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A Nova Califórnia
Recordações do Escrivão Isaías Caminha
O Triste Fim de Policarpo Quaresma
Recordações do Escrivão Isaías Caminha

III

"Os antigos bebiam pérolas dissolvidas em vinagre. Não eram lá de gosto muito fino e a extravagância nada significava. Eu bebo a verde esmeralda sadia, emblema da mater Natureza, num copo de Xerez. Em vez da pérola mórbida, doença de um marisco, no acre vinagre, bebo o verde dos prados, a magnífica coma das palmeiras, o perfume das flores, tudo que o verde lembra da grande mãe augusta!"

Lembrei-me no dia seguinte dessa frase que o Raul Gusmão, um jovem jornalista, da amizade do Laje da Silva, pronunciou solenemente devagar no botequim do teatro, enquanto nos servíamos de bebidas. Disse-a com a sua voz fanhosa, sem acento de sexo e emitida com grande esforço. Falar era para a sua natureza obra difícil. Toda a sua pessoa. se movia, se esforçava extraordinariamente; todos os seus músculos entravam em ação; toda a energia da sua vida se aplicava em articular os sons e sempre, quando falava, era como se falasse pela primeira vez, como indivíduo e como espécie. Essa sua voz de parto difícil, esse espumar de sons ou gritos de um antropóide que há pouco tivesse adquirido a palavra articulada, deu-me não sei que mal-estar, que não mais falei até à sua despedida. Tive medo de que me fosse preciso empregar o mesmo esforço, que a minha palavra custasse também aquela grande dor já olvidada e vencida pela nossa espécie; e fiquei a ouvi-lo respeitosamente, tanto mais que nos tratou, a mim e ao padeiro, com tal desdém, com tal superioridade que fiquei entibiado, esmagado, diante do retrato, que dele fiz intimamente, de um grande literato, universal e aclamado, espécie de Balzac ou Dickens, apesar dos seus guinchos de Pithecanthropus.

Falava e não nos olhava quase; errava os olhos-os olhos pequeninos dentro de umas órbitas quase circulares a lembrar vagamente uma raça qualquer de suíno-errava os olhos, dizia, pelo pátio do teatro, e quando nos fixava trazia uma expressão de escárnio que ele mantinha com um razoável dispêndio de energia muscular. Veio ter a nossa mesa por instâncias do Laje da Silva. Ia passando um pouco afastado, quando o meu companheiro lhe correu ao encontro e com os maiores rogos, o trouxe para a mesa. Apresentou-nos e perguntou depois:

-Que toma, doutor?

-Nada.

-Oh! Alguma coisa... Um licor... Um conhaque?

-Vinho. Venha lá um vinho! Hoje não há mais vinhos... O senhor, acrescentou, voltando-se para mim com o seu ar fingidamente insolente; o senhor porventura dá-me noticias dos vinhos de Esmirna e de Quios?

Desviou o rosto sem esperar a resposta, tirou uma preguiçosa fumaça do charuto e pôs-se a olhar pausadamente o teatro, alçando a vista às vezes até à varanda; e, por fim, cheio de insolência e com aquela voz de parto difícil, chamou o caixeiro e encomendou meio cálice de peppermint e uma dose de Xerez. Simulando não perceber o nosso espanto, fez algumas considerações sobre os vinhos antigos, confrontando-os com os modernos, no sabor, na cor e no preparo, com um exato conhecimento de ambos. Vieram-lhe as garrafas e o jornalista, pegando na colherzinha com dois dedos e estendendo os outros de sua mão polpuda, abacial, como ma qualificou mais tarde, misturou ritualmente o verde peppermint no Xerez e foi por ai que disse: "Os antigos"...

Diante dele, dos seus gestos, das suas palavras, a impressão das mulheres, da agitação do teatro, apagou-se-me completamente. Ele resumiu-me o teatro, e fiquei com este encontro tão indelevelmente gravado que ainda agora, ao traçar estas linhas, estou a vê-lo erguer-se da cadeira com visível esforço, ficar um instante parado junto a nós, com o alentado corpanzil encostado à bengala vergada, dizer cheio de profundo aborrecimento - como isto é feio! - para então se afastar por fim, vagarosamente...

