Marginália
HISTÓRIAS DE MACACO
O nosso macaco, com as suas parecenças humanas, tal e qual o vemos nas gaiolas e preso a correntes, é bem miúdo; mas tem tal ar de inteligência, é tão solerte e inquieto, que o povo não podia deixar de impressionar-se com ele e dar-lhe a máxima importância nas suas histórias de animais.
Certamente, as suas semelhanças com o homem não são bastante flagrantes como as dos grandes macacos da África e da Ásia. O chimpanzé, o gorila, o orangotango e o gibo, sobretudo este, possuem mais fortes traços comuns a eles e ao homem. O último desses macacos antropóides é até tido como bem próximo parente do "Pitecanthropus" do Sr. Dubois, que passa por ser o avô desaparecido do gênero humano. Todos esses macacões africanos, asiáticos e javaneses, porém, são fortíssimos e de uma robustez muito acima da do homem, por mais forte que seja. Não sei qual será a impressão que se tem deles, ao natural; mas a que possuo, pelas gravuras dos compêndios, é de ferocidade e bestialidade.
O nosso macaquinho não tem esse aspecto de força estúpida, mas de astúcia e malignidade curiosa, quando não de esperteza e malandragem.
Assim, o povo o representa nas suas histórias, onde ele é fecundo em ardis e variadas manhas, para vencer dificuldades e evitar lutas desvantajosas; às vezes, porém, são mais simples e as narrativas populares procuram fazer ressaltar unicamente o pendor "planista" do símio, da simpatia de nossa gente humilde.
Essa história que ai vai e me foi contada pela minha vizinha, D. Minerva Correia da Costa, natural de Valença, Estado do Rio, é exemplo disto que acabo de dizer e é intitulada:
HISTÓRIA DO MACACO QUE ARRANJOU VIOLA
Um macaco saiu à rua muito bem vestido. As crianças, porém, não estiveram pelos autos e, apesar de vê-lo bem vestido, começaram a troçá-lo:
- Olha o rabo do macaco! Olha o rabo dele!
- Meninos, - dizia o mestre Simão, - deixem-me ir sossegado pelo meu caminho.
As crianças, porém, não o atendiam e continuavam de surriada:
- Olha o rabo! Olha o rabo dele! Olha o rabo do macaco!
Aborrecido e incomodado com a vaia da petizada, o macaco resolveu dirigir-se a um barbeiro e pedir-lhe que amputasse a sua cauda. O "fígaro" recalcitrou e não quis atendê-lo. O macaco insistiu e ameaçou-o de furtar-lhe a navalha, caso não fizesse a operação que solicitava. O barbeiro, muito instado e ameaçado, consentiu e Simão voltou à rua extremamente contente. A assuada das crianças, porém, continuou:
- Olha o macaco cotó! Olhem só como ele está rabicó!
E tudo isso seguido de assovios e outras chufas! O macaco tomou o alvitre de procurar novamente o barbeiro para que lhe recolocasse a cauda. O barbeiro, muito naturalmente, mostrou-lhe que era impossível. O macaco furtou-lhe então a navalha. Feito o que, continuou o seu caminho e veio a encontrar uma mulher que escamava peixe com as unhas, por não ter faca ou outro instrumento cortante adequado. Ao ver tal coisa, o macaco indagou:
- Por que você "concerta" o peixe com a mão?
- Homessa! Que pergunta! Porque não tenho faca...
- Não seja por isso... Tem você aqui uma navalha.
Agradecida, a mulher, depois de preparar o peixe, deu-lho a comer com farinha.
Foi-se o macaco após o almoço; mas, arrependido, deu-lhe na telha de retomar a navalha. A mulher recusou, com toda a razão, pelo curial motivo de lhe ter dado a comer peixe e farinha, em troca. O macaco não teve dúvidas: carregou-lhe um bom bocado de farinha.
Seguiu adiante, vindo a topar com uma professora que dava bolos de pau às alunas. Ofereceu-lhe a farinha para fazer bolos que substituíssem os de pau. A professora aceitou e, prontos que eles foram, o macaco não se fez de rogado e entrou também nos bolos. Despediu-se logo após e, tendo andado um pouco, arrependeu-se e voltou sobre os seus passos para reclamar a farinha. A professora - o que era naturalmente ele esperar - não a tinha mais; e, portanto, não a podia restituir. O macaco, então, arrebatou uma das crianças, apesar da gritaria da mestra e das outras discípulas. Com ela às costas, foi indo, quando encontrou um tipo que, caminhando, tangia uma viola.
