XIX - AMO-TE! VEM!
Mas na semana seguinte, um novo desastre veio revolucionar ainda uma vez a casa. O comendador caíra prostrado por uma congestão cerebral, que lhe punha em risco a existência.
Andavam todos aturdidos. Ambrosina apresentava grande palidez, acompanhada de suspiros e olhares desesperançados. O comendador ia de mal a pior. Voltou logo a fazer-lhe companhia a família do negociante inglês. Do Reguinho e do Melo Rosa é que ninguém sabia dar notícias. Genoveva, essa conservava sempre a mesma inerte e carnuda resignação.
- Doutor, dizia o enfermo a Gaspar; não me abandone... O senhor não imagina a fé que me inspira!... Oh! incontestavelmente há intervenção da Providência em tudo isto!... Quem poderia calcular que eu viesse a ter, à cabeceira da minha cama, o filho do honrado velho que persegui tão covardemente durante a vida?... O Providência, acredito agora em teus desígnios!
- Bem! mas não esteja a mortificar-se... aconselhou o Médico Misterioso.
- Oh! o senhor deve estar plenamente vingado!... volveu o outro; salvou minha filha, e faz agora por também me salvar a mim... Fui mau! fui bastante mau; hoje, porém, arrependo-me de tudo, e principalmente de não haver protegido o casamento de seu enteado com Ambrosina... Tenho medo de morrer em semelhante situação!... Eram-me necessários mais alguns anos de vida, para poder deixar minha família amparada... O doutor não faz idéia do péssimo estado de meus negócios!
- Quem, ou o que, lhe fala agora em morrer, homem de Deus?..
- Nem eu sei!... mas sinto-me mal... falta-me já a memória... faltam-me até as palavras!... nem me lembra o que fiz hoje! Repare como tenho a língua presa... Só me lembro das maldades que cometi!...
Gaspar animava-o, dizia-lhe palavras consoladoras; mas o doente sacudia a cabeça com desânimo e fechava os olhos, gemendo.
Havia um grande mal-estar por toda a casa. A própria Emília, sempre alegre e brincalhona, nada conseguia com o seu bom humor. Gabriel falava em retirar-se; sentia-se já perfeitamente bom e não lhe convinha ficar ali.
Os olhos tristes do moço encontravam-se constantemente com os de Eugênia, e os dois ficavam a cismar.
Um dia, em que ela se encontrou mais desconsolada, Gabriel perguntou-lhe:
- O que tanto a aflige, minha amiguinha? o que a faz tão muda e pesarosa?...
- Para que me pergunta? disse ela; se não me pode dar nenhum remédio?... Meu gênio foi sempre este!... Nunca fui de expansões... Olhe, se promete visitar algumas vezes minha família, pode ser que, com a convivência, venha a contar-lhe os meus segredos; mas, por agora, não lhe direi uma palavra...
O moço ficou a pensar. Que estranho era o coração daquela rapariga!... Que mistério poderia haver naquela alma quase infantil?...
E Gabriel afinal partiu.
Ambrosina, ao se despedir-se dele, estendeu-lhe a mão expansivamente e disse-lhe, arrependida e cheia de mágoa:
- Não me fiquei tendo ódio... seja meu amigo; compreenda que sou eu menos culpada de tudo o que se passou entre nós dois!...
- Ah! se a senhora me amasse! se me houvesse compreendido!... exclamou o desgraçado.
- E pensa que não?... Só eu sei o que sofri por sua causa!...
Gabriel segurou-lhe as mãos.
- Então ainda me ama?! Responda!
- Mais tarde o saberá... por enquanto, ausente-se de mim... Adeus.
E fugiu.
Gabriel meteu-se lá fora no carro com o coração a saltar-lhe num grande alvoroço. Depois das palavras de Ambrosina, tudo em volta dele se alegrou e sorriu.
E pelo caminho de casa ia fazer cálculos de felicidade, mas a sinistra figura do doido aparecia-lhe nos sonhos como um demônio a cabriolar no paraíso.
- Ora! concluía ele; o essencial é que ela me ame!...
E estalava de contentamento quando chegou à casa.
No dia seguinte, o comendador expirou. Porém antes de morrer, encarregou a Gaspar de obter do pobre Alfredo o perdão do muito mal que lhe havia feito; e pediu ao marido de Ursulina, o esplenético negociante inglês que admitisse o infeliz como empregado no seu escritório comercial.
A morte do comendador dissolveu o grupo que se tinha formado em casa dele. O inglês e a família retiraram-se; Gaspar fez o mesmo, e a viúva mudou-se pouco depois, com a filha para o palacete da cidade.
Tratou-se do inventário e, com pasmo geral, chegou-se à conclusão de que o comendador, tão opulento em vida, nem só não deixara bens, como ainda ficara devendo duzentos contos de réis à praça.
Os credores caíram logo sobre a viúva e lançaram mão do que puderam. Só lhe ficou uma casinha no Engenho Novo, que havia sido comprada em nome da filha.
Mãe e filha mudaram-se para lá.
Ambrosina, porém, não se queria conformar com semelhante miséria.
