidos, a chuchurrear a manga, como se mamassem ao mesmo tempo por uma só teta. Magdá sentia com isto uma volúpia indefinível; de vez cm quando despregava os lábios da fruta, para poder olhar o amigo, soltava uma risadinha e continuava a mamar. Quando se sentiram satisfeitos, ele foi buscar água na parra de um tinhorão e deu de beber à companheira.
- Bem, disse depois. - Agora vamos dar um passeio.
- Sim, mas eu não posso ir muito longe. Sinto-me ainda tão fraca...
- Eu te carregarei, quando não puderes andar. Encosta-te a mim.
Magdá ergueu-se e pôs-se a caminhar vagarosamente ao lado do amante, toda reclinada sobre ele; os braços na cintura um do outro. Ouviam-se então cantar as aves e as plantas inclinavam-se com ternura e respeito por onde seguia o amoroso par; a folhagem tinha sorrisos; as boninas beijavam-lhes os pés.
Um cheiro delicado de baunilha enriquecia o ar.
Chegaram à beira do regato e Magdá mirou-se nágua com faceirice de noiva. Ao seu lado refletia-se a robusta figura do moço.
- Dá-me algumas flores, pediu ela. - Quero enfeitar-me para te parecer mais bonita. Estou tão magra!...
Ele afastou-se e voltou logo com um braçado de rosas, magnólias, jasmins e manacás. O ambiente trescalou de aromas. Magdâ soltou o cabelo e depois, a rever-se na própria imagem refletida a seus pés, fez novas tranças em que ia intercalando flores com o mimoso capricho de quem faz uma obra d'arte. O moço olhava-a sorrindo.
- Vaidosa... murmurou.
- Ingrato! E' para te agradar... E ela, quando deu por pronto o seu toucado, foi colocar-se defronte do amigo para receber os afagos da aprovação.
- Senta-te aqui, disse este, em seguida a um beijo.
A amante obedeceu; ele deitou-se na relva e pousou a cabeça no colo de Magdá, que começou a afagar-lhe os cabelos, segredando ternuras, vergando-se sobre o seu rosto, para alcançar-lhe os lábios. Estiveram assim um tempo infinito; alheios e esquecidos de tudo, bebendo pela boca um do outro o vinho da sua animalidade, embriagando-se de camaradagem, aos poucos, voluptuosamente; até que, ébrios de todo, se deixaram rolar ao chão e se quedaram abraçados, mudos, inconscientes, quase mortos na deliciosa prostração do coma venéreo.
Só deram por si ao declinar do dia. Continuaram o passeio.
- Que ruído é este? perguntou Magdá, parando em certa altura da floresta.
- Não tenhas medo, meu amor, é o trapejar de uma cascata que fica do outro lado da montanha. Havemos de lá ir um dia.
- Espera! Parece que vai chover... Senti uma gota dágua cair-me na face.
- Vai, sim, mas não faz mal; nós nos recolhemos à gruta.
- Que gruta?
- Verás. Fica muito perto daqui. Vamos.
Principiava com efeito a chuviscar. Ele tomou Magdá nos braços e correu para a gruta, que em verdade, era muito perto dali. Consistia numa grande rocha negra, toda encipoada de heras e parasitas com uma pequena fenda que mal dava passagem a uma só pessoa de cada vez. O cavoqueiro transpôs a brecha e em seguida fez entrar a companheira.
- Agora pôde lá fora chover a cântaros! Declarou - estamos perfeitamente agasalhados.
Magdá olhou em torno de si na meia escuridão da caverna, e notou que se achava num lugar muito aprazível, de atmosfera de alcova. Os seus pés eram embebidos em armelina e doce alfombra; suas mãos tocavam nas paredes uma penugem macia que lembrava a pluma do algodão. Era um ninho, um verdadeiro ninho de musgo cheiroso, aveludado e tépido.
O rapaz deixou-se cair em cheio sobre o tapete de relva, arrastando Magdá na queda. E, fechando-a nos seus braços, disse-lhe com o rosto unido ao dela:
- Não ouves lá fora um arrulhar mavioso e triste?...
- Sim, porque ?
- É o urú que anuncia a noite. Vamos dormir.
E ela sonhou que adormecia, justamente na ocasião em que acordava na vida real. O gemebundo piar das rolas desdobrou-se na monótona e pesarosa cantilena dos trabalhadores da pedreira.