Mal saiu, pedi pormenorizadas informações ao Laje da Silva. Nos confins da minha aldeia natal, eu não podia adivinhar que o Rio contivesse exemplar tão curioso do gênero humano, uma desencontrada mistura de porco e de símio adiantado, ainda por cima jornalista ou coisa que o valha, exuberante de gestos inéditos e frases imprevistas. Laje da Silva, porém, só sabia que ele tinha a Aurora à sua disposição, jornal muito lido e antigo, respeitado e que, no tempo do Império, derrubou mais de um ministério. Escrevia nos jornais; era o bastante. E essa sua admiração, se era de fato esse o sentimento do padeiro, pelos homens dos jornais, levava-o a respeitá-los a todos desde o mais graduado, o redator-chefe, o polemista de talento, até ao repórter de polícia, ao modesto revisor e ao caixeiro de balcão. Todos para ele eram sagrados, seres superiores ou necessários aos seus negócios, pois viviam naquela oficina de ciclopes onde se forjavam os temerosos raios capazes de ferir deuses e mortais, e os escudos capazes também de proteger as traficâncias dos mortais e dos deuses. Laje não lhe conhecia as obras, nem mesmo os artigos e ficou satisfeito que um outro conhecido seu viesse sentar-se sem cerimônia alguma à nossa mesa, obrigando-me a não lhe fazer mais perguntas sobre o Pithecanthropus literato. Era o Oliveira - não me conhece? O Oliveira, do O Globo!... tão conhecido!... Oh!

O padeiro ofereceu-lhe alguma coisa e perguntou amavelmente o que havia de novo.

- Uma inundação no Norte.

- No forte São Joaquim, no Purus.

- Perdão! fiz eu muito colegialmente. O forte São Joaquim não fica no Purus...

O Oliveira olhou-me com alguma raiva e eu tive que comprimir a alegria colegial do quinau. Mas a sua raiva foi breve; o repórter Oliveira procurou uma saída conveniente para a sua ignorância numa critica larga e patriótica:

- Esta nossa geografia anda tão baralhada... O Governo não cuida nessas coisas. É só política e "comidelas"... Tudo come... Uma vergonha! Do que o pais precisa não cuidam... O senhor com certeza não conhece o rio das Capivaras?

- Não, senhor, fiz satisfeito por mostrar a meu turno a minha ignorância.

- Pois é um rio importante e nenhuma geografia dá! Eu o conheço porque nasci perto, senão... Nós não temos governo...

De manhã, pus-me a recapitular todos esses episódios; e sobre todos pairava a figura inflada, mescla de suíno e de símio, do célebre jornalista Raul Gusmão. O próprio Oliveira, tão parvo e tão besta. tinha alguma coisa dele, do seu fingimento de superioridade, dos seus gestos fabricados, da sua procura de frases de efeito, de seu galope para o espanto e para a surpresa. Era já o genial, com quem viria travar conhecimento mais tarde, que me assombrava com o seu maquinismo de pose e me colhia nos alçapões de apanhar os simples. E senti também que o espantoso Gusmão e o bobo Oliveira me tinham desviado da observação meticulosa a que vinha submetendo o padeiro de Itaporanga. Achava extraordinário que um varejista de um vilarejo longínquo cultivasse e mantivesse amizades tão fora do seu circulo; não se explicava bem aquele seu norteio para os jornalistas, a especial admiração com que os cercava, o carinho com que tratava todos.

No teatro e na rua, cumprimentou mais de uma dezena deles e apontou-me, sem lhes falar, uma dúzia de outros. É de tal jornal diário, dizia; é de tal semanário; "faz guerra, faz marinha"... Conhecia minuciosamente toda a vida jornalística. Informava-me sobre os nomes dos redatores, dos proprietários, dos colaboradores; sabia a tiragem de cada um dos grandes jornais, como a de cada semanário de caricaturas... Havia nisso uma mania pueril ou o que era? Não se manifestava homem de leituras, político ou dado às letras; não lhe senti a mais elementar preocupação intelectual; todo ele me pareceu convergindo para os negócios, para as coisas de dinheiro, especulações... Por isso, a sua jovialidade e sociabilidade não impediram que, aqui e ali, repontassem em mim alguns propósitos sobre a sua honestidade.

Houve um fato que tornou um pouco mais consistentes as fluídicas suspeitas que alimentava.

