|
Recordações do Escrivão Isaías Caminha VI Despertei hoje cheio de um mal-estar que não sei donde me veio. Nada ocorreu que o determinasse. Ontem, vivi um dia igual a todos. Não tive nem mesmo uma questão com o coletor. Por que não estou satisfeito? Não sei. E quem o poderá saber! Há em nós tanta coisa misteriosa, tantos sentimentos cujas origens nos escapam, que me esforço em vão por explicar este meu atual estado d'alma. De uns tempos a esta parte, acontece-me isso amiudadas vezes. Tudo vai correndo normalmente; os dias com o mesmo enfado de sempre, e as noites serenas e plácidas; entretanto, esta ou aquela manhã, ergo-me e olho pela janela aberta, o rio que desliza lá embaixo, ensombrado de melancolia, cheio de lassidão, com maus desejos passando-me pela cabeça. Penso - não sei por quê - que é este meu livro que me está fazendo mal... E quem sabe se excitar recordações de sofrimentos, avivar as imagens de que nasceram não é fazer com que, obscura e confusamente, me venham as sensações dolorosas já semimortas? Talvez mesmo seja angústia de escritor, porque vivo cheio de dúvidas, e hesito de dia para dia em continuar a escrevê-lo. Não é o seu valor literário que me preocupa; é a sua utilidade para o fim que almejo.
Quem sabe se ele me não vai saindo um puro falatório?! Eu não sou literato, detesto com toda a paixão essa espécie de animal. O que observei neles, no tempo em que estive na redação do O Globo, foi o bastante para não os amar, os imitar. São em geral de uma lastimável limitação de idéias, cheios de fórmulas, de receitas, só capazes de colher fatos detalhados e impotentes para generalizar, curvados aos fortes e às idéias vencedoras, e antigas, adstritos a um infantil fetichismo do estilo e guiados por conceitos obsoletos e um pueril e errôneo critério de beleza. Se me esforço por fazê-lo literário é para que ele possa ser lido, pois quero falar das minhas dores e dos meus sofrimentos ao espirito geral e no seu interesse, com a linguagem acessível a ele. É este o meu propósito, o meu único propósito. Não nego que para isso tenha procurado modelos e normas. Procurei-os, confesso; e, agora mesmo, ao alcance das mãos, tenho os autores que mais amo. Estão ali O Crime e o Castigo de Dostoiévski, um volume dos contos de Voltaire, A Guerra e a Paz de Tólstoi, o Rouge et Noir de Stendhal, a Cousine Bette de Balzac, a Education Sentimentale de Flaubert, o Antéchrist de Renan, o Eça; na estante, sob as minhas vistas, tenho o Taine, o Bouglé, o Ribot e outros autores de literatura propriamente, ou não. Confesso que os leio, que os estudo, que procuro descobrir nos grandes romancistas o segredo de fazer. Mas, não é a ambição literária que me move o procurar esse dom misterioso para animar e fazer viver estas pálidas Recordações. Com elas, queria modificar a opinião dos meus concidadãos, obrigá-los a pensar de outro modo; a não se encherem de hostilidade e má vontade quando encontrarem na vida um rapaz como eu e com os desejos que tinha há dez anos passados. Tento mostrar que são legítimos e, se não merecedores de apoio, pelo menos dignos de indiferença.
Entretanto, quantas dores, quantas angústias! Vivo aqui só, isto é, sem relações intelectuais de qualquer ordem. Cercam-me dois ou três bacharéis idiotas e um médico mezinheiro, repletos de orgulho de suas cartas que sabe Deus como tiraram. Claudicam na ortografia, e um mesmo, o juiz municipal, acaba de publicar um artigo no Diário de Caxambi sobre a "Sociedade atual em face da Ciência", onde fala em raios hertzianos. Entretanto, se eu amanhã lhes fosse falar neste livro - que espanto! que sarcasmo! que crítica desanimadora não fariam. Depois que se foi o doutor Graciliano, excepcionalmente simples e esquecido de sua carta apergaminhada, nada digo das minhas leituras, não falo das minhas lucubrações intelectuais a ninguém, e minha mulher, quando me demoro escrevendo pela noite fora, grita-me do quarto:
- Vem dormir, Isaías! Deixa esse relatório pra amanhã! De forma que não tenho por onde aferir se as minhas Recordações preenchem o fim a que as destino; se a minha inabilidade literária está prejudicando completamente o seu pensamento. Que tortura! E não é só isso: envergonho-me por esta ou aquela passagem em que me acho, em que me dispo em frente de desconhecidos, como uma mulher pública... Sofro assim de tantos modos, por causa desta obra, que julgo que esse mal-estar, com que às vezes acordo, vem dela, unicamente dela. Quero abandoná-la; mas não posso absolutamente. De manhã, ao almoço, na coletoria, na botica, jantando, banhando-me, só penso nela. À noite, quando todos em casa se vão recolhendo, insensivelmente aproximo-me da mesa e escrevo furiosamente. Estou no sexto capítulo e ainda não me preocupei em fazê-la pública, anunciar e arranjar um bom recebimento dos detentores da opinião nacional. Que ela tenha a sorte que merecer, mas que possa também, amanhã ou daqui a séculos, despertar um escritor mais hábil que a refaça e que diga o que não pude nem soube dizer.
