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Histórias e Sonhos AGARICUS AUDITAE
A João Luis Ferreira Alexandre Ventura Soares tinha seus vinte e cinco anos, bacharel em ciências físicas e naturais, era preparador do Museu de História Natural, cargo que, obtido em concurso, lhe dera direito a uma viagem à Europa, nos tempos em que as subvenções para isso largamente se distribuíam, razão pela qual eram eqüitativa e sabiamente feitas. De volta, por acaso, viera a morar defronte de um homem de idade, venerável, que vivia, pelo jardim de sua vasta casa, a catar pedrinhas no chão. Curioso com os trejeitos do homem, pôs-se a observá-lo, a fim de descobrir o que significavam. Visou a Ásia e encontrou no caminho a América. El Levante por el Poniente... A filha do ancião, muito naturalmente, pouco afeita a curiosidades sobre o seu jardim que não tivessem a ela por objeto, supôs que o doutor estivesse apaixonado por ela. Nenê, era o seu apelido familiar, sabia que o rapaz era dado a cousas de botânica; que pertencia ao museu; que o tratavam de doutor; logo não se podia tratar senão de um médico. A nossa mentecapta inteligência nacional, de que não fazem parte só as mulheres, não admite que tratem de botânica senão os médicos; e de matemática os engenheiros; quando, em geral, nem uns nem outros se preocupam em tais cousas. Ela, porém, vivendo em círculo restrito, não tendo estudos especiais, convivências outras que não essa da sociedade, fossilizadas de cérebro e com receitas de formulário na cabeça, não podia ter outra opinião que a geral na nossa terra, de cima a baixo. Aquele moço era por força doutor em medicina ou, no mínimo, estudante. Quando soube que não, teve uma ponta de despeito; e custou-lhe a crer que fosse tão formado como outro qualquer doutor. Foi o próprio pai quem a convenceu. Oh! filha! filha! Pois não sabias disso? Pois eu estimo muito saber que tenho na vizinhança um sábio. O desembargador Monteiro, pai da Nenê, estava aposentado e tinha a mania da mineralogia. Ele mal conhecia o primeiro sistema de cristalografia; mas não lhe deixava a teima. Tinha um laboratório onde não havia nem uma balança de Jolly, nem um maçarico, nem um bico de Bunsen, nem um reativo, nem um pedaço de carvão vegetal; mas quando mostrava aos visitantes, exclamava ufano: - Vejam como tenho livros! Vejam! Tenho o Haüy, as suas duas obras; a Estrutura dos cristais e a Mineralogia, primeiras edições... Olhem aqui Delafosse! Seis volumes! Hein? E assim mostrava toda a sua biblioteca de mineralogia sistemática e descritiva. Chegava a um canto, onde havia uma pequena bigorna de ourives, montada em um forte soco de pau, tendo a um dos lados um pesado martelo de carpinteiro; e observava: - É aqui que trabalho há anos... Ainda não consegui isolar uma granada de granito... No entanto, eu as vejo em quase todas as pedras da rua sobre que ponho os pés. Foi esta mania de procurar granadas nas pedras da rua que chamou a atenção do jovem naturalista seu vizinho. Se Monteiro lobrigava uma granada por menor que fosse, nas pedras soltas do seu caminho, logo apanhava o edregulho, levando-o para casa, e martelava-o naquela bigorna de fazer pulseiras, à cata da pedrinha vermelha-rubra; mas, fosse por isso ou por aquilo, a granada se escafedia e o nosso mineralogista ficava desolado. Só os paralelepípedos do pavimento das ruas lhe escapavam; mas, assim mesmo, quando estivessem ajustados aos outros; se soltos, ele pagava a algum moleque para levar um ou outro à sua casa. Sua filha, dona Nenê, ficou muito contente; e o jovem botanista não teve nenhuma dificuldade em obter a sua mão. O velho desembargador disse-lhe unicamente: - Bem. Não há dúvida. O doutor tem com certeza um futuro brilhante; mas, ainda não demonstrou para que veio ao mundo. Já escreveu uma "memória"? - Não, senhor. - Faz mal. Na Alemanha, é muito usado... A "memória” demonstra sagacidade para o novo, para o detalhe inédito, inexplorado, um ponto de vista que houvesse escapado aos sábios e grandes mestres... Eu queria que meu futuro genro merecesse minha filha dessa maneira, porque, na