IV - VIOLANTE
- Perdão, minha senhora, disse Gaspar em continuação à conversa com a bela desconhecida; eu, nem só creio na sinceridade de sua palavras como estou possuído do mais profundo reconhecimento pelos obséquios que recebi; mas não posso disfarçar o embaraço da minha situação...
- Por quê? interrogou a senhora com um tom indiferente.
- Por tudo. Em primeiro lugar, a perda total de minha roupa quer dizer que se me extraviaram papéis de importância, entre os quais estava o meu passaporte, o conhecimento de minhas bagagens e o meu bilhete de passagem no Pacific Star...
- O Pacific Star partiu ao meio-dia.
- Partiu?! Bravo! Então, minhas malas? Minhas...?
- Irão ter ao primeiro porto; cumpre ao senhor providenciar para que elas não se desencaminhem.
- Mas que situação a minha! exclamou Gaspar, olhando para o seu robe-de-chambre com um ar infeliz. Ficar desta sorte em uma cidade completamente estranha para mim... sem um amigo, sem um parente, e vestido desta forma! Isto não tem jeito! É caso para dar-se com a cabeça pelas paredes! Aqui ninguém me conhece! E além de tudo, se a senhora me não puder arranjar um par de calças, eu nem do quarto poderei sair! Esta só a mim sucederia!
- Ora! o senhor está criando dificuldades imaginárias...
- Imaginárias?! gritou Gaspar, escancarando os olhos. Se lhe parece, minha senhora, que eu não devo estar seriamente atrapalhado! Imaginárias!...
Decerto. Olhe! ali está uma secretária: passe uma letra da importância de que precisa para viver algum tempo nesta cidade: depois...
- Que mulher singular! considerou Gaspar com os seus botões, e voltando-se cheio de embaraço para a oriental: Perdão minha senhora! mas é que...
- Não pode hesitar! atalhou ela, sorrindo; o senhor não tem outro recurso...
- Mas é que eu nem ao menos sei a quem devo passar a letra...
- Tem razão, respondeu ela, encaminhando-se para a secretária, onde escreveu um vale à casa comercial de Viúva Rios & Comp. E passando-o depois a Gaspar, acrescentou: - Tenha a bondade de assinar.
- Dois mil pesos! protestou Gaspar, lendo o papel. Porém eu não preciso por ora de tão grande soma...
- Em todo o caso, nada perderá, nem ganhará com aceitá-la. Esse papel representa uma quantia que o senhor terá de pagar com um pequeno juro. Creio que não será lesado...
- Estou convencido disso, mas a questão é que eu não conheço esta firma, e ela muito menos a mim. Que valor pode ter minha assinatura para semelhante casa?
- Engana-se. O senhor merece todo o crédito para ela...
- Eu?!
- Sim, meu caro senhor.
- Creio que a senhora me confunde com outro...
- Pode ser, mas suponho que não!
- E como sabe se eu mereço confiança para a casa de Viúva Rios & Comp.?
- Porque sou eu a própria viúva Rios.
Estou pasmado.
- Disso sei eu... Assine.
- Mas, minha senhora, deixe ao menos que lhe beije primeiro as mãos...
A viúva olhou-o de alto a baixo; tinha-lhe fugido dos lábios o sorriso carinhoso com que até aí mimoseara o hóspede Gaspar abaixou os olhos, sem compreender o que se passava.