E esta passagem do xadrez que me faz vir estes pensamentos amargos. Imagino como um escritor hábil não saberia dizer o que eu senti lá dentro. Eu que sofri e pensei não o sei narrar. Já por duas vezes, tentei escrever; mas relendo a página, achei-a incolor, comum; e, sobretudo, pouco expressiva do que eu de fato tinha sentido. Estive no xadrez mais de três horas, depois fui de novo à presença do delegado. Encontrei-o outro homem, mais brando e disposto à simpatia, tratando-me por "menino" e "meu filho".
- Você, menino, precisa deixar esse gênio. Olhe que a vida não se leva assim... Você sabe o que eu lhe podia fazer? Lavrar um processo por desrespeito à autoridade... Não faça nunca mais isso, meu filho; hoje foi comigo, que enfim... mas amanhã - quem sabe?
Em começo mantive o mesmo humor agressivo, respondendo-lhe secamente às perguntas que fazia sobre os meus precedentes; por fim, rendendo-me à sua brandura, desculpei-me, satisfazendo-as com respeito, acatando-as com toda a doçura de que é capaz o meu natural, doce e sensível ao bom tratamento.
Há muita bondade no nosso caráter, mas também muita arrogância, muito exagero no mandar e um doentio impudor no desobedecer. Esses arrependimentos, essas voltas atrás são freqüentes e fatais no modo de agir das nossas autoridades. Eu não sei até que ponto me excedi, até onde fui inconveniente; não tendo ainda observado essa face do caráter nacional, espantei-me com a delicadeza com que me tratou a autoridade, pela segunda vez em que fui à sua presença. Julgava-a transformada pela intervenção de algum protetor desconhecido, mas fiquei certo de que não era esse o motivo, pois me perguntou logo:
- Você não tem relações aqui, no Rio, menino? - Nenhuma. Admirou-se muito, extraordinariamente, a ponto de repetir de outro modo a pergunta: - Mas ninguém? Ninguém? - O meu conhecimento mais intimo é o do doutor Ivã Gregoróvitch Rostóloff-conhece? -Oh! como não? Um jornalista, do O Globo, não é? - Esse mesmo. - Por que não me disse logo? Quando se está em presença da polícia, a nossa obrigação é dizer toda a nossa vida, procurar atestados de nossa conduta, dizer os amigos, a profissão, o que se faz, o que se não faz...
- Não sabia que era um homem importante, por isso... - Pois não! Um jornalista é sempre um homem importante, respeitado, e nós, da polícia, temo-lo sempre em grande conta... Vá-se embora, disse-me ele por fim, e procure mudar-se daquele hotel quanto antes... Aquilo é muito conhecido... Os furtos se repetem e os ladrões nunca aparecem... Mude-se quanto antes, é o meu conselho. Vá!
Eu ia saindo e, antes de transpor a porta, o delegado veio ao meu encontro e recomendou em voz baixa:
- Não diga nada ao doutor Rostóloff - sabe? Ele pode publicar e ambos nós temos que perder...