Alemanha... - Mas o senhor desembargador há de me permitir uma pergunta? - Pois não. - A que sociedade ou academia deveria eu apresentar a minha memória? - Não há negá-lo: a sua objeção procede. Não havendo entre nós academias especiais a semelhantes ciências, havia, portanto, embaraço em achar quem julgasse o mérito ou demérito do seu trabalho. As que há, ou são de uns ignorantes literatos que nunca viram uma granada em uma pedra, ali, da pedreira no rio Comprido, ou são formadas por uns médicos faladores que têm pretensões a literatos. Mas... acontece que os senhores não conhecem bem o Brasil, senão saberiam que existe uma academia respeitável e egrégia, não só pelos vários ramos de ciências naturais nela cultivados, como também pelo número de sábios mortos e vivos a ela pertencentes, que mereciam ser conhecidos pelo senhor que governa a sua mocidade nobre pela inteligência e pelo estudo. Então não conhece o senhor a "Academia dos Esquecidos"? - Não! - É de admirar! Pois, creia-me, dela, além dos atuais, fizeram e fazem parte ainda: Alexandre Ferreira, Conceição Veloso, Gomes de Sousa, o doutor José Mauricio Nunes Garcia, Domingos Freire, Tito Lívio de Castro, Morais e Vale, José Bonifácio... -José Bonifácio, dos Esquecidos! - Sim! Aquele mineralogista que depois foi político. E como não? - Ah! - Compreende-me, agora? Pois bem. Atualmente, presido eu a academia, disse o desembargador com ênfase; e espero que, como um paladino, ofereça à sua noiva a árdua vitória de fazer parte dela: Está aqui a minha mão, Nenê... Os três sábios despediram-se tocantemente; faltou porém, o quarto sábio. Talvez fosse o único que não levasse n'alma engano cego; mas a pequena levou, creio, durante o primeiro ano. Na rua, monologava Soares: um caso novo, um detalhe original, onde hei de buscá-los? Fui bom estudante e, talvez, por isso, nunca supus que, na ciência, houvesse novidade. Tudo já estava feito e, quando não estava, quando se queria cousa nova, compravam-se as revistas estrangeiras e lá estava a cousa digeridinha. E - que diabo! - para que havia eu de aumentar a dificuldade dos estudantes? Não bastavam os europeus, os tais alemães? Já que era preciso descobrir ou inventar para casar, vá lá! Mas não era já suficiente ser "doutor" para casar? Ainda mais esta! Até o que se havia de pedir para casar bem! Ora bolas! Estou quase desistindo... Não! É preciso ter-se urna posição decente na sociedade, um bom casamento, se não rico, pelo menos semi-rico... Se não descubro, forjico qualquer cousa e a ciência que se amole... A ciência é um enfeite; é assim como este anel de safira. E olhou para a pedra quase tão dura como o diamante, a qual não esmaeceu em nada ao seu olhar feroz de cupidez... Resolveu-se Soares a escrever sobre mineralogia: Rochas metamórficas do Brasil ou O veio de petrossílex do Corcovado; mas isto, considerava, não é novo e muito menos é meu. O jovem sábio foi dormir, julgando ter perdido a menina rica, a importância de genro do desembargador Monteiro, e a sua entrada na Academia dos Esquecidos. Buffon afirmou alhures que alguns volumes da sua monumental História natural, ele os devia ao seu criado. Soares deveu a sua "memória" e a sua felicidade ao seu criado José. Despertou-o este bem cedo, muito a contragosto dele. Leu os jornais, de princípio a fim; leu a notícia dos rolos que houvera no Teatro Lírico, tomou outra xícara de café, fumou e, de súbito, sentou-se à mesa e escreveu em bastardo: Agaricus auditae Mais em baixo, ao lado direito, pôs à guisa de epígrafe: Memória apresentada à Academia dos Esquecidos, secular e vetusta como as demais congêneres, pelo bacharel em ciências físicas e naturais da Escola Politécnica do Rio de Janeiro Alexandre Ventura Soares. E então começou: "Senhores Acadêmicos. Seduziu-me desde moço a doutrina darwiniana; e eu, com Lyell, a sorvi em grandes haustos na sua aplicação à geologia. Concordei que o mundo atual era resultante e resultado de várias, lentas, pequeninas transformações seriadas cujos termos não têm origem; com Huxley, depois daquela sua célebre demonstração por que tem passado o cavalo através