XIII
- Terceiro sonho ~... Era já o terceiro sonho!... cismava Magdá, muito impressionada e ainda recolhida na sua cama de erable com esculturas de mogno. - Três sonhos seguidos, de noite inteira, com aquele miserável trabalhador... E não poder reagir contra semelhante violência!... Não dispor de um único recurso contra esse misterioso tirano que a constrangia àquela convivência extravagante, àquele amor ignóbil por um ente, que ela na vida real malqueria e desprezava. Terrível cativeiro! Não poder dizer à sua imaginação: "Acomoda-te, demônio! Sossega!" Isto com quem não estava habituada a repetir uma ordem; com ela, que não fora nunca desatendida nos menores caprichos, como nas maiores imposições!... Que desespero - ter de submeter-se ao jugo da sua carne! Que inferno - sentir-se todos os dias ao acordar humilhada por si mesma, indignada contra os seus próprios sentidos.
E se aquilo desse para continuar?... Sim, como havia de ser, se nunca mais terminasse aquela nova existência que ela agora vivia com o cavoqueiro durante a noite?.... Oh, antes a morte! antes a morte!
Justina abriu o cortinado da cama, para saber se a senhora queria já o chocolate.
- Que horas são!
- Meio-dia.
- Não consigo acordar mais cedo...
E notava agora na boca um gosto acre e doce ao mesmo tempo, muito enjoativo, sabendo a sangue.
- Minh'ama sente alguma coisa? perguntou a criada, reparando que Magdá estalava com insistência a língua contra o céu da boca.
- Um gosto esquisito.
- É do estômago! Não tenho dito a vosmecê que não é bom estar paparicando guloseimas todo o dia?... Como não! Está aí!
- Mas eu ontem nada comi que me pudesse fazer mal. Tomei um caldo e bebi um cálice de vinho; e à tarde... Ah! talvez seja do xarope... diz o doutor que leva muita estriquinina...
- Deve ser, como não? Estes remédios de hoje são todos uns venenos, Deus me perdoe!
- Prepara-me água para lavar a boca.
- Está tudo pronto.
Magdá ergueu-se da cama.
E, enquanto se preparava: - Ó senhores! que frenesi me mete aquilo!
- Aquilo que, minh'ama?
- Aquela maldita cantilena!
- Ah! Os homens da pedreira! Coitados! Diz que assim não sentem tanto o peso do serviço... Aquilo é um trabalho muito bruto! Vosmecê não imagina... Ainda outro dia...
- Sim, sim! Meu pai já saiu?
- Ainda não, senhora, e já veio saber como minh'ama passou a noite.
- 'Stá bem.
- ... Ainda outro dia, o Luiz...
- Que Luiz... ?
- Esse rapaz que está para casar com minha irmã, com a Rosinha; aquele que desceu minh'ama da pedreira!... O Luiz, vosmecê conhece, como não ?
- Sim, sim! Não quero saber disso... - Dá-me o chocolate e o remédio.
Justina precipitou-se logo para fora da alcova, e Magdá, contra a sua vontade repetia mentalmente: "O Luiz, esse rapaz que está para casar com Rosinha..." Mas a fisionomia não se lhe alterou e, como era do seu costume ao levantar-se do leito, tomou um espelhinho de mão e pôs-se a mirar de perto as feições. Achou-se extremamente abatida e muito descorada; em compensação sentia-se agora de melhor humor e até disposta a sair do quarto. O diabo era aquele maldito gosto de sangue que lhe não deixava a boca. Bebeu dois tragos de chocolate, rejeitou o frasco do xarope, e em seguida desceu ao primeiro andar, mais animada que nos outros dias.
O pai fez um espalhafato quando a viu.
- Assim é que ele queria!
E beijou-a na testa. - Assim é que Magdá devia fazer sempre! Hoje até, acrescentou risonho e afagando-lhe o queixo, bem podias dar um passeio comigo, hein? Mando buscar o carro? Que dizes?
- Onde o passeio?
- Onde quiseres; em qualquer parte. Está dito?
Ela aceitou, com grande contentamento do Conselheiro; e a surpresa deste subiu ao zênite quando viu a filha ordenar ao copeiro que lhe servisse um pouco dum roast-beef que estava sobre a mesa.