Propôs a troca da menina pelo instrumento, o que foi aceito pelo sujeito. Continuou o caminho que, bem cedo, era cortado por um largo rio, que ele não podia atravessar. Pela primeira vez, depois de tantas aventuras, vencidas com facilidade, encontrava um obstáculo que a sua manha e a sua astúcia não podiam vencer. Para consolar-se, resolveu cantar as suas proezas com acompanhamento de viola. Assim cantou:
- Macaco com seu rabo arranjou navalha; com a navalha, arranjou peixe; com peixe, arranjou farinha; com farinha, arranjou menina; com menina, arranjou viola...
O rio, porém, continuava a correr mansamente em toda a sua largura intransponível. Viu bem que era impossível vadeá-lo. Não havia lábia ou astúcia que lhe valesse... Desesperado atirou-se nele para morrer.
Esta história de um final pessimista para as manobras e espertezas do macaco, não é das comuns; as mais espalhadas dão sempre a vitória final ao símio sobre todos os obstáculos inimigos que encontre na vida e nas florestas.
A onça é sempre o seu inimigo natural e é com ela, no romancear do povo, que tem travado um duelo de morte interminável.
O Sr. Antônio Higino, natural do Rio Grande do Norte, que é hoje contínuo do gabinete do Ministro da Guerra e foi praça do exército, há anos, narrou-me um conto passado entre os dois dos mais expressivos.
Ei-lo:
"O MACACO E A ONÇA
Andava o macaco, como sempre, de implicância com a onça, e a onça com o macaco. Um belo dia, o felino veio a encontrar o símio trepado em um galho de pau, a tirar cipós.
- Que fazes aí, compadre macaco? - perguntou a onça.
- Ah! então tu não sabes, comadre onça, o que estou fazendo? Trato da minha salvação...
- Como?
- Pois não tens notícias de que Nosso Senhor vai mandar um pé de vento muito forte e só se salvará quem estiver bem amarrado?
Amedrontada e por não ter mão com que ela própria se atasse, a onça pediu imediatamente:
- Então, compadre macaco, amarra-me também para eu não morrer... Tem pena de mim que não tenho mãos! Amarra-me também pelo amor de Deus!
O macaco obteve todas as juras e promessas que a comadre não lhe faria nenhum mal e desceu para atá-la num tôco de pau. À proporção que a ia amarrando, perguntava:
- Comadre, você pode se mexer?
A onça fazia esforços para desvencilhar-se, e o macaco atava mais fortemente o lugar que lhe parecia mais frouxo. Assim pôde conseguir amarrar a comadre, sem que esta, por mais que quisesse, pudesse fazer o mínimo movimento.
Vendo-a bem amarrada, o macaco apanhou um cipó bem grosso, deu na onça uma valente surra e fugiu em seguida.
As outras onças conseguiram soltar a irmã, e esta jurou a seus deuses vingar-se do macaco.
Veio uma seca muito grande e a onça, para pilhar o símio e cevar nele o seu ódio recolhido, pôs-se de alcatéia num único lugar em que havia água. Todos os animais iam até ali desalterar-se, sem serem incomodados pelo felino: mas o macaco, muito atilado e esperto, não foi, adivinhando o que o esperava.
Apertando-lhe a sede, entretanto, ideou um ardil para ir até à cacimba saciá-la. Tendo encontrado um pote de melaço, besuntou todo o seu corpo com ele e, depois, espojou-se num monte de folhas secas, que se lhe grudaram aos pêlos.
Disfarçado desse modo, encaminhou-se para o bebedouro; a onça desconfiou daquele animal, mas não saiu da tocaia, limitando-se a perguntar:
- Quem vem lá?
O macaco com voz simulada, mas segura, respondeu:
- É o ará.
Ará é o que nós chamamos ouriço-caixeiro, com o qual a onça não tem implicância alguma.
O suposto ouriço muito calmamente abeirou-se do poço e pôs-se a beber água a fartar, no que se demorou muito.
Comadre onça começou a desconfiar de tal bicho, que bebia tanta água, e exclamou admirada:
- Que sede!
O macaco precavidamente afastou-se e, logo que se pôs fora do alcance da terrível comadre, acudiu escarninho:
- Admiraste-te! Pois desde que surra te meti, água jamais bebi!
A vingança da onça foi mais uma vez adiada. Como esta, muitas outras passagens desta curiosa luta são contadas pelas pessoas do povo e eu tenho ouvido diversas. Além da que aí vai, possuo escritas mais algumas, que não reproduzo agora para não me tornar fastidioso.
Hoje, 16-4-1919.