- No fim de contas, argumentava ela, sou casada com um homem remediado de fortuna e não devo levar esta vida quase de privações. Não tenho culpa de que meu marido enlouquecesse. O curador faz-me dar uma mesada, que mal chega para acudir às primeiras necessidades! Sebo!
E parecia que ia repetir a frase do Reguinho.
A mãe ouvia-a com um ar tolo; tudo aquilo para a pobre mulher era negócio complicado.
Todavia, Gabriel, por esse tempo, freqüentava a família do Sr. Windsor.
Windsor é o negociante inglês, marido de Ursulina. Este inalterável homem tomara afeição a Gabriel, e via com bons olhos a inclinação de sua filha Eugênia pelo rapaz.
Gabriel aparecia-lhe regularmente duas vezes por semana, para o chá. Fazia-se então palestra à roda da mesa ou fazia-se música no salão.
Eram aqueles serões tranqüilos e confortadores. Eugênia, às vezes, cosia ou bordava, e Gabriel assentava-se ao lado dela, esquecido a olhar para o movimento da agulha ou para os olhos da rapariga, abaixados sobre a costura.
- Creio que já lhe mereço alguma confiança, disse-lhe ele em uma dessas vezes; por que não me revela os seus segredos?...
- Não os tenho... respondeu ela, sem levantar os olhos.
- E contudo, observou Gabriel, há muito de misterioso e triste em todos os seus gestos... Diga-me a verdade!... às vezes uma revelação suaviza os nossos pesares...
- Não, nunca lhe direi uma palavra... é exato haver cá dentro um motivo de desgosto, mas esse motivo nunca será denunciado por mim... Eu o confessaria francamente, no caso que o senhor o descobrisse... porém, declará-lo eu... isso nunca!
- Minha amiga!...
- Não insista. Aqui, onde me vê, feia e pobre, também tenho o meu bocadinho de orgulho...
- E se eu adivinhasse o seu segredo? se eu descobrisse o que a faz mergulhar assim nessas indefinidas tristezas?... Diga-me: confessaria tudo?
- Sim, já disse que sim...
- Mas eu tenho receio de enganar-me... Às vezes supomos distinguir aquilo que desejamos ver, e essa ilusão é uma felicidade que se desfaz ao tentarmos alcançar a bela miragem!...
Gabriel calou-se por algum tempo; depois, aproximou mais a sua cadeira da de Eugênia, debruçou-se para ela e acrescentou quase em segredo:
- Se soubesse como sofro!... nem mesmo sei explicar o que sinto... São desejos vagos e incompletos, um querer sem vontade, um desejar sem ânimo, um aspirar sem destino e sem coragem. E contudo, sinto que me falta alguma cousa... Se me perguntarem o que é não saberei responder; mas sinto necessidade de dedicar-me a qualquer idéia, a qualquer cousa. Preciso de um ideal que ocupe a minha atividade, que exija os meus sacrifícios, que me anime, que me estimule. Ah! E venham falar-me ainda nos encantos da mocidade, nos risos dos vinte anos... Não! nada disso existe! Sou moço, rico, tenho vigor e saúde, e, no entanto, sofro, sofro muito! sinto a existência pesar-me sobre as costas como um castigo!
Eugênia, que o ouvia de cabeça baixa, ergueu-a docemente, com um sorriso.
- É justamente porque nada lhe falta, que o senhor se aborrece e não aprecia a existência... disse ela. Tivesse, como outros, de trabalhar para viver, e os seus dias correriam alegres e ligeiros. Como quer o senhor gostar da existência, quando nem sequer conhece?... A vida consiste no esforço, no trabalho, na dedicação e no sacrifício. O senhor nunca experimentou nenhum desses gozos, que entretanto são os únicos verdadeiros. Quer ouvir um conselho?... Ame e trabalhe, dedique-se a alguém e a alguma cousa, constitua família e forme a sua responsabilidade de homem. Sem essa resolução, o senhor há de sentir sempre o mal de que se queixa, e nunca poderá ser feliz.
- Bem! Pois vou então falar-lhe com toda a franqueza; vou abrir-lhe o meu coração, para que a senhora escolha e guarde o que nele houver de aproveitável, e lance fora o resto...
Eugênia estremeceu e largou o trabalho que tinha entre mãos. Gabriel aproximou ainda mais a sua cadeira, e fitou os olhos da rapariga, postos agora tranqüilamente à espera.
Estavam transparentes, infinitamente doces, e via-se no fundo deles brilhar o sorriso de uma esperança.
Houve entre os dois moços um idílio instantâneo e mudo, precursor do "Amo-te!" sagrado.
Nesse momento, porém, entrou o Sr. Windsor, que os buscava para a cerimônia do chá.
Gabriel prometeu a Eugênia fazer-lhe no dia seguinte a suprema revelação prenunciada. Iria visitá-la expressamente para este fim.
Mas, nessa mesma noite, ao entrar em casa, o criado entregou-lhe uma cartinha perfumada e cor-de-rosa.
