I - O NAMORADO DA NOIVA

Nos fins de um verão que já vai longe, uma carruagem, de cúpula erguida e faróis apagados, seguia a todo o trote pela pitoresca estrada da Gávea.

Seriam onze horas da noite.

À certa altura, no lugar mais sombreado do caminho, a carruagem parou, e dela se apearam dois sujeitos vestidos de casaca. O mais velho destes, que teria o duplo dos vinte anos do outro, pagou ao cocheiro, e logo que o carro tornou por onde viera, puseram-se os dois apeados a caminhar silenciosamente pela estrada acima.

Ao cabo de alguns minutos, o mais velho, percebendo que o companheiro chorava, estacou, sacudindo-lhe o braço:

- Então, Gabriel! não tencionas acabar com isso por uma vez? Olha, que sempre me saíste um romântico ainda mais doido do que eu! E batendo-lhe no ombro: Ora vamos, meu rapaz! não te deixes agora dominar tão estupidamente por uma paixão quase ridícula! O que por aí não falta são mulheres tão lindas ou mais do que a filha do comendador Moscoso, e tu, por bem dizer, ainda nem principiaste a gozar a tua mocidade. Para mim é que toas elas já não existem... Vamos! se continuas desse modo, acabarei por te não tomar a sério!

O mais moço não respondeu, e continuaram os dois a caminhar em silêncio.

No fim de nova pausa, acrescentou o mais velho, sem interromper o passo:

- Que diabo! quiseste a todo o transe assistir ao casamento de Ambrosina... não te contrariei, apesar de me parecer isso disparada loucura; exigiste que eu te acompanhasse... eu cá estou ao teu lado; declaraste que entraríamos misteriosamente na casa dos noivos à meia-noite, como dois gatunos... eu não respinguei palavra!... (E sacando do relógio) São doze menos um quarto... A chácara do comendador fica-nos a poucas braças... e o cocheiro que nos trouxe roda a estas horas longe daqui, sem saber quem conduziu no seu carro... Parece-me, pois, que anui a todos os teus caprichos; entretanto, tu, o herói desta complicada aventura, tu, que me prometeste te portares como homem, que juraste não soltares um gemido de dor ou de queixa, desatas agora a chorar como uma mulher! Ah! deste modo, meu caro, não contes comigo!... Prefiro até desistir da viagem que combinamos fazer à Europa, sob a condição de acompanhar-te eu nesta romântica empresa; desisto de tudo!

- Gaspar!

- Pois não! retrucou este, estacando de novo no meio da estrada. Se continuas assim, está claro que não obterás de mim um passo adiante!

- Irei só! declarou o outro, enxugando os olhos.

- Para fazer-te a vontade, prosseguiu aquele, tive que reagir contra os meus hábitos e até contra o meu caráter; não te é nada estranho o mortal e velho ódio que mantinha contra meu pai, o pai de Ambrosina, esse infame comendador Moscoso, a quem eu, como toda a gente honrada, desprezo e detesto... Pois bem; não me arrependo do que fiz, e estou por tudo que quiseres, mas, com a breca! exijo por minha vez que, ou tu te hás de portar como homem, ou agora mesmo, desistas de tal idéia de ir hoje à casa da noiva! Lá para lamúrias e pieguices de namorado infeliz, é que absolutamente não vim disposto! Vamos! é decidires!