Dirigi-me ao hotel indiferente à chuva que continuava a cair. Ia profundamente vexado e firmemente decidido a abandoná-lo quanto antes. Pressentindo que o hoteleiro tinha insinuado ao delegado que eu bem podia ser o autor do furto, refletia sobre uma decisão a tomar. O meu primeiro pensamento foi insultá-lo, dar-lhe pancada; mas seria recomeçar as humilhações da delegacia... Andando, cheguei ao Campo de Sant'Ana. Aí já tinha deliberado. Entraria naturalmente e nada diria a respeito, esperaria que ele falasse. Entrei; estavam todos na sala de jantar, dei-lhes boas-noites e troquei com os circunstantes algumas explicações sobre o fato. Nenhum deles se animou à mais leve insinuação e subi ao meu quarto aparentando a maior calma. Não conciliei logo o sono. Encarei a eventualidade de voltar para minha casa familiar. O caminho na vida parecia-me fechado completamente, por mãos mais fortes que as dos homens. Não eram eles que não me queriam deixar passar, era o meu sangue covarde, era a minha doçura, eram os defeitos de meu caráter que não sabiam abrir um. Eu mesmo amontoava obstáculos à minha carreira; não eram eles... Não seria tolice, pusilanimidade escondida fazer repousar a minha felicidade na presteza com que um qualquer deputado atendesse um pedido de emprego? Era possível tê-los sempre à mão para os dar ao primeiro que aparecesse? As condições de minha felicidade não deviam repousar senão em mim mesmo - conclui... Mas não era só isso que eu via. O que me fazia combalido, o que me desanimava eram as malhas de desdém, de escárnio, de condenação em que me sentia preso.
Na viagem vira-as manifestar-se; no Laje da Silva, na delegacia, na atitude do delegado, numa frase meio dita, num olhar, eu sentia que a gente que me cercava me tinha numa conta inferior. Como que percebia que estava proibido de viver e fosse qual fosse o fim da minha vida os esforços haviam de ser titânicos. Foi talvez esse adjetivo que me fez deliberar de outro modo. Passou-me pela memória a anedota mitológica que ele evoca. Representou-se-me a luta daqueles heróis com os deuses, a sua teimosia em escalar o céu, a energia que puseram em tão insensata empresa... Vi o quadro com todas as cores e com todas as figuras. Abalei-me de emoção; achei nessa atitude uma estranha grandeza, não sei que fulgurante beleza que me tornou logo interiormente alegre - tanto é verdade dizer-se que a beleza é uma promessa de felicidade! Abandonei a volta covarde para a casa materna e decidi-me a lutar, a bater-me para chegar - aonde? - não sabia bem; para chegar fosse como fosse. Trabalharia - em quê? em tudo. E, enquanto considerava a delicadeza das minhas mãos e a fragilidade dos meus músculos, adormeci placidamente, satisfeito comigo e com a minha coragem e firme na resolução de procurar no dia seguinte qualquer ocupação, por mais humilde que ela fosse. A noite passou depressa e quando desci à rua, ainda brilhava em frente à Prefeitura um combustor de gás. O ambiente não era de luz nem de treva - era uma penumbra algodoada e nevoenta com que começam certas manhãs no Rio de Janeiro. Os raros transeuntes moviam-se esbatidos naquela ambiência indecisa. Andei. Ao chegar à Rua do Ouvidor, a rua dos lentos passeios elegantes, havia uma agitação de mercado. Cestos de verduras, de peixes, de carnes, passavam à cabeça de mulheres e homens; os quitandeiros ambulantes corriam por ela acima; pequenas carroças de hotéis caros davam-se ao luxo de atravessá-la em toda a extensão; e pelas soleiras das portas imensas moles de jornais diários eram subdivididos pelos vendedores de todos os pontos da cidade. As polêmicas malcriadas de uns contra os outros sobrepunham-se, abraçavam-se fraternalmente ao impulso do italiano indiferente: Gazeta! País! Jornal do Comércio!
Os cafés já estavam abertos e ainda iluminados. Comprei um jornal e entrei num deles. Por essa hora, têm uma freguesia apressada e especial. Noctívagos, vagabundos, operários, jogadores, empregados em jornais - gente um tanto heterogênea que lá vai e se serve rapidamente.
É raro uma mulher; nesse dia, por acaso, havia duas moças, acompanhadas de uma senhora e um rapaz. Tomavam chocolate e vinham naturalmente de um baile.
A velha cochilava e as duas moças, tinham os olhos pisados, e o rosto macerado pela longa e fatigante vigília.
Saturadas de notas musicais, uma delas ainda balançava a cabeça como se estivesse ouvindo um dolente compasso de valsa. Estavam desbotadas, com os olhos encovados, e pelo rosto, neste ou naquele ponto, uma parte de pintura resistira e ficara. Viam-se os ossos da face e os rostos estavam escaveirados. O rapaz, entretanto, continuava a conversa ternamente embevecido... Observei-as muito tempo ainda, considerando como era difícil àqueles dois entes achar o fim natural de sua vida... Quantos tropeços as praxes punham! A quanto trabalho eram obrigadas!
