XVII - LEONARDO
Ultimou-se o negócio do comendador com Gabriel, e este recebeu o prometido convite para a tal quinta-feira. Haveria baile.
- É uma loucura o que vais fazer! observou-lhe Gaspar, quando o moço enfiava já a casaca. Convenho que Ambrosina seja uma interessante rapariga, convenho que seja bela, chego mesmo a concordar em que ela tenha espírito, e que a ames loucamente; digo e repito, porém, que uma menina, criada e educada pelo comendador Moscoso, não pode ser uma menina bem educada. O casamento, meu filho, depende principalmente da educação da mulher. Tu és o que se chama um bom partido; e ela, pelo que vejo, uma grande espertalhona. Não dou um mês a vocês dois para se amarrarem, e outro para te arrependeres!
- Mas, que diabo hei de fazer? Prometi ir ao baile!... Vá que cometesse com isso uma asneira, mas não é muito razoável querer remediar uma asneira com uma incorreção!... A verdade é que prometi ir. Ela, coitadinha! para obrigar o pai a convidar-me, que passos não teria dado...
- Bem se vê que tens vinte e um anos! Pois acredita nisso? Não percebes que, de todos ali, o mais interessado na tua ida é justamente o comendador, esse homem do dinheiro e da vaidade? Não percebes, Gabriel, que tu representas mil contos de réis, e que aquele velho especulador não te deixará passar impunemente por entre as unhas?!
- Não! isso não, coitado! porque ele nem sequer me conhecia!
- Mas conhece-te agora por intermédio da filha!
- Que juízo fazes dela, então?
- O juízo que faço de qualquer menina inteligente e mal-educada.
Nisto entrou o servente com uma carta para Gabriel.
- Alguma novidade?... perguntou Gaspar ao enteado.
- É uma comunicação misteriosa...
- Cedo principiam!
- Não traz assinatura... Lê.
E passou a carta ao outro.
Era isto:
"Meu amigo. Uma pessoa, que o estima deveras, aconselha-te todas as precauções: O senhor tem um rival formidável, que irá hoje à casa do comendador e não deseja vê-lo ao lado de Ambrosina. Não vá ao baile, se quiser evitar escândalo".
- Isso foi escrito por ela!... disse o padrasto com repugnância.
- Por ela?!
- Sim; para te obrigar a ir... Quer estimular-te o orgulho. Eu, no teu caso, servia-me dessa carta como pretexto para ficar em casa...
- Mas, se a amo!...
- É o que supões; porém a verdade é que mal a conheces.
Juro-te que...
- ... Que perdeste a cabeça defronte de uns olhos grandes, de uma boca engraçada e de uns cabelos bonitos; que te deixaste enfeitiçar pela garridice de uma rapariga viva que anda à procura de noivo rico, e supões afinal que tudo isso tem alguma importância!... Mas eu te afianço que perderás a cabeça do mesmo modo defronte de outros quaisquer olhos não menos feios, e que em breve, se te afastares de Ambrosina, te esquecerás dela para sempre.
- Duvido!
- Proponho-te uma cousa: metamo-nos num carro fechado, e vamos, antes de te apresentares no baile, espiar cá de fora os passos de tua apaixonada. Talvez colhamos disso alguns esclarecimentos.
- Está dito!
E às onze horas achavam-se os dois em caminho para a casa do comendador.
O sarau principiara às dez. Havia grande concorrência e muito luxo. Como fazia calor, dançavam somente nos sabes térreos do palacete, ao lado do jardim, com as janelas abertas, o que auxiliava à curiosidade dos dois espiões.
Ambrosina sobressaía dentre a multidão de pares como verdadeira rainha da festa. Irrepreensível de elegância e dispendiosa simplicidade, trajava um vestido inteiriço de cassa branca, cujas rendas e bordados de alto gosto pareciam beber a fria doçura das pérolas em que ela trazia agrilhoados cabelos e garganta. A justeza da roupa dizia lucidamente a flexibilidade das suas primorosas formas, fazendo destacar o contorno dos quadris, a volta das espáduas e a delineação rafaélica dos seios.
Nunca estivera tão encantadora. Gabriel não lhe tirava os olhos de cima, enquanto Gaspar bocejava ao fundo do coupé.
Ambrosina vinha de vez em quando à janela, e olhava para a rua com a impaciência de quem espera alguém que se demora.
- Conta comigo! dizia Gabriel, apertando as mãos uma contra a outra.
Mas, pouco depois parou à porta do comendador um carro de gosto distinto, puxado por bons cavalos, e em seguida apeou-se um cavalheiro alto, um pouco magro, elegante, barba parisense, lunetas escuras, cabelos muito rentes.
Ambrosina, ao reconhecer o carro, estremecera.
O recém-chegado produziu sensação ao entrar no baile.