das idades (T. Huxley - L'Évolution et l'origine des espèces - tradução francesa., 1892, págs. 232 e segs.) - com Huxley, dizia, acreditei que o Megatherium e o mamute, como plenipotenciários seus, tivessem acreditado entre nós a hórrida preguiça e o informe elefante. Sustentei que, sob o império inexorável da seleção natural e da adaptação ao meio, marchássemos nós, pedras e homens, nessa sucessão de modificações, passo moroso e graduado com que vai a variável, de estádio em estádio, se aproximando do limite para nunca atingi-lo, como nós para o nosso perfeito destino desconhecido (Haeckel, passim)". - Bem começado! exclamou o nosso Alexandre. Os períodos se sucedem como uma falange de teoremas e deles tirarei legiões de corolários. Festina lente.. Mas continuemos: "E, certo nestas idéias, parecia impossível, e de fato é, que, em plena vida contemporânea, existissem exemplares da fauna e da flora dos primórdios da Terra. Houve, não obstante ser inconseqüente com os verdadeiros princípios da ciência, alguém que pretendeu ter visto fósseis 'vivos', mas, se é possível isto no mundo das inteligências, fora do mundo do pensamento, tal como o dos artistas, dos poetas, dos soclólogos, dos escritores, dos arquitetos, dos jornalistas, dos músicos, tal não permite a evolução em geral". "Deveis lembrar-vos, senhores acadêmicos, dos Pterodactylus longisrostris, que alguns viajantes (poetas naturalmente) julgaram lobrigar por entre as florestas ralas da Nova Zelândia, mas que, após visitas de verdadeiros cientistas, foram arrastados para a voragem dos desmentidos da excelsa ciência”. Soares não se conteve e exclamou bem alto: - Muito bem! Excelsa ciência! Admirável! Naturalmente o desembargador Monteiro há de apreciar esta bela frase: excelsa ciência! Não há dúvida! Esta minha memória traz no seu bojo toda uma síntese das minhas qualidades e das minhas audácias fáceis! Assentarei a minha fama de naturalista; entrarei para a Academia dos Esquecidos; demonstrarei o vigor do meu estilo e, por cima de tudo, uma pequena semi-rica! Arre! Como é bom ter-se um bom curso na Escola Politécnica do Rio de Janeiro! Nenê, como te amo! Socorre-me nesse transe, como me vais socorrer a vida toda! A mulher foi feita para sustentar homem... Aquele burro do Comte! Era por isso que ele detestava a geologia, a paleontologia! Burro! Nenê!... E não é que estou mesmo parecendo o Paulo, o tal da Virgínia? Ora bolas! Adiante: "II - Amigo meu e consumado sábio, J. C. Kramer, exímio geólogo e professor da mesma cadeira da Harvard University, USA, em conversa comigo, há dias, no Museu de História Natural desta capital - conversa amável de sábios - comunicou-me que, há tempos, por ocasião de estudar, no Rio de Janeiro, a hipótese da glaciação do Brasil”, de Agassiz, observou vegetando nesta cidade de assaz estranha casta de tortulhos - a que as crianças chamam ‘mijo-de-sapo' e ‘orelha-de-burro’ que ele julgava, apesar do disparatado dos caracteres, exemplares da flora do período triássico da época secundária. "Óbvio será dizer-vos, senhores acadêmicos, que uma tal comunicação me encheu de imenso júbilo, patriótico e científico. "Cavaqueando comigo o doutor Kramer, da Harvard University, USA, admirava-se, sorrindo com mofa e desculpando-se amável, que, vivendo os tais cogumelos tão próximos dos nossos estabelecimentos de ciências, não houvéssemos ainda notado a sua singular estrutura. É bastante explicável - desculpava-se agora mal - vosso país é muito novo. E, na continuação da palestra, não se media, ás vezes, de contentamento e satisfação. Deixava sempre transparecer nesses sentimentos a utilidade científica da perspicácia e subtileza do sábio yankee; e o que parecia acrescer ainda mais a sua maligna satisfação, era que tais Agaricus fossem além dos nomes das crianças que tinham, também conhecidos vulgarmente por 'diletantes', nome que, dado o seu explicável e previsto mau ouvido para as línguas do sul da Europa, creio tratar-se de dilettanti" Nisto, o José chega á porta do gabinete do sábio Alexandre e grita: - "Seu dotô"! O almoço na mesa! - Oh! Já? Olhou o relógio