XXI - ESPÓLIO DO COMENDADOR
Genoveva, no outro dia, deu por falta da filha.
Ambrosina deixara sobre a cama um cartão seu com as seguintes palavras:
"Se me desejar ver, pode procurar-me nas Laranjeiras, rua tal, n. tal". Dizia o número da casa e o nome da rua.
A pobre mãe esteve por perder a cabeça. Pois seria concebível que Ambrosina lhe fugisse, daquela forma, de casa?!...
Vestiu-se, saiu, tomou um tilburi, e deu ao cocheiro o número indicado.
Veio abrir uma francesa:
- Voulez-vous parler à madame? perguntou esta, Genoveva abaixou os olhos e disse:
- Quero falar à minha filha...
A francesa retirou-se, e voltou logo para abrir a sala.
A viúva do comendador sentiu-se constrangida em meio da opulência arrebicada e impudica daquela instalação; tapetes, móveis, quadros, tinha tudo um certo caráter leviano, certo ar de vida de atriz moça e bonita, que tresandava a escândalo.
Daí a pouco apareceu Ambrosina. Vinha um tanto abatida, porém de bom humor.
- Então o que quer dizer tudo isto?! perguntou-lhe a mãe.
- O que vê!...
- Mas com quem moras aqui?
- Com Gabriel.
- Teu amante!...
- Sim, porque não pode ser meu marido.
- E por que então não te casaste com ele?
- Sei cá! porque me casei com outro! Sabia lá que ali estava um doido furioso?...
- E este rapaz tenciona acompanhar-te sempre?
- Ainda não pensei nisso.
- E se ele te abandonar?
- Que abandone!
- E sabes tu o que isso será?
- Perfeitamente, e não falemos mais em tal. A "senhora ponha-se à vontade; dê-me a sua capa e o seu chapéu. Fica conosco para o almoço, não?
- Não! não posso ficar; não desejo encarar com o teu amante...
- Ainda está dormindo.
Gabriel, com efeito, dormia, fatigado pela felicidade da noite. Fora uma singular noite de núpcias. Ambrosina era virgem, mas sabia já, por instinto, por índole, por inata perversão, todos os segredos do amor sensual. Entregou-se com arte, com talento. Ele, porém, amou-a com toda a dignidade de um noivo; amou-a convictamente, sentindo orgulho em possuí-la, cercando-a de ternuras respeitosas e de solicitudes de amigo.
Supunha-se o infeliz deveras amado e sentia-se pronto a depor nas mãos da amante todas as suas esperanças e todo o seu futuro.
- O Leonardo, calculava ele, mais cedo ou mais tarde, desaparece, e eu caso-me com Ambrosina. Ela será minha esposa, minha família, a mãe de meus filhos!
Foi com estas palavras, repetidas pela filha, que Genoveva serenou um pouco e prometeu, ao retirar-se, freqüentar a casa de Gabriel.
Entretanto, a pobre mulher, tempo depois, curtia o tédio do seu isolamento a aviar uma costura que tinha em mão, quando a campainha do jardim deu sinal.
Foi ela mesma abrir. Era o Alfredo, o empregado público demitido.
Estava outro o diabo do homem. Desde que Gabriel o socorrera, e o sr. Windsor, a pedido do comendador, o empregara no seu escritório comercial, voltaram-lhe os antigos hábitos de ordem e de asseio. Já não era o mesmo Marmelada; vinha escanhoado, com a camisa irrepreensível, bota engraxada e a sobrecasaca limpa.
Genoveva recebeu-o com uma amabilidade triste e compungida. Depois das extremas palavras do comendador a respeito do pobre viúvo de Ana, ela o tratava com atenção quase religiosa, como quem cumpre um dever sagrado. Tinha-lhe estima e respeito, gostava de vê-lo com aquele ar austero e metódico, a falar pausadamente sobre assuntos sancionados pela moral pública.
- Sente-se para cá, senhor Alfredo. Aí corre muito vento; pode fazer-lhe mal... Dê-me o seu chapéu. Eu vou trazer-lhe uma xícara de café.