Acabando de cear, ao pagar a conta, o padeiro examinou com o cuidado especial de entendido o papel, a estampa e a numeração das notas do troco. Notando que eu reparava com insistência para o seu exame pericial, com a mais tranqüila das vozes e cheio de uma linda ingenuidade, pediu-me:

- Faça o favor, doutor: veja-me de que estampa é esta... Não posso ler direito...

E passava-me a cédula velha, mas ainda em bom estado, em que li: estampa 9.a - perfeitamente legível.

- Obrigado. É preciso muito cuidado, meu caro doutor. A Casa da Moeda tem muitas filiais por aí...

Com o seu gesto habitual, estendeu a perna, arrumou as notas no maço e guardou-o no fundo da algibeira.

Daí em diante, não sei se com justeza, mas certamente com muita segurança intima, tive por afetadas a sua simplicidade e bonomia, e julguei que escondiam algo de grave que se desenrolava na sua vida e ainda não tivera termo.

Pelo almoço, a uma pergunta minha, o copeiro avisou-me que o padeiro tinha ido aos subúrbios e não voltaria senão à tarde. Almocei vagarosamente e tranqüilo. O dia estava fresco e azul. Pela janela avistava os grandes relvados do jardim, muito verdes e macios, de uma maciez de tapete e de um verde que afagava o olhar. Soavam onze horas quando sai do hotel e vim vindo a pé até às ruas centrais da cidade. Era cedo; não fui logo à Câmara. Fiquei vagueando pelas ruas à espera da hora conveniente. Cansado de andar pelo centro, aventurei-me tomar um daqueles bondes pequenos; chegando ao termo, bebi um refresco num botequim sórdido das proximidades e tomei outro bonde que, me informaram, levava à Câmara,. Não reparei que a meu lado se sentara um homem acobreado, de cabelo liso mas de barba rala e crespa, ar decidido e tórax forte; mas notara que, bancos adiante, um senhor de cartola, fraque e calças brancas, tomara lugar à direita de uma senhora, jovem ainda, cuja passagem pagara, sem que com ela trocasse sequer um olhar. Observei-os intrigado; em meio da viagem o vizinho segredou-me:

- Está vendo que pouca-vergonha!? Um senador bolinar!

Não entendi. Bolinar... Senador... O que era? O homem, entretanto, insistiu:

- Todo o dia é aquilo... Uma vergonha! Se fosse outro, mas um senador!

Por esse tempo, o par saltou, isto é, o senhor pouco antes, com o veículo em movimento, e a senhora saltou adiante; e ambos, ao jeito de desconhecidos, tomaram uma rua transversal. O meu vizinho não fez mais nenhuma observação, não me deixando, porém, de olhar durante a viagem toda e quando saltei, mal tinha pisado o passeio, cortou-me os passos interpelando-me:

- Olhe, menino, deixe-se disso, senão...

- Mas, o quê?

- Então não sabe? Ora, não se faça de besta, continuou, atirando o chapéu para o alto da cabeça.

- Mas...

- É isto que lhe digo; não se meta na vida de "Seu" Carvalho... É um graúdo, pode ter lá "seus arranjos" e não tem que dar satisfação a ninguém - fique sabendo!

- Eu!

- Sim, você.

Olhou-me durante instantes cheio de desafio e perguntou-me com redobrado atrevimento.

- Você não e repórter do O Azeite, um jornaleco que anda por ai?

Soube muito depois que O Azeite era um pequeno semanário em que se denunciavam os namoros e também, com grosseiros circunlóquios, os escândalos familiares e os adultérios da cidade.

A polícia sempre perseguia tais publicações; mas, mudando de título e talvez de proprietários, de quando em quando, ressurgiam com nomes mais ou menos sugestivos e imorais.

Houve um que se tornou célebre e durou bastante tempo: O Carbonário. Desapareceu e, daí em diante, os que vieram à publicidade não se demoraram na venda.

Não conhecia essa espécie de imprensa, e só mais tarde vim a saber que "azeite", na gíria carioca, é namoro. Inocente em tudo, respondi com toda a candura:

- Eu, não senhor.

E com a humildade que ditava a minha segurança, expliquei ao notável "Chico Nove-Dedos" que havia chegado do interior, que não conhecia o Senador Carvalho, que nada sabia dos "seus arranjos", e que ia entregar uma carta (mostrei-lha) a um deputado na Câmara, etc., etc.