na parede e concordou: - Você tem razão... E verdade! Já são dez horas... Almoço, vou ao museu, consulto as notas da besta do Kramer e, antes do fim do mês, tenho a "pequena" e o resto... E, se alguns céticos, pessimistas e despeitados disserem que a ciência, no Brasil, não leva longe, não dá fortuna, independência, eu posso dizer bem alto: aqui estou eu! E bateu, com força, no peito, como se dissesse para a escolta do fuzilamento: atirem que eu não preciso de ficar amarrado, nem vendado. Sei morrer! No dia seguinte, completamente armado com as notas do famoso geólogo yankee, o notável brasileiro Alexandre Ventura Soares, homem grave e sábio, tanto mais grave e mais sábio por ser jovem, continuou a sua memória casamenteira assim: "III - O habitat de tais 'orelhas-de-burro', como lhes chamam as crianças do Rio de Janeiro, é um barracão úmido e quente que fica ao sopé do morro de Santo Antônio, no centro da cidade, e serve as mais das vezes de depósito de jornais europeus de modas e jóias de aluguel que correm, em vários corpos, as capitais de segunda ordem do globo, exibindo-as como riquezas próprias". - Diabo! exclamou Soares, compulsando as notas. Este Kramer tem cada idéia! Isto é impossível! Adiante, pois é preciso! Enfim ponho umas aspas e vai a cousa por conta dele: "Convém - e com humildade vos peço, senhores acadêmicos - que vos esqueçais (não fôsseis Esquecidos) das mais comezinhas noções de botânica, pois o nosso excêntrico sábio vai desvendar órgãos pouco fáceis de aceitar em ‘mijos-de-sapo' " - Está salva a minha responsabilidade, monologou o notável preparador do Museu de História Natural. Vamos! E preciso não esquecer o teu ideal científico! A Nenê está ali! Vamos! Esta "memória" é a tua sorte grande! E tomando fôlego, continuou: "Eles deveriam ser análogos aos criptógamos que formavam com outros a flora do período carbonífero; e, para justificar isto, encontraram-se entre eles alguns exemplares do Lepidodendron elegans, do gênero Atanephae. "Parecia a pessoas pouco versadas em geologia e paleontologia, que tais criptógamos não alcançassem, nos nossos dias, mais do que alguns centímetros de altura; mas, a vós, que delas sabeis mais do que eu, não parecerá estranho que afirme tê-los visto com 1,50 m e 1,80 m de altura. "Sob a forte objetiva de um microscópio de Zeiss, encontrou o doutor Kramer, na parte mínima do disco superior que possuem tais tortulhos, alguma cousa semelhante ao cérebro humano. "Analisando esse pedacito de cabeça pacientemente, com a paciência característica de um professor da Harvard College, se lhe depararam, ao doutor Kramer, coroando as suas fatigantes pesquisas, em estado rudimentar, os nervos óptico, auditivo, olfativo, gustativo etc. e, de todos esses, o mais rudimentar e grosseiro, era o auditivo. Usando, então, de um paradoxo fácil, o sábio de Cambridge (USA) denominou-os cogumelos auditivos (Agaricus auditae). "Das bossas (o singular Kramer ainda admite a teoria de Gall), só lhes restava a da memória. As funções da vida vegetativa tinham neles um completo e pleno desenvolvimento, tanto assim que, apesar de agáricos, sabiam comer demasiadamente. "O que toma tais cogumelos dignos de nota, além de outros caracteres - observa o doutor Kramer -, é que possuem sexos. Há-os machos e os há fêmeas. Embora fiel aos ditames da ciência, no entretanto, por honestidade científica, julgo-me obrigado a transcrever aqui essa blasfêmia. Mas, se ela foi irrogada à ciência, por um sábio com o distinto professor do Harvard University, claro é que nós não devemos senão acatá-la, embora assim parecendo ser. Se não nos parece verdade inconcussa, partindo de onde parte, néscios como somos, temos o dever de tomá-la como tal. "Diz o professor americano que há os exemplares de uma coloração negra, intensamente negra, tendo na parte superior um canudo também negro, lustroso, como uma espécie de rabo de ave - são os machos; e os outros claros, róseos, cabeludos, seminus, cheios de pedrarias - são as fêmeas. "Nessas diferenças, todas superficiais, que o extraordinário professor julga traduzirem sexos, no choque