Alfredo agradecia, limpando com o lenço o suor da testa. Desculpava-se por estar dando incômodo, e queixava-se do calor.
- Ah! não se pode respirar! confirmava Genoveva, assentando-se defronte da visita.
E tomando uma posição mais descansada:
- Ora, até que finalmente o senhor Alfredo se lembrou de aparecer aos amigos!...
Ele estava sempre ocupado! O serviço do senhor Windsor não lhe deixava pôr pé em ramo verde; mas agora tratava-se de um negócio um tanto melindroso... Sim! a cousa era delicada! era!
Genoveva assustava-se.
- Que notícias me dá a senhora de sua filha e do Gabriel?...
- Uma desgraça, senhor Alfredo! uma verdadeira desgraça! Parece que temos má estrela; nunca vi assim uma enfiada de caiporismos! O senhor já sabe que o Gabriel me carregou com a pequena?...
Desconfiava disso, minha senhora.
- Pois é exato...
E Genoveva contou minuciosamente o ocorrido.
- O que lhe posso afiançar, disse Alfredo, é que aquilo é um rapaz de conta, peso e medida. Creia, D. Genoveva, que, se ele não se casa com a senhora sua filha, é porque a senhora sua filha é casada...
- Não é dele que tenho receio, senhor Alfredo, é dela! é daquela cabecinha de vento, que não pensa no dia de amanhã. Ah! quando me lembro que posso ficar totalmente desamparada, sinto vontade de morrer!...
E Genoveva tinha lágrimas a espiar-lhe pelo canto dos olhos.
- Sossegue, minha senhora, não há de ser assim. Deus não permitirá semelhante cousa!...
- Ora, o quê! disse a viúva com desconsolo. Agora tudo são rosas para ela; mas, em breve, as cousas mudarão... Como sabe o senhor, com a morte do meu defunto comendador, ficamos sem nada; só nos deixaram por muito favor, esta casinha, estes trastes e uma escrava, tão velha, que bem pouco terá de vida. Comíamos com a mesada que o curador nos entregava por parte de meu genro. Ora, depois que Ambrosina se meteu com o Gabriel, foi-se a mesada, e eu... veja o senhor isto!... eu sujeitar-me a receber uma pensão correspondente das mãos do amante de minha filha!
E Genoveva concluiu, muito comovida:
- É duro! é duro, senhor Alfredo, para quem estava habituada a passar de certo modo e a não conhecer necessidades!
- Mas o que quer a senhora? disse o viúvo, em tom de condolência. O que ninguém pode negar é que houve em tudo isso uma grande dose de fatalidade. Quem poderia esperar que o Leonardo enlouquecesse, e desse modo inutilizasse a pobre menina para outro casamento?... Ela, é moça, bonita, instruída; pelo jeito gostava do Gabriel, que, de sua parte, é rico e um rapaz às direitas; encostou-se a ele. Se as nossas leis fossem outras, os dois se casariam; mas as nossas leis não consentem... Queixe-se de nossas leis, Sra. D. Genoveva!
- Eu me queixo é da sorte, senhor Alfredo. Olhe que sempre somos muito caiporas!.
- De hora em hora, Deus melhora! sentenciou gravemente o viúvo. Não desespere, D. Genoveva, não desespere! Quem mais do que eu teve motivos para perder o ânimo?...
E Alfredo levantou-se. Eram horas de se ir chegando...
- Então o quê, já vai? Que pressa!...
- Estou já informado a respeito do Gabriel...
- Mas, era só isso o que o senhor queria saber? Não disse também que tinha uma comissão delicada?...
- Ah! sim, mas fica tudo resolvido com o que a senhora me declarou.
- Meu Deus! quanta reserva!... Por que não se abre por uma vez, senhor Alfredo?... O senhor assusta-me!
- Bem, nesse caso, vou falar-lhe com franqueza.
E Alfredo tornou a sentar-se.