O comendador foi recebê-lo com vivo interesse, e apresentou-o logo a vários grupos. Percebia-se que o novo conviva era estranho para a maior parte das pessoas que ali estavam.
Ambrosina não voltou mais à janela.
- Era por aquele maldito sujeito que ela esperava! considerou o pobre Gabriel, cheio de agonia.
O novo personagem de resto, dera o braço à filha do comendador, e percorria as salas. Ambrosina mostrava-se radiante de satisfação.
Dançaram depois uma valsa, acabada a qual, foram ausentar-se ao terraço, conversando.
Gabriel não podia do carro ouvir o que diziam, mas pelos gestos parecia que os dois conversavam animadamente.
Alguém foi para o piano e cantou; dançou-se depois nova quadrilha, depois uma valsa. E os dois conversavam ainda no terraço.
Gabriel arquejava.
Entretanto, o belo par de Ambrosina levantou-se, e conduziu pelo braço a sua dama para o jardim.
Gabriel espichou o pescoço, e viu afastarem-se os dois, a passo descansado, por entre as árvores frouxamente tocadas de luz. Havia iluminação em torno das estátuas e dos floridos canteiros.
O venturoso par ia desaparecendo cada vez mais.
Só Gabriel percebia ainda, de vez em quando, o vulto indeciso de Ambrosina, que alvejava por entre as moitas de roseiras.
Não se pôde conter por mais tempo; apeou-se do carro, com a necessária cautela para não acordar o padrasto que dormia sobre as almofadas, e daí a pouco penetrava no jardim do comendador por um portão que havia aos fundos da casa.
Ambrosina assentara-se afinal com o seu invejado par debaixo de um caramanchão; Gabriel, donde estava podia observá-los à vontade.
Falavam de amor os dois. Ela enlevada, e ele cheio de entusiasmo; o casamento entrava na conversação como assunto já resolvido.
- És minha vida! dizia o rapaz; és toda a minha esperança! Ardia por tornar a ver-te!
- Leonardo! murmurou Ambrosina. Olha que nos podem ouvir, meu amor...
- E a mim que importa? Não tenciono porventura ligar o meu destino ao teu? Não és quase minha esposa, ou mudarias tu de intenção durante a nossa ausência?
- Bem sabes que não, mas é que ainda somos apenas noivos, e tu me perturbas com essas palavras!...
- Não me recrimines, amada de minh’alma! Há tanto tempo que não estávamos a sós!... deixa que aproveite estes fugitivos instantes para te falar de nossa felicidade.
E Leonardo, puxando para si Ambrosina, passou-lhe o braço na cintura.
Ouviu-se em seguida estalar um beijo. Um? não; era a harmonia de dois: o dele e o dela.
Gabriel, com um doido arranco, afastou a moita de roseiras que lhe ficava em frente, e de chofre se precipitou entre ambos.
- Miseráveis! exclamou.
Houve nos dois amantes um espasmo de surpresa. Ambrosina em seguida soltou um grito, fugiu para a sala.
- Quem é o senhor?! perguntou Leonardo, medindo.
- Sou o homem que ama aquela mulher! respondeu este, pálido de raiva.
- O homem não: a criança! Já tinha noticias suas. Chama-se Gabriel, é rico, deseja casar com Ambrosina e...
- E não meço obstáculos quando quero realizar qualquer cousa!
- Bem; mas nada disso o habilita para dizer-me insolências. Chamo-me Leonardo Pires de Andrade, há muito amo Ambrosina; não sou tão rico como o senhor, mas antes de partir nesta minha última viagem, fui autorizado a pedi-la em casamento. O comendador cedeu-ma ontem...
- É falso!
- Contenha-se! O senhor está fora de si. Ambrosina já me tinha prevenido dos seus rompantes...
- Senhor!
E Gabriel deu um passo para o outro.
- Ela não o quer, continuou Leonardo; disse-me com franqueza. A mim, como homem de juízo cabe-me, todavia, evitar qualquer conseqüência má do passo imprudente que o senhor acaba de dar. No fim de contas, não tenho obrigação de explicar as minhas intenções; elas são conhecidas já da família de minha noiva. É a essa família que o senhor se deve dirigir para denunciar o que acabou de colher da sua espionagem. Boa noite, meu caro senhor!
E, dizendo isto, Leonardo afastou-se rapidamente.
Gabriel voltou ao carro, e entre soluços de dor e de cólera contou a Gaspar o ocorrido.
- Nada disso me surpreende. Era caso previsto. Creio que agora mudaste de intenção a respeito de Ambrosina...
- Amo-a cada vez mais!
- Ora! isso já passa de loucura!
- Talvez, mas é a verdade!
No dia seguinte, Gabriel leu, por um prisma de lágrimas, a participação do casamento de Ambrosina, que ela própria lhe remetera.
Seria efetuado daí a dois meses, fora da cidade.