- Beijar-me as mãos... disse ela por fim. Só se lembrou disso depois da transação comercial! E são assim todos os homens!... Enquanto se trata de cousas verdadeiramente raras e preciosas, porque dependem só do coração e da pureza dos sentimentos, não se abalam sequer! A meiguice, a ternura, a feminilidade, que uma pobre mulher desenvolve desinteressadamente para cumprir com eles o seu destino de amor e de sacrifício, nada mais obtém de seus lábios que algumas palavras banais de reconhecimento e cortesia. Mas logo que se trata de materializar o bem, logo que o sacrifício, que o obséquio, que a abnegação, se acham representados por um valor real, por uma quantia enfim... ah! então querem beijar--nos as mãos e encontram facilmente exclamações de entusiasmo e de gratidão!... Não beijará! exclamou ela, fazendo um gesto de energia. Estou cada vez mais convencida de que os homens são todos os mesmos... Visionária e tola é a mulher, que espera encontrar entre eles um coração justo e perfeito. Se eu não fosse rica, se eu não pudesse oferecer-lhe agora uma quantia, de que aliás o senhor tem absoluta necessidade, é muito natural que o senhor não encontrasse uma palavra afetuosa para os meus desvelos, e é possível até que, uma vez que já não precisasse deles, chegasse a desprezar-me e fazer mau juízo da minha conduta, porque, no fim de contas, eu tinha cometido a imperdoável leveza de recolher em minha casa um homem quase morto, e de proporcionar-lhe todos os serviços que o seu mísero estado reclamava. E afinal os senhores acabam por ter razão! Toda nossa vida, toda nossa dedicação, toda nossa ternura, toda nossa paciência, não valem um obséquio praticado por um homem a outro homem! Tudo o que pode fazer o coração de uma mulher não vale um empréstimo de dinheiro, uma fiança, uma comenda, um elogio pela imprensa ou qualquer outra bagatela, que afague o amor próprio de algum parvo, ou salve a suposta honra de qualquer fátuo!
- Minha senhora, eu peço-lhe mil perdões, se...
- É melhor não dizer cousa alguma! Vamos, assine o vale, e depois há de preparar-se para jantar. Pode receber de minhas mãos o miserável serviço que me propus oferecer-lhe: em breve o senhor terá ocasião de prestar-me um outro muito maior.
Com todo o gosto! respondeu Gaspar, assinando o vale e entregando-o à sua salvadora.
Esta leu consigo a assinatura, e disse com sinais de satisfação: - Logo vi que me não tinha enganado! É justamente quem eu supunha!...
Em seguida, retirou-se, sem dar tempo ao hóspede para voltar a si da estranheza daquelas palavras.
Ele encostou-se a um móvel, e deixou-se arrastar por um cardume de raciocínios. - Quem seria aquela mulher tão extraordinária?... Que relação haveria entre ela e um pobre viajante, pouco conhecido em qualquer parte e inteiramente ignorado naquela cidade onde pisava pela primeira vez?
Estava a fazer tais considerações, quando a porta se abriu de novo, e apareceu um homem de uns sessenta anos, acompanhado por um rapaz que trazia uma caixa na cabeça.
O velho era limpo, discreto e sumamente cortês; via-se nele um desses bons servos do tempo da regência, que não sabiam aprumar-se como o criado inglês, nem sorrir maliciosamente como o francês. Foi a Gaspar e cortejou-o sem afetação e sem servilismo: fez o companheiro depor no chão a caixa que trazia, e principiou a tirar dela várias peças de roupa.
- Meu amo tenha a bondade de escolher daqui o que lhe convém, disse ele, como se estivesse de muito tempo a serviço de Gaspar.
Este tomou o expediente de deixar que as cousas corressem ao bel-prazer da fada que fazia girar a roda daquela fortuna, e escolheu a roupa de que podia precisar.
O criado tomou-lhe a medida do pescoço e da cintura, e encheu uma gaveta com o mais completo enxoval de roupa branca. Em seguida, voltou-se para o rapaz da caixa e disse-lhe que podia retirar-se.
Gaspar olhava para tudo aquilo, completamente intrigado.
O sexagenário entregou-lhe uma carta com o dinheiro oferecido pela oriental e perguntou-lhe depois se já queria vestir-se. Passaram para a próxima saleta, que era um brinco de luxo e de bom gosto.
Pois senhor meu amo, dizia o velho, a pentear a bonita barba castanha de Gaspar; estimo bem ver afinal vossemecê à testa de sua casa... Só dessa forma a minha pobre patroazinha passará uma vida menos amarga! Ela coitada, vivia tão triste, que metia dó!...