O moço abriu-a, e leu:
"Gabriel. Não queria procurar-te. Tencionava nunca mais te ver, nem te falar. Não posso! A porta do jardim ficará aberta durante a noite. Às onze e meia já todos os de casa estarão recolhidos... Amo-te! Vem!
Ambrosina"
Gabriel leu o bilhete de Ambrosina, uma, quatro, vinte vezes.
Aquelas duas últimas palavras, breves, quentes e palpitantes, faiscavam-lhe no cérebro: "Amo-te Vem!"
- Que harmonia! Que música! Como lhe soavam agradavelmente ao coração aquelas notas feiticeiras! "Amo-te! Vem!"
Um paraíso em duas palavras! Um mundo de delícias! Um rosário de venturas!
- Como sou feliz! Como sou feliz! exclamava ele, incendiado pelas duas palavras de fogo.
Possuir Ambrosina! amá-la e ser amado por ela! tê-la ao alcance da mão, ao alcance dos braços, ao alcance da boca!... Oh delírio! Oh supremo gozo!
Gaspar achava-se nessa ocasião à cabeceira de um doente em Petrópolis, e a Gabriel quadrava esta circunstância, porque lhe permitia saborear mais à vontade aquele alvoroço do seu amor. Era a primeira vez que não sentia vontade de comunicar um segredo seu ao padrasto. É que Gaspar, com certeza, acharia mau tudo aquilo, e privar-se Gabriel da felicidade sonhada, seria privar-se da própria vida.
Despiu-se cantarolando; acendeu um charuto e deitou-se de costas na cama, a olhar para o teto, e a ler no espaço estas palavras:
"Amo-te! Vem!"
Eram escritas por ela... por Ambrosina! por aquela bela mulher de cabelos perturbadores, de olhos ardentes e sombrios, de boca vermelha e dentes brancos! Eram dela! E nessas duas palavras estava toda a sua alma e estava todo o seu sangue!
Sim, era Ambrosina, que lá da sua alcova lhe bradava com delírio: "Amo-te! Vem!"
E as duas palavras o invadiram e se gravaram no espírito dele, como dois pontos luminosos, duas estrelas brilhantes, que o iluminavam todo por dentro.
E as duas estrelas iam despejando-lhe no ânimo d’lma uma aluvião de sorrisos de amor, de beijos e de abraços apertados. E quanto mais despejavam, mais tinham elas que despejar. Eram novas carícias, que se atropelavam, que se confundiam, tomando-lhe a respiração, escaldando-lhe os sentidos.
Gabriel soprou a vela, e fez por adormecer. Aninhou-se na cama, enterrou a cabeça nos travesseiros; mas as duas irrequietas estrelas lá estavam a luzir, a luzir, a repetir: "Amo-te! Vem - Amo-te! Vem!"
E de novo lhe perpassavam pelo espírito, em uma torrente vertiginosa, todos os encantos de Ambrosina; interminável e palpitante desfilar de ombros despidos, cabelos soltos, peitos trementes, olhos requebrados e lábios insaciáveis. E tudo isso lhe rodava por dentro pondo nele alucinações de febre e fazendo-o desabar fundo num inferno de desejo vivo, ou alçar-se para o nirvana de um inconscientismo de loucura; mas aqui ou ali, no vermelho ardor da extrema excitação sensual, ou no opalino vácuo do alheiamento produzido pela fadiga da insônia, lá estavam as duas implacáveis palavras de fogo, a saltar num frenesi macabro, a cuspir-lhe na pólvora do sangue faíscas de luxúria.
"Amo-te! Vem!"
Gabriel queria reagir, lutar; voltava-se na cama, procurava amarrar o espírito a outros assuntos; quando, porém, dava por, si via-se inda uma vez calculando como não seria bom tomar Ambrosina nos braços, cobri-la de beijos, amá-la toda inteira, de um só trago como se o desejo dele fosse um mar em que ela mergulhasse nua.
- Diabo! exclamou, saltando da cama. Não posso dormir!
Foi à janela e abriu-a.
- O quê?! pois será possível que esteja amanhecendo?!...
O céu branqueava às primeiras irradiações do sol. A natureza parecia ainda estremunhada de sono. As árvores espreguiçavam-se bocejando, os pássaros cumprimentavam o dia com um hino matinal.
Gabriel olhou vagamente para o espaço. A insondável tranqüilidade da aurora invadiu-lhe o espírito, deixando-lhe a porta escancarada; e logo uma loura imagem, castamente risonha, entrou sem-cerimônia por ele, a perguntar, cruzando graciosamente os braços:
- Então, meu amigo, quais são as belas cousas que o senhor ficou de dizer-me hoje?... Vamos! Eu de cá não saio sem saber quais são elas...
- Eugênia! exclamou Gabriel, como se a pobre menina estivesse realmente defronte dos seus olhos.
E fechou a janela para não a ver, tanto lhe atormentava a consciência aquela meiga e resignada figura de cabelos louros.
Em vão o esperaria Eugênia à noite desse dia em casa, costurando a um canto da sala de jantar; as tais lindas cousas que Gabriel lhe tinha a dizer, ela nunca chegaria a ouvi-las.