- Bravíssimo! Bravíssimo
Magdá, porém, logo que percebeu sangue no assado, repeliu o prato, a estalar a língua; mas exigiu que lhe dessem sardinhas de Nantes e comeu depois meia costeleta de carneiro, um pouco de pão, queijo com mostarda, um gole de vinho e ainda tomou uma chávena de chá preto. E não sentiu náuseas.
O pai ficou louco de contente.
- O xarope está produzindo efeito!... raciocinou ele, esfregando as mãos.
Ela pôs um vestido de cor, o que havia muito tempo não fazia; e daí a pouco embarcava no carro com o Conselheiro.
Mandou tocar para o lado da cidade. - Ah! Estava farta de árvores e de florestas; agora precisava ver casas, ruas com gente, movimento de povo; para deserto bastava-lhe o paraíso dos seus sonhos!
Durante o caminho mostrou-se de magnífica disposição, conversou bastante, chegou a rir mais de uma vez. Ao passar pelo Campo de Santana apeteceu-lhe entrar no jardim. O carro ficou à espera defronte da Estação de Bombeiros.
Eram três horas da tarde quando penetraram no parque. Fazia calor; a areia dos caminhos estava quente; os lagos reluziam e os côncavos tabuleiros de grama, que dão vontade à gente de rolar por eles, tinham reflexos de esmeralda nos pontos em que lhes batia o sol; os patos e os gansos amoitavam-se nas touceiras de verdura, à beira dágua, procurando sombra; a mole compacta dos crotons parecia formada de incontáveis retalhozinhos de seda de várias cores; os gordos cactos e as bromélias cintilavam como se fossem de aço polido. Mas toda esta natureza simétrica, medida como que metrificada e até rimada, parecia mesquinha em confronto com as luxuriantes paisagens, que Magdá sonhara naquelas últimas noites. Todavia, nem por isso deixou de impressioná-la, trazendo-lhe ao espírito recordações vexativas; por mais de uma vez sentiu a moça subir4he o sangue às faces, à maneira do seu delito; mas não falou em retirar-se; apenas propôs ao pai que descansassem um pouco.
O Conselheiro levou-a até à cascata. Aí estava com efeito muito mais agradável; fazia inteira sombra, e a água, que caía lá do alto, esfarelando-se contra os pedregulhos artificiais, refrescava o ar e punha-lhe um tom úmido de beira de praia. Magdá ficou um instante à entrada da gruta, apoiada na corrente da ponte, entretida a olhar os peixinhos vermelhos que nadavam em cardumes por entre as ilhotas de pedra. O velho esperava ao lado, em silêncio, sem nenhuma expressão na fisionomia, com uma paciência de pai; ao penetrarem na gruta, ele percebeu que o braço da filha tremia.
- Sentes alguma coisa?...
- Não. E' que isto escorrega tanto...
Lá dentro havia um casal que se retirou com a chegada deles, conversando em voz baixa e afetando grande interesse na conversa. S. Ex. teve um gesto largo de quem admira; Magdá olhou indiferentemente o teto de cimento, as grossas estalactites pingando sobre as estalagmites com um aprazível ruído de noite de inverno. A umidade da gruta fez-lhe sede; o Conselheiro procurou uma bica e descobriu afinal uma caneca pendurada a um canto, donde jorravam goteiras mais grossas.
- Eu bebo aí mesmo. disse Magdá, correndo para ele e arrepanhando as saias, porque o chão era nesse lugar muito encharcado. O Conselheiro notou a impropriedade daquelas estalactites numa rocha que fingia ser de granito; Magdá não prestou nota à observação científica do pai e enfiou por um corredor à esquerda. Foi dar lá em cima; assentou-se cansada no rebordo onde está a entrada para a caixa dágua. O velho ficou de pé.
- Aqui está bom, não achas? perguntou.
Ela não deu resposta. Olhava. A voz de um sujeito, que tinha subida pelo lado oposto, espantou-a; a nervosa soltou um pequenino grito e ficou ligeiramente trêmula.
- E' melhor descermos... aconselhou S. Ex., vendo que dois vagabundos se aproximavam com as suas calças de boca muito larga, a cabeleira maior que a aba do chapéu e grossos porretes na mão.
