XXX - FULMINAÇÃO

Enquanto sucedia ao pobre Gabriel o que acabamos de ver, Melo Rosa tomava um carro de praça e mandava tocar à toda para Laranjeiras, correndo ao encontro de Ambrosina, que devia estar à sua espera, pronta a desferir o vôo, conforme entre si haviam combinado os dois velhacos.

E, estendido sobre as almofadas do carro, ia o Melo a pensar, sorrindo por entre as fumaças do seu charuto, na engenhosa estratégia que imaginara para livrar-se de Gabriel.

Àquelas horas estaria o toleirão a arrancar os cabelos, desesperado, a bordo de um escaler, em plena baía.

- Que tenha paciência! disse consigo o tratante. Piores cousas sofreram outros neste mundo!...

E passou a calcular o resultado do que havia urdido: Eram três horas. O vapor não levantaria ferro antes das seis... ele nada mais tinha que tomar Ambrosina e meter-se com ela a bordo. Gabriel seria posto em liberdade à meia-noite; e só então iria queixar-se à polícia; antes, porém, que esta se mexesse, já o Melo estaria longe!

E, de tão preocupado com estes raciocínios, não notou que o cocheiro do seu carro acabava, sem afrouxar na carreira, de ser substituído pelo nosso intrépido Jorge; como também que o carro já não levava a direção de Laranjeiras, porque no Largo da Lapa, em vez de subir para o Catete, tomou pela rua dos Arcos.

O Melo, completamente distraído, continuava de si para si:

- No fim de contas, tanto Ambrosina como o dinheiro do Gabriel, são duas fortunas bem ganhas, pois não se pode negar que muito arrisquei o pêlo para conquistá-las... Não fosse eu um sujeito esperto, que nenhuma dessas duas belas cousas me chegariam às mãos!...

Não devia, por conseguinte, preocupar-se em extremo com a fraudulência do caso, nem devia sentir remorsos: "Cada um puxa a brasa para sua sardinha!..." Gabriel que se queixasse da sorte, que havia feito de Melo um homem pobre... Além disso, o amor, o grande amor! tinha costas largas e era um pretexto magnífico para todas aquelas patifarias... Que diabo não se poderia explicar na vida pela "Paixão amorosa?..." Quantos exemplos não havia por aí de bons rapazes, que se deitavam a perder por causa de mulheres?... Todos perdoariam, desde que a sujeita fosse deveras bonita!... E muito mais que ele não precisava absolutamente de voltar ao Brasil... Para fazer o quê?... Paris! Paris o atraía como uma pátria desconhecida! em Paris, o Melo encontraria decerto mil modos de exercer a sua inteligência e o seu espírito!... Quanto à Ambrosina, essa nunca seria um estorvo, porque ele não era nenhuma criança e sabia lidar com toda a sorte de gado mulheril, fosse este o mais cornígero e bravio.

- Mas é verdade! exclamou, despertando das suas cogitações. Não chegamos hoje, ó cocheiro? Há boa hora que andamos!

O cocheiro não se deu por achado, e Melo reparou que nesse instante acabava de passar pelo matadouro e entrava na rua de Mariz e Barros.

- Para onde diabo vamos nós?! berrou ele a puxar o paletó de Jorge. Olha que vamos errados, animal!

- Não lhe dê isso cuidado! retorquiu o cocheiro. E fustigou os cavalos com terrível gana.

- Pára! Pára! Pára! gritava o rapaz, vendo que o conduziam por uma picada. Se não paras, chamo a polícia!

- Chame, se for capaz! respondeu Jorge, fazendo afinal parar o carro defronte de uma casinha de porta e janela.

E depois de apear-se, acrescentou, perfilando-se defronte do Melo:

- O senhor vai entrar imediatamente nesta casa, ou será denunciado à polícia como ladrão!

- Mas isto é uma emboscada! exclamou o tolhido.

- Justamente, confirmou o cocheiro com ar calmo. Eu sou o Jorge, que o senhor bem conhece, e estou cá por ordem do Dr. Gabriel e de D. Ambrosina, aos quais tencionava o senhor engazupar! Faça barulho, e veremos quem ficará do pior partido! Aí tem essa carta; leia! É de D.Ambrosina...

E o cocheiro entregou ao Melo uma carta.

- Canalhas! disse este, abrindo-a. Entendam lá semelhante escória! São todos da mesma força!

A carta dizia o seguinte:

"Melo,

"Sei de tudo o que sucedeu, não tenhas, porém, receio algum; tudo isso foi para salvar-te. Descobriram os nossos projetos, mas crê que os não sufocaram. Por ora, é necessário que te submetas ao que quer essa gente; julgam que eu parto hoje com Gabriel e te prenderão até à meia-noite. Gabriel não me acompanhará, todos suporão que eu fugi sozinha para a Europa; todos, à exceção de ti, que me irás procurar misteriosamente na avenida de Magalhães, chalé n. 5. Não te revoltes quando te prenderem e lança a culpa para mim.