Gabriel passou-lhe o braço em volta do pescoço, exclamando:

- Não me recrimines, meu bom amigo! Sei quanto te devo, e sei melhor que o teu coração é o único de que ainda não descri inteiramente; mas, por isso mesmo, não me abandones, não me deixes a sós com este desespero, que só espera pela tua ausência para me devorar. Fica ao meu lado... eu me farei forte, eu terei coragem! Hei de vê-la aparecer, enlevada no seu véu nupcial, branca e fugitiva como a nuvem que se some para sempre; hei de vê-la, coroada de flores amorosas, as faces enrubescidas de sensual enleio, os olhos fulgurantes de desejo por outro homem!... e não soltarei um lamento, e não proferirei uma blasfêmia! Inveja, decepções, mortíferos ciúmes, tudo me ficará cá dentro, premido e recalcado com os escombros do meu pobre amor! Tudo sofrerei, vencido e humilhado, contanto que ma deixem ver hoje, contanto que me deixem penetrar, pela última vez, da suprema luz daqueles olhos ainda de virgem, e aperceber minha alma com a imagem dela, antes que ela se despoje eternamente da sua castidade! Depois, farei o que quiseres... fugiremos para longe do Brasil... tomaremos o primeiro paquete para a Europa... percorreremos o mundo inteiro, abriremos uma ruidosa vida de prazeres e de perigos! teremos amantes em todas as cidades, orgias e duelos em todas as paragens; mas, por piedade! deixem-me ver Ambrosina, antes que ela resvale nos braços do miserável que ma roubou! E tu, meu bom Gaspar, não me abandonarás, não é verdade?... tu continuarás a ser para mim o mesmo amigo fiel, o mesmo inseparável irmão, o mesmo extremoso pai!

O outro apertou-o contra o peito.

- Sim, sim... respondeu comovido; bem sabes que sim! Serei sempre o mesmo, não para te deixar correr à solta, como um boêmio, por esse mundo afora, mas para despertar em ti o gosto pela vida real e pelo trabalho fecundo... Olha! já daqui se avista a chácara do grande velhaco. Deitam fogos! Deve ir animado o bródio! Mas vê se me compõe um pouco esse teu ar, homem! Não sei que parecerás aos folgazões com essa cara de carpideira de velório!

E, à proporção que se adiantavam, iam já sentindo com efeito avultar-se no ar um quente rumor de festa que ferve ao longe; ao passo que em torno deles vinha, do fundo negrume daquela noite sem estrelas e sem lua, um monótono coaxar de charco e um agoureiro corvejar de aves sinistras.

Os dois amigos chegaram defronte da bela chácara do comendador. O mais velho bateu no ombro do outro:

- Vê lá como te portas, hein!...

E, embrenhando-se pelo empavezado jardim, galgaram depois uma escadaria de granito, que dava para sombria e vasta varanda, trasbordante de roseiras em flor; transposta a qual, se acharam eles num luzido salão, ainda quente de estrondoso banquete que aí ardera durante a noite.

Via-se ao centro a grande mesa, devastada e abandonada, como um campo depois de medieválica peleja a ferro frio, e, no meio, do destroço, dominante, e altiva, erguia-se intacta, numa apoteose de açúcar e fios de ovos, uma noivazinha de alfenim, coroada de áureos caramelos e vestidas de papel de seda.

Essa ridícula boneca, que se poderia derreter com um bochecho d’água, representava, entretanto, ali, naquele centro burguês e pretensioso, nada menos que a instituição mais respeitável da sociedade, representava a família. Naquele alfenim, frágil, cândido e consagrado, havia a doçura do lar doméstico, toda a pureza do amor conjugal e também toda a fragilidade da honra de um marido.

No meio do geral desbaratamento das vitualhas e dos postres, a simbólica boneca fora respeitada, por damas e cavalheiros, como ídolo divino.

Gabriel teve vontade de despedaçá-la.

Já quase ninguém havia no salão do banquete. Tinham-se os convivas despejado pelas outras salas e pelo jardim, cuja luminária à veneziana começava a derreter-se; alguns coziam a digestão refestelada pelas poltronas e pelos divãs macios; outros bebericavam ainda aos bufetes e faziam brindes, sobre a posse, à ventura dos cônjuges. A festa, que havia começado desde a véspera, tocava afinal no seu término e dissolvia-se em cansaço.

Gaspar e Gabriel conseguiram, sem chamar a atenção de pessoa alguma, chegar a um aposento mais afastado, onde se não via viva alma.