Gaspar sentiu arrepios. Ia desembrulhar semelhante mistificação; mas, receoso de fazer alguma tolice, deliberou conter-se.
- Então, a senhora, vivia muito triste?... perguntou ele.
- É como lhe estou a dizer, meu rico amo, a pobrezinha só o que fazia era chorar e falar na próxima chegada do marido!
- E esta? disse Gaspar consigo. Pois eu era esperado já por aqui?
- Ainda assim, acrescentou o criado; o que às vezes a consolava era a companhia do menino, mas este foi para o colégio, e...
Gaspar não se animava a dar mais uma palavra; enfim perguntou:
- E ela ama muito essa criança?
- Se ama o filho? Oh! meu amo, adora-o! E a graça é que o diabinho se parece deveras com ela e com vossemecê!... é como se o estivesse a ver neste momento, com aquela cabecinha muito redonda, os olhos muito pestanudos e os beiços muito vermelhos, a dizer-me:
"Jacó! Jacó! olha que te bato!" E corria a bater-me nas pernas com a mãozinha fechada!
E o velho, disse ainda, a limpar uma lágrima:
- Que bela criança!... Não se ria vossemecê destas cousas, mas é que a gente, quando vai ficando inútil, como eu, toma um não sei quê pelas crianças, que é mesmo uma esquisitice! Fica-se tolo, babão, por aqueles diabinhos!...
- Você não tem algum neto, Jacó?
- Qual, meu senhor! essa fortuna não é para este pobre velho; o meu Ernesto morreu aos quinze anos, e depois disso não tive mais parentes, nem felicidade completa...
E o desgraçado chorava.
- Está bom! está bom! atalhou Gaspar; deixemo-nos de recordações penosas e vá arranjar-me charutos.
O criado saiu, vergando sob os seus sessenta anos e arrastando pacificamente os seus sapatões de bezerro, engraxado. O filho do coronel reparou então que havia na saleta uma biblioteca; colheu um Espronceda e leu distraidamente alguns versos. O velho voltou com os charutos, e perguntou se o amo queria jantar mesmo no quarto ou se resolvia a passar ao "comedor".
- Diga à senhora que faça como melhor entender, respondeu ele.
- D. Violante já está à mesa e conta que meu amo lhe fará companhia.
- Nesse caso, irei.
E Gaspar, sem saber por que, teve uma alegriazinha com descobrir que a sua misteriosa feiticeira se chamava Violante.
A sala de jantar era pequenita, alegre; paredes guarnecidas de aquarelas espanholas. Havia distinção no gosto que presidia à escolha dos móveis, e um certo perfume artístico na disposição dos bronzes e dos cristais. Sentia-se logo que ali palpitava um espírito caprichoso e romanesco.
Gaspar, mal entrou, correu a apertar a mão da sua benfeitora; e ela, sorrindo, felicitou-o pelo seu completo restabelecimento.
- Só à senhora o devo, que foi o meu bom anjo; e acho tão delicioso este sonho, que receio acordar...
- Acordará quando eu lhe disser francamente a situação em que nos achamos... Mas desde já o previno de que tenho um grande favor a pedir-lhe...
- Será minha maior ventura! Desde já...
- Não prometa ainda, porque a cousa é muito mais séria do que o senhor se persuade...
- Estou convencido, todavia, de que a senhora não exigirá que eu cometa algum crime ou alguma infâmia!...
- Quem sabe lá?... disse preocupada a bela mulher.
- Sei eu! aposto, arrisco tudo! Desde já prometo cumprir as suas ordens com a submissão de um escravo.
- O senhor é casado?...
- Não, minha senhora.
- Bem! então tudo se poderá arranjar... O senhor vai passar por meu marido.
- Como?...
- Daqui a pouco saberá. Jantemos primeiro, teremos depois tempo para conversar.