Voltaram pelos fundos da cascata. Um bêbado dormia aí, estendido por terra, meio descomposto, uma garrafa ao lado. O Conselheiro fez um trejeito de contrariedade e seguiu mais apressado com a filha. Quando se acharam fora da gruta, o sol declinava já e as ruas do parque enchiam-se de sombra. Corria então um fresco agradável. Anilavam-se as verduras mais distantes; desfolhavam-se os heliotrópios ao tépido soprar da tarde; as amendoeiras desfloreciam, recamando o tapete verde de pontos amarelos. Havia uma surda transformação nas plantas; reviviam as flores amigas da noite e começavam a murchar os miosótis e as papoulas; as árvores sacudiam-se, rejubilavam, aliviadas do mal que lhes fazia tanto sol; ouviam-se nas moitas suspiros de desabafo. Os patos e os gansos deslizavam agora vitoriosamente, rasgando com o peito a brunida superfície dos lagos; chilreavam pássaros, saracuras assustadas cortavam de vez em quando o caminho, olhando para os lados; ouviam-se grasnar marrecos e frangos dágua. Tudo estava mais satisfeito. Uma nuvem de gaivotas pairava sobre os tabuleiros verdes, debicando na relva; as cambachilras saltitavam por toda a parte. Via-se aparecer ao longe, por detrás dos horizontes de folhagem, a agulha da igreja de S. Gonçalo, destacando-se do límpido azul do céu toda esmaltada pelo sol das cinco e meia.
Principiava a chegar gente; surgiam homens de palito na boca, o colete desabotoado sobre o ventre; calcinhas brancas, curtas e mal feitas, mostrando botas empoeiradas; gorduras feias dos climas abrasados; hidroceles obscenas; chapéus altos ensalitrados de suor. Mulheres da Cidade Nova, com umas caras reluzentes, vermelhas como se acabassem de ser esbofeteadas; portuguesas monstruosas, com umas ancas que pediam palmadas, os pés turgidos cm sapatos de pano preto sem feitio. "Uma gente impossível!" Magdá via-os a todos, um por um, enjoada, com o narizinho torcido e cheia de uma secreta vontade de chicoteá-los.
Deteve-se para contemplar o grupo muito pulha de L. Despret, logo à direita de quem sai da gruta; um homem, auxiliado por um cão, a lutar com um tigre; mas o homem corta o peito da fera como se estivesse talhando pão-de-ló, e o cão raspa com os dentes a anca da mesma, como se tentasse morder um animal de bronze. Não obstante, Magdá parou defronte da escultura e parecia interessada por ela. Aquele homem de músculos atléticos prendia-lhe a atenção. Porque? - Sabia lá! O Conselheiro, intimamente estranhado pela importância que a filha dava a semelhante obra, falou-lhe no museu do Louvre, nos belos mármores que os dois mais de uma vez apreciaram juntos. Ela não ouviu e, depois de muito contemplar o lutador, disse:
- Não há no mundo um homem assim como este, hein, papai?
- Assim como, minha filha?
- Assim forte, musculoso...
- Ah! de certo que não...
- Mas já houve...
- Ora, noutros tempos, quando os guerreiros carregavam ao corpo armaduras de dez arrobas.
- E as mulheres dessa época? Deviam ser também bastante vigorosas...
- Com certeza! Pois se uns descendiam dos outros...
Nisto passou perto deles um bêbado. muito esbodegado, a cambalear cantarolando; a camisa esfobada no estômago, o chapéu à ré; os punhos sujos a saírem-lhe da manga do paletó, engolindo-lhe as mão. O Conselheiro desviou-se discretamente com a filha para o deixar passar; o borracho parou um instante, cumprimentou-os com toda a cerimônia, quase sem poder abrir os olhos, e lá se foi aos bordos, empinando a barriga para a frente. Magdá soltou uma risada tão gostosa, que abismou S. Ex.
- Definitivamente aquele era o dia dos prodígios... pensou o extremoso pai - E qual não seria o seu espanto quando ouviu a rapariga soltar a segunda e a terceira, a quarta e, enfim, uma crescente escala de gargalhadas contínuas.
- Com efeito!... disse. Muita graça achaste tu naquele tipo!
Ela não podia responder; o riso sufocava-a
Está bom, minha filha, não vá isso te fazer mal...
Magdá procurava conter a hilaridade, mas não conseguia. Os transeuntes olhavam-na tomados de grosseira curiosidade; o Conselheiro, meio vexado por ver que ela chamava a atenção de todos, repetia-lhe baixinho:
Está bom... está bom...