"Amanhã estarás livre, e depois de amanhã estaremos de partida. Se alguém te falar a meu respeito, finge que me supões longe, e, logo que te aches desembaraçado, corre a procurar-me onde já te indiquei.

"Toda cautela é pouca! Pelo sim, pelo não, rasga a esta carta...

"Tua sempre - Ambrosina."

Miserável! disse afetadamente o Melo, depois da leitura; Enganou-me! fugiu!

E apeando-se por sua vez, acrescentou para Jorge:

- Estou à sua disposição...

O cocheiro fez soar a aldrava da porta, e entregou o carro a um negro que veio abrir; em seguida intimou com um gesto Melo Rosa a penetrar na casa, e entrou após dele, dando duas voltas à fechadura e recolhendo a chave.

Entretanto, vejamos o que por esse tempo fazia Ambrosina.

A ardilosa rapariga, logo que Gabriel saiu de casa e enquanto lá fora era o velhaco Melo Rosa rastrejado pelo pai de Laura, ficava com esta em completa independência na casinha de Laranjeiras.

- Não podemos agora perder um instante! disse ela à infeliz cúmplice, quando se acharam a sós.

- Mas, o que me cumpre fazer? perguntou Laura.

- Mudares de roupa e te dispores a partir imediatamente comigo...

- Partimos então hoje para a Europa?

- Tolinha! Isso seria o mesmo que nos metermos numa ratoeira, porque Gabriel, logo que se achasse livre, expediria um telegrama para o primeiro porto, e eu seria presa como criminosa. Talvez não o fosse... ele me adora a tal ponto, que não teria ânimo naturalmente de proceder contra mim; mas o mesmo não sucede a respeito do teu pai, que para se vingar por lhe haver eu roubado a filha, seria capaz de entregar-me à justiça! O que fazermos então?... Nada mais simples: Sairemos quanto antes desta casa, deixaremos aqui aquelas cartas que são - uma para teu pai, outra para Gabriel, outra para o Melo Rosa e outra para minha mãe, e tomaremos, não o paquete do Havre, mas sim um vapor brasileiro, que segue hoje mesmo para o norte. Com a leitura daquelas cartas e com a conclusão que provavelmente hão de tirar dos fatos, eles nos julgarão navegando para Europa e encaminharão para esse lado todas as suas pesquisas. Nós, entretanto, munidas de dinheiro como estamos, faremos simplesmente o seguinte: vamos daqui à agência, compramos duas passagens, metemo-nos a bordo, e às quatro horas estamos de partida. Para viajar dentro do Brasil, não precisamos de passaporte, porque somos brasileiras. Chegados, porém à Bahia, encerramo-nos em um hotel, até que tenhamos um paquete para a Europa. Então, o passaporte de Gabriel servir-nos-á admiravelmente... Tu te vestes de rapaz com essas roupas que levamos aí e ficarás sendo o Sr. Gabriel de Los Rios, meu marido, e continuarei a ser Ambrosina, tua esposa... Dessa forma, não seremos encontradas e, dentro de poucos dias, estaremos fora do alcance de qualquer perseguição.

Laura escutava tudo isto com um ar tímido e irresoluto. Batia-lhe o coração com ansiedade sob o peso de um terror indefinido.

Ambrosina compreendeu a comoção da pequena.

- Coitadinha! disse. Como és ainda ingênua!... Mas, não te assustes, não tenhas receio, que te não sucederá cousa alguma!... A culpa de tudo será lançada à minha conta!... Não tens de que te envergonhar, não foges com um homem, e sim comigo, que te conservarei pura!

E beijou-a.

- Porém, meu pai?!

- Mau! mau! não entremos nessas considerações! Não há tempo para isso. Deita o chapéu, que o carro não tardará aí.

Com efeito, pouco depois, rodava um carro à porta da rua.

- Pronto! Podemos ir! disse Ambrosina, tomando a sua bolsa, enquanto a outra fechava as janelas da casa. Depois saíram pelo portão do jardim, cuja chave escondeu aquela em certo cantinho entre as grades de ferro, como costumava fazer quando aí vivia com Gabriel.

A bagagem das duas raparigas constava de uma simples mala. Ambrosina fez o cocheiro colocá-la no banco da frente do carro, e assentou-se no de trás com a companheira.

Eram duas e meia da tarde.

Pouco falaram durante a viagem. Ambrosina ia preocupada, e a outra sobressaltada. Todavia, nenhum obstáculo encontraram na agência para obter os respectivos bilhetes de passagem, e às três e meia achavam-se instaladas, no mesmo beliche, a bordo de um dos vapores da Companhia Brasileira.

Por este tempo, como vimos Gabriel oferecia dinheiro ao homem do escaler para o largar em terra.

Só às quatro horas já passadas conseguiu meter-se em um carro e disparar para Laranjeiras.

Chegou à casa pouco antes das cinco.

Ao não encontrar as portas abertas, sentiu logo uma pancada no coração.

Bateu repetidas vezes, e ninguém respondeu.