O capanga acreditou, desculpou-se, disse-me o nome e ofereceu-me a casa. Dirigi-me para a Câmara. A minha simplicidade tinha julgado fácil falar a um deputado na Câmara. Era proibido; só se trouxesse ingresso; contudo, o porteiro disse-me que era melhor procurar o doutor Castro na sua residência, que me ensinou; e eu fui assistir à sessão para encher o tempo e para travar conhecimento com o misterioso trabalho de fazer leis para um pais. De fato, subi pensando no ofício de legislar que ia ver exercer pela primeira vez, em plena Câmara dos Senhores Deputados - augustos e digníssimos representantes da Nação Brasileira. Não foi sem espanto que descobri em mim um grande respeito por esse alto e venerável oficio. Lembrei-me daqueles velhos legisladores da lenda e da história: os Manus, os Licurgos, os Moisés, os Sólons, os Numas - esses nomes todos que os povos agradecidos pela fecundidade e pela sabedoria de suas leis reverenciaram por dilatados anos, ergueram-nos à altura de deuses, consagraram-lhes templos magníficos.

Embora não tendo mais a velha crença, de que eles fossem inspirados pelos deuses, o meu respeito baseava-se em motivos mais modernos, concordes com o feitio de pensar do nosso tempo. Imaginava-os com uma tresdobrada forças de sentidos e inteligência, podendo prever, adivinhar, sentindo antes de expressos os desejos, as necessidades de cada um dos milhões de entes que sofriam e viviam, que pensavam e amavam pela vasta extensão da pátria. Foi com grande surpresa que não senti naquele doutor Castro, quando certa vez estive junto dele, nada que denunciasse tão poderosas faculdades. Vi-o durante uma hora olhar tudo sem interesse e só houve um movimento vivo e próprio, profundo e diferencial, na sua pessoa. quando passou por perto uma fornida rapariga de grandes ancas, ofuscante de sensualidade. Nada nele manifestava que tivesse um forte poder de pensar e uma grande força de imaginar, capazes de analisar as condições de vida de gentes que viviam sob céus tão diferentes e de resumir depois o que era preciso para sua felicidade e para o seu bem-estar em leis bastante gerais, para satisfazer a um tempo ao jagunço e ao seringueiro, ao camarada e ao vaqueano, ao elegante da Rua do Ouvidor e ao semibugre dos confins do Mato Grosso. Onde estava nele o poder de observação e a simpatia necessária para entrar no mistério daquelas rudes almas que o cercavam e o elegiam? Nada transpirava na sua preguiçosa e baça personalidade.

Entrando na Câmara, verifiquei que a grandiosa representação que eu fazia do legislador, não se me tinha diminuído com o exame da opaca figura do doutor Castro. Era uma exceção, mas certamente os outros deviam ser quase semideuses, mais que homens, pois eu queria-os com força e com faculdades capazes de atender e de pesar tão vários fatos, tão desencontradas considerações, tantas e tão sutis condições da existência de cada e da de todos. Para tirar regras seguras para a vida total desse entrechoque de paixões, de desejos, de idéias e de vontades, o legislador tinha que ter a ciência da terra e a clarividade do céu e sentir bem nítido o alvo incerto para que marchamos, na bruma do futuro fugidio. Quanta penetração! quanto amor! que estudo e saber não lhe eram exigidos! Era preciso tudo, tudo! A Quiromancia e a Matemática, a Grafologia e a Química, a Teologia e a Física, a Alquimia!... Era preciso saber tudo e sentir tudo! Era na verdade um vasto e alevantado oficio!

Pensando, subia a escada da Câmara dos Deputados da República dos Estados Unidos do Brasil. Ao transpor a porta que dava para a galeria, vieram-me recordações dos grandes nomes que aquela instituição vira. Primeiro, as grandes figuras dos Andradas, orgulhosos e soberbos, no meio daquela agitação dos nossos primeiros anos de vida política. Foi uma rápida evocação: os dados históricos faltavam-me e os da tradição nenhuns eram; e eu, no momento, só relembrei a calma figura do patriarca que os retratos dos compêndios nos dão, e a eloqüência tumultuária de Antônio Carlos a que freqüentemente se alude.