- Desde que me acho empregado na casa do senhor Windsor, confidenciou ele, tive a fortuna de merecer, tanto deste como de sua família, toda a confiança e até estima. Ora, eu, que sempre fui reconhecido aos meus benfeitores, tornei-me para aquela gente um amigo dedicado e sincero. Por outro lado, devo grandes obrigações ao Gabriel, que foi quem me tirou da miséria e do abandono em que vivia. Pois bem, depois daqueles tristes acontecimentos na noite do fatal matrimônio da senhora sua filha, Gabriel teve ocasião de conhecer a D. Eugênia, filha mais velha de meu patrão, e desde logo nasceu entre os dois moços uma forte simpatia, que em breve se transformava em amor. Creio que chegaram a falar em casamento... Tudo isto, como vê a senhora, é muito natural e nenhuma conseqüência má teria, se não fosse o Gabriel haver passado a freqüentar regularmente a casa do patrão, avivando desse modo, no coração de D. Euzênia, as esperanças que ele próprio lá plantara...
- E daí?...
- Daí, é que a pobre menina se habituou a vê-lo, a falar-lhe, naturalmente tiveram de parte a parte os seus sonhos de felicidade; mas de repente, Gabriel desaparece, D. Eugênia, a principio apenas ressentida, foi pouco a pouco se entregando a uma tristeza profunda e doentia, até que ultimamente lhe sobreveio tosse acompanhada de febre, e ela, coitadinha! não come, dorme muito mal e há dois dias, enfim, que está para decidir!...
Genoveva olhava-o com um ar aflito.
O patrão ontem chamou-me em particular, e disse-me com os olhos cheios de água: "- Alfredo, estou com medo de perder minha filha mais querida! O médico declarou já que ela só o que tem é muita debilidade e melancolia, mas que pode vir a ser, de um momento para outro, atacada do peito. Ora, eu bem sei que a Eugeniazinha está desgostosa com a ausência do Gabriel... Tu me falaste várias vezes nesse rapaz e sempre lhe encareceste as qualidades... Pois então vai por aí; indaga a respeito dele, e vê se trazes alguma boa notícia para minha filha... Eu conheço bem aquela cabecinha!... Eugênia é muito orgulhosa; é muito capaz de deixar-se morrer, sem soltar uma queixa, nem derramar uma lágrima!..."
- Pobre menina! suspirou Genoveva.
- Eu fiquei sufocado com o que me disse o patrão, continuou Alfredo; mas, nesse mesmo dia, ao visitar D. Eugênia no se quarto, prometi que lhe havia de levar notícias do Gabriel. Ela, coitadinha! olhou-me com toda a calma e respondeu-me, sacudindo os ombros indiferentemente: "- Não, não é preciso... ele mora nas Laranjeiras com Ambrosina". Esta notícia tirou-me a luz dos olhos; não pude dar mais uma palavra, e cá estou para saber ao certo o que há!
- Pois D. Eugênia não se enganou, disse Genoveva, a olhar tristemente para a sua saia de paninho preto. É exato! Ambrosina mora com Gabriel...
Alfredo levantou-se de novo para sair.
- Foi uma desgraça!... repisava a viúva do comendador, acompanhando-o até à porta. Foi uma grande desgraça! Faça o senhor idéia da vida que não levo eu aqui entre estas quatro paredes!... Então é chegar a noite, meu Deus! fico tão triste, que me ponho a chorar até dormir. Ando nervosa!... não tenho ânimo de sair da sala de jantar, onde trabalho! Qualquer rumor faz-me ficar a tremer; ponho-me a cismar em quanta asneira me vem à cabeça! parece-me que vão aparecer ladrões para me matarem, ou suponho ver o espectro de meu defunto marido! Fico num estado de causar dó!
- Tudo isso são nervos, dizia Alfredo.
E aconselhava à Genoveva que todas as noites, antes de dormir, tomasse água de flor de laranja. Ele havia de aparecer-lhe mais amiúde...
- Venha! venha conversar à noite. Jogaremos a bisca... O senhor é só e não tem que fazer a essas horas... se há de ficar em casa, a olhar pro tempo, venha antes para cá dar dois dedos de cavaco. Olhe, venha amanhã!
- Pois sim, prometeu ele, e saiu.
No dia seguinte, voltou à noite.