- O que é da noiva!... perguntou Gabriel a um criado do libré, que apareceu depois, indagando deles se precisavam de alguma cousa.

- A noiva? Acaba, neste instante, de retirar-se com o noivo para o rico pavilhãozinho cor-de-rosa que lhes foi preparado... Olhe! olhe! meu senhor! Aqui desta janela ainda os pode ver! Ali vão eles!

- Gabriel correu ao lugar indicado. Ambrosina, pelo braço do noivo, fugia efetivamente para o escondido ninho dos seus amores, esgueirando-se arisca por entre as sombrias árvores do jardim.

- Onde fica o pavilhão?...

- O pavilhãozinho dos noivos? Pois vossemecê não sabe?! Fica, meu rico senhor, ao fundo da chácara, para o lado do mar... Que pena não o ter ido ver enquanto esteve ontem franqueado... De tudo o que se preparou aqui para esta festa, é sem dúvida a peça mais bonita!

Ao fundo da chácara... para o lado do mar... repetia entredentes Gabriel, apalpando contra o peito um punhal que levava oculto.

- Bem, disse Gaspar, assim que o criado se arredou; já viste afinal a noiva, creio que agora podemos bater em retirada... Não nos convém ficar por muito tempo aqui!...

- Vai tu, se quiseres... eu inda fico...

- Mal começa a cheirar-me a brincadeira! Bem sabes que te não abandonarei, mas não deves abusar da minha condescendência... Ouvi por acaso dizer há pouco que os pais dos noivos já se tinham também recolhido e que poucos convidados haveria de pé... São duas horas da madrugada!

Só em verdade um reduzido grupo de convivas recalcitrantes insistia em prolongar a festa, bebendo, já sem olhar o que, entre arrastadas cantigas à meia voz e descaídos abraços de borracheira; os outros, ou se tinham retirado para casa, ou recolhido aos dormitórios que o comendador mandara improvisar para os seus hóspedes.

Os criados, moídos e taciturnos, encostavam-se pelos umbrais das portas, a fitar os retardatários com um olhar humilde e suplicante. Um deles foi ter, bocejando, com Gaspar e Gabriel, e perguntou-lhes, quase de olhos fechados, se pernoitavam na chácara.

- Sim, respondeu o mais moço, sem consultar o outro.

- Mas precisamos de um quarto, donde se possa sair pela madrugada... Observou Gaspar; nossa carruagem chega às quatro horas...

O criado, a coçar-se todo, conduziu-os a uma câmara ao rés do chão, onde já havia dois sujeitos a dormir profundamente.

- Mas afinal, a que pretendes tu chegar com tudo isto?! perguntou Gaspar em voz baixa ao companheiro, quando se acharam a sós.

- A nada mais do que descansar um pouco, e partir em seguida... Contudo, se quiseres ir, ainda está em tempo... Eu, como já disse, não vou por ora.

- Ao contrário, preciso de repouso, e não tenho condução... volveu Gaspar, afetando um bocejo.

E acrescentou, estirando-se num sofá, depois de desfazer-se da casaca e das botinas:

- Contanto que antes de amanhecer estejamos a caminho... Não me convém de modo algum encontrar com o comendador.

- Podes ficar descansado... prometeu o outro, recolhendo por sua vez a uma poltrona de couro.

E, apagando a lâmpada que levara para junto desta, fingiu que adormecia.

Ao fim de algum tempo, a casa mergulhava de todo em silêncio e trevas. Gabriel ergueu-se cautelosamente; foi à porta, abriu-a com sumo cuidado, e saiu para o jardim, em mangas de camisa e sem sapatos. Levava o punhal consigo.

A noite era cada vez mais negra.

Gaspar, porém, que continuava alerta, mal percebeu a escápula do companheiro, enfiou num relance as botinas e a casaca, e atirou-se sorrateiramente no encalço dele.

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