Com mais insistência, em seguida as conversas caseiras fizeram-me ver ali vultos mais próximos dos meus dias. Deles, me falava meu pai, em raros dias, quando deixava a reserva eclesiástica e narrava paternalmente à minha infância curiosa, cenas e fatos da vida política do Império. Foi com palavras suas que me recordei de Cotegipe, ágil e destro de espírito; do impetuoso Silveira Martins, cheio de vigor, mas difuso na aplicação de sua força; de José Bonifácio, o moço com a sua solenidade grandiosa e os seus amplos períodos de grande estilo; mas, sobretudo, do que mais me recordei naquele instante, foi da graça, da elegância, da sutileza e da medida, desse aticismo que me pintaram em Francisco Otaviano de Almeida Rosa...

Sentei-me no último degrau de uma arquibancada grosseira, junto à balaustrada, tendo embaixo o vazio de sala das sessões. Faziam a chamada. Ouvi repetir uma chusma de nomes anódinos e obscuros. Eu tinha na cabeça uma numerosidade de nomes de reis assírios, de faraós, de filósofos gregos, de generais romanos, de romancistas franceses, de poetas nacionais, de navegadores portugueses; entretanto, dos legisladores da Pátria só um tinha na memória: era o do doutor Castro, quase meu vizinho!

Feita a chamada, as bancadas começaram a povoar-se. Junto ao presidente - a seu lado, nas costas, junto aos secretários - foi-se fazendo uma aglomeração imprevista. No espaço desguarnecido entre a mesa do presidente e a primeira das bancadas, havia o transito de rua freqüentada; numa porta ao fundo, um ajuntamento de guichet de teatro em enchente.

Um grande deputado de óculos e barba quadrada tonitroou: "Peço a palavra para uma explicação pessoal". O presidente voltou-se para um ajudante em pé, atrás e à direita, ouviu-o e, depois de tê-lo ouvido, retrucou: "Tem a palavra o Senhor Carlos Barromeu". Com certeza, pensei, esse homem foi ofendido e vai defender-se. "Senhor Presidente" começou, "há uma patologia social como há uma individual".

Em resumo: o seu discurso afirmava que o chefe de policia de Santa Catarina era um homem honesto e o jornalista que o insultara, um verme asqueroso e um réptil nojento.

O deputado sentou-se; a desordem aumentou. Encostado à primeira bancada, um rapaz lia um folheto, ao longo da mesa presidencial, na frente, atrás, dos lados, havia um vaivém continuado. Num momento dado, por entre aquela mó de gente, surgiu toda de branco a híbrida figura de Raul Gusmão, com a sua fisionomia de porco Yorkshire e o seu corpo alentado de elefante indiano, tendo sempre nos lábios aquele sorriso afetado, um horroroso ríctus, decerto o jeito de sorrir do Pithecanthropus erectus.

Um tímpano soou forte e rouco; fez-se um pouco de silêncio. O presidente disse algumas palavras, das quais as últimas davam a palavra ao Deputado Jerônimo Fagot. O miúdo deputado subiu à tribuna, limpou o suor, arrumou os livros ao lado e preparou-se para falar. Fez-se silêncio, depois de uma infernal contradança no recinto. Fagot começou: "É sabido que a moeda boa expele a má. Desde 1842, pela Lei n°. 1.425 de 30 de setembro, desse ano, que o meio circulante nacional"...

Durante cinco minutos, a Câmara ouviu-o atenciosamente; dentro em breve, porém, o zunzum recomeçou. Não havia o ruído do começo, mas a desatenção era geral. Para a mesa da presidência enxameava uma multidão; o presidente já não era o mesmo; era um moço louro e magro.

Parecia que as palavras de Fagot lhe morriam nos lábios: movia a boca e gesticulava como um doido furioso. Os colegas desapegados da sua eloqüência dividiam-se em grupos. À esquerda, lá ao longe, quase na minha frente, alguns viam cartões-postais; um outro, sob os meus pés, isolado, no burburinho, escrevia febrilmente, erguendo, de quando em quando, a caneta para pensar; uma roda de três, à esquerda e ao fundo, conversava sorrindo; ao fundo, ainda, mas um pouco à direita, um deputado gordo, com o calor que com o correr do dia se fizera forte, esquecido no sono, por detrás de um par de óculos azuis, roncava perceptivelmente. Fagot falou cerca de meia hora; e, quando deixou a tribuna, o presidente já era um terceiro deputado, um velho com pince-nez de aros de ouro.