Genoveva estimou muito esta nova visita. Os dois viúvos conversaram largamente sobre o passado, falaram de Ambrosina, de Gabriel e de Eugênia. Alfredo retirou-se às dez e meia, depois de tomar chá com torradas.
A pobre senhora não chorou essa noite e acordou menos nervosa no outro dia.
Alfredo repetiu a visita; ao fim do mês, já estas se tinham convertido, para ambos, em um hábito feliz. Genoveva dava-lhe chá todas as noites. Ele mostrava-se reconhecido a esse galanteria, levava-lhe quase sempre alguma gulodice.
Um dia reparou que Genoveva tinha um pescoço roliço e uns dentes muito sãos. "- Devia ter sido um mulherão no seu tempo!" considerou ele. E o fato é que, desde logo, principiou a notar que a viúva estava bem frescalhona. E, sem querer, demoravam-se os dois a olhar mais expressivamente um para o outro.
Chovia muito uma noite, e às onze horas a tormenta recrudesceu de modo atroz.
- Foi o diabo esta chuva! dizia Alfredo, a pensar no seu romantismo.
- Temos aí o assado do jantar e uns camarões frescos, lembrou Genoveva.
E, como a criada se retirava às oito horas, andou ela mesma à cozinha para preparar a ceia; depois, a conversar, a rir, estendeu a toalha, e foi buscar uma garrafa de vinho que guardava reliosamente ainda do seu tempo de casada.
- O defunto tinha ciúmes destas garrafas... observou a viúva, a limpar as teias de aranha de uma delas com o guardanapo. Foi presente que lhe veio da terra... Uma delícia!
Alfredo sentia-se bem.
A noite estava fria, a sala fechada, a toalha da mesa era de linho claro e cheirava aos jasmins da gaveta, a fritada de camarões enchia o ar de um aroma quente e picante.
- E a verdade é que tenho bom apetite! confessava Alfredo, a abrir com mil cuidados a velha garrafa do defunto comendador.
- Ora! a gente em companhia sempre é outra cousa! disse Genoveva, expandindo a sua satisfação.
E assentou-se, garrida, defronte do conviva.
A chuva continuava lá fora a cair, cada vez mais forte. Alfredo elogiava o vinho, saboreando-o a goles pequeninos e estalados. Genoveva enchia-lhe o prato.
- Então, já vai à nossa; para que tenhamos muitos dias de boa paz, como o de hoje! disse o viúvo, a erguer o cálice, que cintilava à luz do petróleo.
- A nossa! repetiu Genoveva, bebeu, saculando as bochechas.
O tempo passava-se. Alfredo reparou que já era mais de meia-noite, e que a chuva ainda não havia cessado.
- O verdadeiro é ficar aqui mesmo por hoje. Seria imprudência arriscar-se agora por este tempo... alvitrou a mãe de Ambrosina, com as faces coradas.
Alfredo lembrou vagamente os vizinhos; sempre havia más línguas, que em tudo achavam pretexto para murmurar!...
- Ora! desdenhou Genoveva. Estou velha!
E mudando de tom:
- Amanhã é domingo, o senhor pode levantar-se mais tarde, e ninguém reparará nisso...
Alfredo concordou alegremente. Sentia-se reanimar por aquele velho vindo do Porto. Acudiam-lhe palavras de bom humor, brilhavam-lhe os olhos, o sangue despertava-se-lhe nos membros martirizados pela vida sedentária; tinha fogo na voz e, todas as vezes que se dirigia à companheira, chamava-lhe a atenção, passando-lhe os dedos pelo braço carnudo.
Genoveva não reparava que os pés de Alfredo estavam havia meia hora encostados aos dela, e que aquilo que a boa senhora tinha junto ao joelho, não era a perna da mesa, e sim a dele.
A garrafa ficou vazia. A viúva do comendador levantara-se para fazer a cama do hóspede na sala de visitas.
Alfredo, fora dos seus hábitos, fumou três charutos, e em pouco se recolhiam ambos, cada um para o seu lado.
Mas a cama do hóspede, apesar de desveladamente, preparada com alvos e sedutores lençóis de linho, amanheceu intacta.
E daí por diante, Alfredo ficou sendo para Genoveva o que Gabriel era já para filha desta.