Foi um capadócio quem afinal a fez calar; um que passou de súcia com outros, medindo-a de alto a baixo e que, depois de mirá-la muito, começou por caçoada a remedar-lhe o riso. Magdá ficou furiosa. Subiu-lhe sangue à cabeça e teve ímpetos de... nem ela sabia de que!... fazer um disparate! tomar a bengala do pai e quebrá-la na cara do tal sujeito.
- Atrevido! resmungava entre dentes cerrados, afastando-se com o Conselheiro.
E, apesar dos esforços que este empregou para distraí-la, o resto do passeio foi todo feito sob a impressão daquele incidente.
- Não penses mais nisso... insistia o velho, quando Magdá, já dentro do carro, se referia ao fato pela milésima vez.
Tocaram para casa; ela em toda a viagem não falou noutra coisa. Vinha-lhe agora um a inhabitual vontade de brigar, de fazer escândalo. Esteve quase a pedir ao pai que voltasse e fosse à procura do malcriado até descobri-lo, para lhe pespegar duas bengaladas, mas bem fortes!
E jurava que, naquele momento, seria capaz de estrangular o maldito. Não parecia a mesma. Ela, que fora sempre tão inimiga de tudo em que transpirasse escândalo e barulho, sentia agora uma estranha sede de provocações, de desordens; já não era com o capadócio do jardim, mas com qualquer pessoa. Quando entrou em casa, porque a Justina não respondeu logo a' primeira pergunta que lhe fez, bradou trêmula:
- Você também é um estafermo!
- Estafermo?
- Não me replique!
- Eu não estou replicando...
- Rua!
- Vosmecê despede-me?...
- Rua! Não a quero aqui nem mais um instante!
- Mas, minh'ama...
- Rua! Não ouviu?
O Conselheiro interveio:
- Então, minha filha, não te mortifiques
- Pois meu pai não vê como esta mulher me provoca, só pelo gostinho de me pôr nervosa?
- Tu parecias gostar tanto dela.
- Nunca! Não a posso olhar! Tenho-lhe ódio!
Justina, coitada, ia tentar a sua defesa, já banhada cm lágrimas, quando o pai de Magdá lhe fez sinal de que se afastasse; ao passo que a histérica, falando sozinha e praguejando contra tudo e contra todos, dirigia-se furiosa para o quarto.
Uma súcia! Todos uma súcia, resmungava, enterrando as unhas na palma da mão. E fechou-se por dentro com arremesso, atirando-se à cama, desesperada e arquejante.
Justina enxugava as lágrimas no avental, dando guinadas com todo o corpo a cada suspirado soluço que lhe vinha.
- Descanse que você não irá embora, disse-lhe o amo. - Quando a Sra. D. Madalena chamar por alguém, apresente-se e não se mostre ressentida com o que se deu. Aquilo passa! É da moléstia! Vá!
- Uma coisa assim!... lamuriou a criada. - Eu que tanto faço por agradá-la.
- 'Stá bem, 'stá bem! já lhe disse que você não será despedida.
- Não é por nada, mas é pela aquela que a gente toma às pessoas!. . Eu estava já afeita com minh'ama, e ter de deixá-la assim de um momento p'ra outro, sem lhe ter dado motivo... dói, como não dói?.
- Mas vá, vá sossegada, que não haverá novidade.
Justina afastou-se chorando a valer.
O Dr. Lobão chegava nesse momento e o Conselheiro passou a narrar-lhe as últimas esquisitices da doente. O médico escutou-o calado, fazendo bico com a boca sem lábios; olhando por cima dos óculos, com as sobrancelhas no meio da testa, arqueadas como duas sanguessugas.
- Ela tem tido as funç5es mensais com regularidade?... perguntou no fim da sua concentração. E rosnou, depois da resposta: - É o diabo! é o diabo!... Preciso examiná-la de novo! E lembrar-me de que tudo isto se teria evitado com tão pouco sacrifício para todos nós! Pensam que é brincadeira contrariar a natureza! Agora - o médico que a agüente!
Quando o doutor saiu, já a filha do Conselheiro dormia a sono solto e sonhava: escusado é dizer com quem.
Capítulo anterior - Próximo capítulo
----------x----------
|