Preparei-me para sair e, quando voltava as costas para o recinto, vi encostado a uma janela no andar do recinto a figura espertalhona do Senhor Laje da Silva. Saímos eu e um outro popular, a quem perguntei: Que faz essa gente, hoje, aqui? Que fazem, respondeu-me, sei lá... Isto é, explicou-me logo, o que fazem sempre: leis. Estávamos na rua. O dia que amanhecera lindo, e relativamente fresco, esquentara e o calor por aquela hora era forte como se estivéssemos em pleno verão.

Atravessei o Largo do Paço. A fachada do velho Convento do Carmo apresentava uma grande calma; os anos já lhe tinham dado a suficiente resignação para suportar o sol terrível dos trópicos; o cavalo da estátua, porém, parecia ter um movimento de impaciência para lhe fugir aos ardores implacáveis.

O ar fizera-se rarefeito e percebia-se a poeira que flutuava na sua massa. As montanhas de Niterói recortavam-se nitidamente sobre o céu azul e fino, que começava a ser manchado, lá no fundo da baia, por cima do casario da Alfândega e do Mercado, por grandes pastas de nuvens brancas. Ainda pouco familiarizado com o transito pesado da rua, atravessei a Rua Direita cheio de susto, cercando-me de mil cautelas, olhando para aqui e para ali, admirado que aquela porção de gente trabalhasse sob sol tão ardente, sem examinar que valor tinham as suas Câmaras e o seu Governo. E a facilidade com que os aceitava, pareceu-me sentimento mais profundo, mais espontâneo, mais natural que a minha ponta de critíca que já começava a duvidar deles. Aventurei-me pela Rua do Ouvidor já preso a outros pensamentos. Agora, tinha rápidas recordações de minha casa. Por momentos, em face daquelas damas a arrastar toilettes de baile pela poeira da rua, lembrei-me dos tristes vestidos de minha mãe, da sua cassa eterna, da sua chita e do seu morim... Mas não pude continuar por ai. Do interior de um café, o Laje chamou-me. Não estava só; acompanhava-o o doutor Ivã Gregoróvitch Rostóloff, jornalista brasileiro a quem fui apresentado.

- Do Jornal do Brasil? perguntei.

-Não, senhor. Trabalhei no O Combate, de Belém, na Gazeta de Leopoldina; no Deutsches Tageblatt, de Blumenau; no Al-Barid, de São Paulo e aqui, no Rio, no Harum Al-Raxid, órgão da colônia síria. Pretendo, porém, acrescentou, entrar em breve para O Globo, onde vou fazer o artigo de fundo e tratarei da política interna.

- Escreve em muitas línguas?!

- Em dez.

- É extraordinário, fiz eu, não podendo conter a minha parva admiração.

- Tive sempre muito jeito... Logo, em menino, pelas primeiras lições de francês, comecei a escrever... Depois, houve sempre em mim um desejo de ver povos, de andar à aventura... Logo que sai da universidade, parti para a Índia. Queria servir a um rajá, mas não há mais rajás. Fui à China, ver se entrava como instrutor do exército do vice-rei de Cantão. Não consegui. Parti para o Japão, onde fui chefe de uma fábrica de pólvora... Tenho viajado muito...

- Você já esteve em Paris, Gregoróvitch? indagou o padeiro.

- Ora! fez o jornalista. Quem já não esteve lá! Estive na Índia, em Calcutá, onde trabalhei ao lado do grande Rai Kisto-conhece doutor?

- Não.

- Quem? indagou o Laje.

- Rai Kisto Das Pal Beader, um grande jornalista hindu... Admira-me que o doutor não o conheça; na Europa já se fala nele. O Professor Bouglé, de Toulouse, cita o seu nome em uma das suas últimas obras...

- É vivo? indaguei.

- Não. Morreu há alguns anos.

O caixeiro veio servir-nos café e o jornalista depois de sorver um trago, perguntou-me:

- Já está formado?

- Vou matricular-me ainda, respondi sob o olhar de censura do Laje da Silva.

- Direito?

- Medicina...

- Não é mau... Toda a carreira serve, mas...

- O doutor é formado em Direito? indaguei por minha vez.

- Não. Formei-me em Línguas Orientais e Exegese Bíblica, na Universidade de Sófia, tendo começado o curso no Cairo.