Aquela sinistra tarde lhe parecia apressada e impaciente por chamar a noite; e o silêncio, o abandono, as primeiras sombras faziam um doloroso conjunto de tristeza, que mais funda enterrava a agonia no peito do desgraçado.

Gabriel passeou em torno da casa, como um faminto que ronda o celeiro defeso. Afinal, deu com a chave da porta do jardim e penetrou na antecâmara do seu dormitório.

- Cheguei tarde! exclamou ele, atirando-se a soluçar numa cadeira. A ingrata fugiu com aquele canalha! (E sentiu uma vontade brutal de estrangular o Melo Rosa). Ah! mas o vapor só sairá às seis e meia, e eu terei tempo de alcançá-los!

Dizendo isto, ergueu-se, disposto a sair de novo em perseguição dos criminosos.

Foi nessa ocasião que reparou para as quatro cartas, depostas sobre o toucador por Ambrosina.

Uma carta dirigida ao Melo Rosa?... pensou. É singular!

E, tomando a que a ele próprio era dirigida, avidamente a abriu, depois de acender um bico de gás, em vez de abrir as janelas.

Logo com ver as primeiras palavras, um estremecimento nervoso lhe percorreu o corpo.

Tornou a assentar-se, e concentrou-se na seguinte leitura:

"Gabriel,

"Perdoa-me. Sou muito menos culpada do que é do teu direito acreditares.

"Enquanto me foi possível consagrar-te todo o amor de mulher que em mim havia, dei-me inteira aos teus braços e à tua boca; fui tua nos teus longos dias de tédio, fui tua nas tuas ligeiras noites de gozo. Hoje, porém, que te amo mais talvez, tudo isso me é vedado por uma sinistra transformação que se apossou do meu ser, abalando-o até na sua própria essência. Este corpo que beijaste com tanto amor de homem, só tem hoje de mulher a forma primitiva, habita-o agora a alma de um demônio sexual e lúbrico, a quem desgostam as triviais carícias masculinas.

"Ë minha carne rebelde repugna agora o rijo contacto da musculatura dos hércules, e sorri ao doce e curvilíneo afago da linha dos ganimedes. A estrela que me viu nascer foi Vênus, mas Amor não é para mim um nu e meigo infante de olhos vendados, é uma frívola boneca, cheia de rendas e fitas.

"O Brasil, verde cru e úmido, sufoca-me; a sociedade em que nasci repele-me e eu rejeito a única que me abre o seio; o homem, qualquer que ele seja, enche-me de desprezo por mim e por ele. Todavia, entre esses duros e barbados dominadores da fêmea, eras tu, meu pobre amigo, o menos vaidoso, o menos covarde e o menos egoísta. Mas, nem por isso deixas de ser homem, e eu te fujo, para te não ultrajar com uma ternura que não pertencer ao teu sexo.

"Será aberração moral? Será depravação física? Seja o que for, não poderia eu de hoje em diante ficar ao teu lado, sem te enganar a todos os momentos. Fujo para longe de nós dois, na esperança de viver entre desconhecidos e separada de mim mesma. Uma multidão de estrangeiros é o mais completo isolamento em que eu conheço andar entre eles é vagar entre sombras de estátuas. Terás ao menos no teu abandono a consolação de que nunca pertencerei a outro homem; este corpo que te arranco das mãos jamais cairá nas garras de outro dono. Ah! isso juro-te eu pelos olhos e pelos cabelos de minha Laura! E adeus.

"O que aí vai escrito, é a expressão franca da verdade. Despejei o coração até ao fundo para ficar mais leve, e fugir-te mais ligeira; basta-me o preço que lá levo do teu dinheiro! Tens que me absolver com o teu perdão, ou me amaldiçoar com uma perseguição judicial. Não consultes para esse fim o teu coração, consulta só o teu espírito, e, conta, no primeiro dos casos, com o meu reconhecimento de bom camarada. - Ambrosina."

Gabriel soluçava ao terminar a leitura. Só então erguendo o rosto, deu com Jorge, que havia entrado sem ser percebido.

- Caramba! disse este. O senhor ainda aqui?! Pois não partiu?!

Gabriel respondeu com um gesto desabrido, e apontou-lhe para o toucador onde se achavam as cartas.

- Pois o tal Melo está seguro até à meia-noite! acrescentou o cocheiro, tomando a carta que lhe era dirigida. Mas o senhor dessa forma não pilha o vapor!...

Gabriel não respondia, chorava encostado a um móvel, com a cabeça escondida nos braços.

Jorge abriu à carta, sobressaltado por ter reconhecido a letra de Laura.

É proporção que lia, uma terrível palidez ganhava-lhe o semblante. Os olhos foram-se-lhe dilatando com uma expressão de espanto e desespero, os lábios se contraindo, as ventas se distendendo, até que da fronte lhe começou a porejar o frio suor das grandes agonias.

De repente, passando da palidez a uma vermelhidão apoplética, escancarou a boca com um bramido de dor, e caiu de borco sobre o soalho.

A casa tremeu, como se houvesse desabado ali no chão um colosso de bronze.

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