Dançar-se noites e noites!... Levado por tais considerações ia esquecendo os meus próprios interesses. Pus-me a ler o jornal, os anúncios de "precisa-se". Dentre eles, um pareceu-me aceitável. Tratava-se de um rapaz, de conduta afiançada para acompanhar um cesto de pão. Era nas Laranjeiras. Estava resolvido a aceitar; trabalharia um ano ou mais; guardaria dinheiro suficiente que me desse tempo para pleitear mais tarde um lugar melhor. Não havia nada que me impedisse: eu era desconhecido, sem família, sem origens... Que mal havia? Mais tarde, se chegasse a alguma coisa, não me envergonharia, por certo?! Fui, contente até. Falei ao gordo proprietário do estabelecimento. Não me recordo mais das suas feições, mas tenho na memória as suas grandes mãos com um enorme "solitário" e o seu alentado corpo de arrobas.
- Foi o senhor que anunciou um rapaz para... - Foi; é o senhor? respondeu-me logo sem me dar tempo de acabar. - Sou, pois não. O gordo proprietário esteve um instante a considerar, agitou os pequenos olhos perdidos no grande rosto, examinou-me convenientemente e disse por fim, voltando-me as costas com mau humor:
- Não me serve. - Por quê? atrevi-me eu. - Porque não me serve. E veio vagarosamente até uma das portas da rua, enquanto eu saia literalmente esmagado. Naquela recusa do padeiro em me admitir, eu descobria uma espécie de sítio posto à minha vida. Sendo obrigado a trabalhar, o trabalho era-me recusado em nome de sentimentos injustificáveis. Facilmente generalizei e convenci-me de que esse seria o proceder geral. Imaginei as longas marchas que teria que fazer para arranjar qualquer coisa com que viver; as humilhações que teria que tragar; e, de novo, me veio aquele ódio do bonde, quando de volta da casa do Deputado Castro. Revoltava-me que me obrigassem a despender tanta força de vontade, tanta energia com coisas em que os outros pouco gastavam. Era uma desigualdade absurda, estúpida, contra a qual se iam quebrar o meu pensamento angustiado e os meus sentimentos liberais que não podiam acusar particularmente o padeiro. Que diabo! eu oferecia-me, ele não queria! que havia nisso demais?
Era uma simples manifestação de um sentimento geral e era contra esse sentimento, aos poucos descoberto por mim, que eu me revoltava. Vim descendo a rua, e perdendo-me aos poucos no meu próprio raciocínio. Preliminarmente descobria-lhe absurdos, voltava ao interior, misturava os dois, embrulhava-me. No largo do Machado, contemplei durante momentos aquela igreja de frontão grego e colunas dóricas e tive a sensação de estar em pais estrangeiro.
O álcool não entrava nos meus hábitos. Em minha casa, raramente o bebia. Naquela ocasião, porém, deu-me uma vontade de beber, de me embriagar, estava cansado de sentir, queria um narcótico que fizesse descansar os nervos tendidos pelos constantes abalos daqueles últimos dias.
Entrei no café, mas tive nojo. Limitei-me a beber uma xícara de café e caminhei tristemente em direção ao mar, olhando com inveja um carregador que bebia um grande cálice de parati. Eu tinha uma imensa lassidão e uma grande fraqueza de energia mental. Quis descansar, debrucei-me na muralha do cais e olhei o mar. Estava calmo; a limpidez do céu e a luz macia da manhã faziam-no aveludado. Os últimos sinais da tempestade da véspera tinham desaparecido.
Havia satisfação e felicidade no ar, uma grande meiguice, em tudo respirava; e isso pareceu-me hostil. Continuei a olhar o mar fixamente de costas para os bondes que passavam. Aos poucos ele hipnotizou-me, atraiu-me, parecia que me convidava a ir viver nele, a dissolver-me nas suas águas infinitas, sem vontade nem pensamentos; a ir nas suas ondas experimentar todos os climas da terra, a gozar todas as paisagens, fora do domínio dos homens, completamente livre, completamente a coberto de suas regras e dos seus caprichos... Tive ímpetos de descer a escada, de entrar corajosamente pelas águas adentro, seguro de que ia passar a uma outra vida melhor, afagado e beijado constantemente por aquele monstro que era triste como eu. Os elétricos subiam vazios e desciam cheios. Ingleses de chapéu de palha cintados de fitas multicores, com pretensões à originalidade, enchiam-nos. Fumavam com desdém e iam convencidos na sua ignorância assombrosa que a língua incompreensível escondia de nós, que davam espetáculo a essa gente mais ou menos negra, de uma energia sobre-humana e de uma inteligência sem medida. Os bondes continuavam a passar muito cheios, tilintando e dançando sobre os trilhos. Se acaso um dos viajantes dava comigo, afastava logo o olhar com desgosto. Eu não tinha nem a simpatia com que se olham as árvores; o meu sofrimento e as minhas dores não encontravam o menor eco fora de mim. As plumas dos chapéus das senhoras e as bengalas dos homens pareceram-me ser enfeites e armas de selvagens, a cuja terra eu tivesse sido atirado por um naufrágio. Nós não nos entendíamos; as suas alegrias não eram as minhas; as minhas dores não eram sequer percebidas... Por força pensei, devia haver gente boa aí... Talvez tivesse sido destronada, presa e perseguida; mas devia haver... Naquela que eu via ali, observei tanta repulsa nos seus olhos, tanta paixão baixa, tanta ferocidade que eu me cri entre yahoos e tive ímpetos de fugir antes de ser devorado... Só o mar me contemplava com piedade, sugestionando-me e prometendo-me grandes satisfações no meio de sua imensa massa líquida...