Disfarcei a vontade que me deu de rir, ouvindo tão extravagante titulo escolar. Havia alguma coisa de opereta, mas o homem era tão simpático, tinha sido tão amável e parecia tão ilustrado que me esforcei por sujeitar o meu ímpeto de rir, soltando uma frase à-toa:

- Na Europa o homem de estudo tem campo, sabe onde deve chegar; aqui...

- Qual, doutor! Não há como a sua terra! A questão é pendurar, quando se entra, a sobrecasaca de cavalheiro no Pão de Açúcar; e no mais - tudo vai às mil maravilhas!

O padeiro ficou atônito com a cínica franqueza do julgamento do jornalista. Teve um assomo de virtude e objetou pudicamente:

- Nem tanto, doutor! Nem tanto! olhe que ainda há homens honestos nesta terra e em altas posições - o que é mais raro!

O doutor Gregoróvitch dardejou-lhe um breve olhar sarcástico e expelindo uma longa fumaça cheia de dúvida e de troça, disse devagar:

- Pode ser, Laje! Quem sabe?

Só, subindo a rua movimentada, pus-me a interrogar-me sobre o tal Gregoróvitch. De que nacionalidade era? Que espécie de moralidade seria a sua? Com aquele título burlesco de doutor em Línguas Orientais e Exegese Bíblica, quem poderia ser ao certo? Um bandido? Um aventureiro simplesmente? Ou um homem honesto, de sensibilidade pronta a fatigar-se logo com o espetáculo diário e que por isso corria o mundo? Quem seria? E jornalista! Jornalista em dez línguas desencontradas! Mas era simpático o diabo, de fisionomia inteligente...

Subi a rua. Evitando os grupos parados no centro e nas calçadas, eu ia caminhando como quem navegava entre escolhos, recolhendo frases soltas, ditos, pilhérias e grossos palavrões também. Cruzava com mulheres bonitas e feias, grandes e pequenas, de plumas e laçarotes, farfalhantes de sedas; eram como grandes e pequenas embarcações movidas por um vento brando que lhes enfunasse igualmente o velame. Se uma roçava por mim, eu ficava entontecido, agradavelmente entontecido dentro da atmosfera de perfumes que exalava. Era um gozo olhá-las, a elas e à rua com sombra protetora, marginada de altas vitrinas atapetadas de jóias e de tecidos macios.

Parava diante de uma e de outra, fascinado por aquelas coisas frágeis e caras. As botinas, os chapéus petulantes, o linho das roupas brancas, as gravatas ligeiras, pareciam dizer-me: Veste-me, ó idiota! nós somos a civilização, a honestidade, a consideração, a beleza e o saber. Sem nós não há nada disso; nós somos, além de tudo, a majestade e o domínio!

O ruído de uma fanfarra militar, enchendo a rua, veio agitar a multidão que passava. As janelas povoaram-se e os grupos arrimaram-se às paredes e às portas das lojas. São os fuzileiros, disse alguém que ouvi. O batalhão começou a passar: na frente os pequenos garotos; depois a música estrugindo a todo o pulmão um dobrado canalha. Logo em seguida o comandante, mal disfarçando o azedume que lhe causava aquela inocente exibição militar. Veio por fim o batalhão. Os oficiais muito cheios de si, arrogantes, apurando a sua elegância militar; e as praças bambas, moles e trôpegas arrastando o passo sem amor, sem convicção, indiferentemente, passivamente, tendo as carabinas mortíferas com as baionetas caladas, sobre os ombros, como um instrumento de castigo. Os oficiais pareceram-me de um pais e as praças de outro. Era como se fosse um batalhão de sipaios ou de atiradores senegaleses.

Era talvez a primeira vez que eu via a forças armada do meu pais. Dela, só tinha até então vagas noticias. Uma, quando encontrei, num portal de uma venda, semi-embriagado, vestido escandalosamente de uma maneira hibridamente civil e militar, um velho soldado; a outra, quando vi a viúva do General Bernardes receber na Coletoria um conto e tanto de pensões a vários títulos, que lhe deixara o marido, um plácido general que envelhecera em várias comissões pacificas e bem retribuídas...

O batalhão passou de todo; e até a própria bandeira que passara, me deixou perfeitamente indiferente...

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