- Vem, dizia-me ele, vem comigo e, no meu seio, viverás esquecido, livre e independente... Aqui, eu te abrirei perspectivas infinitas à tua vida limitada e os conceitos, as noções e as idéias nada valerão. Zombarás deles, não os sentirás, não terás consciência, nem pensamento, nem vontade...
Deviam ser oito horas e eu vim descendo a pé pela borda do cais. Pensava num alvitre a tomar. Precisava sair do hotel. Estava sem dinheiro; depois de paga a pensão, restar-me-iam uns seis mil e tanto. Tinha que o deixar em breve, fosse como fosse. Aquela sociedade com pessoas que me tinham suspeitado ladrão, pesava-me, abatia-me. A esperança num emprego humilde esvaíra-se. A recusa sistemática do padeiro fizera-me supor que era assim em todas as profissões. Assim seriam os hoteleiros, os donos de cafés, de confeitarias, de cocheiras... Não sabia por onde sair; era de um verdadeiro sitio à minha vida que eu tinha sensação. Durante o dia inteiro não me deixaram esses pensamentos. Almocei no hotel, silenciosamente, sentindo a irritante observação do copeiro. Sai logo demandando a cidade. Tinha entrado na Rua do Rosário, quando alguém me bateu no ombro:
- O senhor não é Isaías Caminha? - Sou. - Não se lembra de mim? Eu sou o Agostinho. O Agostinho Marques... Não se lembra? - Recordo-me sim. Você se sentava junto ao Felício da Costa, não era? - É verdade. Chegou há muito tempo, Isaías? - Há um mês, e você o que está fazendo? - Sou empregado no escritório do doutor Leitão Fróis - e você?
- Eu!... Procuro a vida... O meu antigo colega não se demorou muito, tinha pressa e eu prometi-lhe que o procuraria para conversar, tanto mais que ele tinha serviço a dar-me. Passei o resto do dia vagueando. Veio a tarde, uma tarde doce e azul, e eu não tive força para me apresentar no hotel. Fui ao Passeio Público. Entrei e sentei-me num banco afastado, fora do caminho habitual dos visitantes Estive instantes pensando a olhar o regato na minha frente e as árvores que me cercavam. Os patos e os gansos nadavam satisfeitos e as garças pensativas perfiladas nas margens espiavam assombradas vendo tanta alegria. A tarde punha um brilho particular nas coisas, de doçura e satisfação. Aquele descanso no jardim fez-me lembrar não sei que passagem do meu livro de cabeceira, desse perverso livro de que eu quis fazer bússola para minha vida. Abri-o e, desejoso por encontrar a passagem, não reparei que uma pessoa viera sentar-se no mesmo banco que eu. Num dado momento, virei-me e dei com uma rapariga de cor, de olhos tristes e feições agradáveis. Tinha uma bolsinha na mão, um chapéu-de-sol de alpaca e o vestuário era pobre. Considerei-a um instante e continuei a ler o livro, cheio de uma natural indiferença pela vizinha. A rapariga começou a murmurar, perguntou-me qualquer coisa que respondi sem me voltar. Subitamente, depois de fazer estalar um desprezível muxoxo, disse-me ela à queima-roupa:
- Que tipo! Pensa mesmo que é doutor... Fechei o livro, levantei-me e, já afastado, ainda ouvi dela alguns desaforos. Cheguei ao portão. Os bondes passavam, havia um grande movimento de carros e pedestres. Considerei a rua, as casas, as fisionomias dos transeuntes. Olhei uma, duas, mil vezes, os pobres e os ricos. Eu estava só.
Anterior - Próximo
------------x------------
|
|