delas, no seu atrito é que reside a agitação, a fermentação daquele principado vegetal dos Agaricus auditae. "Tocando isto à sociologia dos 'orelhas-de-burro', em que não sou versado, não me animo a discutir a questão e adio o debate para mais tarde..." - Que é, José? - Esta carta da casa do doutor Monteiro. O criado retirou-se e o sábio, apud Kramer, abriu o bilhete e leu: "Meu querido: Já não apareces, não te vejo mais. Deixa essa história de memória'. Papai é maníaco, isto não é preciso. É melhor que arranjes um soneto, uns versos, enfim, que talvez façam o mesmo efeito; e, se quiseres, manda-los-ei fazer por um poeta discreto que anda na precisão de dez mil-réis. Queres? Que tal? Responde. Nenê". O sábio Alexandre, luzeiro da ciência brasileira, respondeu: Nenê. Tem fé em mim e na Ciência. Alexandre". Em seguida, o original cientista Ventura considerou de si para si: - Bem, por hoje, basta. Amanhã irei determinar a origem e, no sábado, lerei a memória ao desembargador; e, ainda, não foram passados dous meses! A ciência brasileira tem os seus lados notáveis e singulares - continuou Alexandre na sua meditação - e um deles é essa presteza nos seus trabalhos. Isto é devido ao fato que, para os outros sábios, o objeto da ciência está no mundo, exigindo pesquisas, observações e experiências demoradas; nós, porém, pouco nos importamos com o mundo. Há livros; fazemos ciência. Com eles, revistas, memórias dos outros, sem ir diretamente á natureza, estudam-se detalhes, arquiteta-se uma teoria nova que escapou aos grandes mestres das grandes obras. A questão é combinar um com outro, embora antagônicos... Oh! Este Brasil não é um país perdido! E um grande país! Na quinta-feira, tinha o nosso bacharel concluído a sua memória e fé-lo de modo feliz e completo. Ei-lo: "IV - Escusado será dizer que, desde logo, procurei motivar e determinar as origens de tão estranha vegetação; e sem nada encontrar, já desesperava, quando o acaso, constante amigo dos sábios, auxiliou-me eficazmente, como quando foi ao encontro de Newton, com a maçã, e de Galileu, com a lâmpada da catedral de Pisa. "V- Há um ano pouco mais, andando eu na Itália, em comissão do governo, vi, na praia de Nápoles onde flanava, brotando sobre uns andrajos sujos e abandonados de um lazzarone, uns cogumelos de um cromatismo vário e minúsculos. Naturalista, impressionaram-me eles e tive o capricho de trazer a policrônica aglomeração dos pequeninos tortulhos, com os competentes andrajos, para o Rio de Janeiro. Aqui chegado, depositei-os em um quarto contíguo ao do meu criado José, que, ora tocando em uma flauta de bambu ou em sanfona valsas e polcas mais em voga; ora, lendo noticias de fitas de cinema, distraía-se, sem esquecer, de quando em quando, de entoar com indecifrável voz, árias das óperas da moda, que ele ouvia trauteadas pelas ruas. Sem que tal saiba bem explicar, a não ser a flauta, o cantochão as crônicas do José, as 'orelhas-de-burro' napolitanas começaram a medrar, a crescer e têm atualmente quase meio metro de altura. "VI - Atributo, portanto, senhores acadêmicos Esquecidos, aos portentosos Agaricus do doutor Kramer as mesmas origens que os meus e o seu desenvolvimento às mesmas causas que os daqueles trazidos por mim da Itália, tanto mais que perto do habitat dos primeiros existe a banda de música da Brigada Policial e o Teatro Lírico". O doutor Alexandre Ventura Soares, bacharel em ciências físicas e naturais pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, preparador, por concurso, do Museu de História Natural do Rio de Janeiro, terminando a memória, levou-a ao desembargador Monteiro que gastou seis meses em lê-la e meditar sobre ela. Ao fim dos quais, mandou chamá-lo e, logo que veio, apresentando-o à filha, assim falou: - Nenê, é este o teu noivo que, pelo seu talento e pela sua erudição, acaba de penetrar na Academia Brasileira dos Esquecidos. Casados, desejo que vocês continuem o número deles, para grandeza e fama do Brasil. Casaram-se e a primeira cousa que fizeram, graças ao dote dela, foi comprarem um chalé na "curiosa floresta" dos Agaricus auditae. ADÉLIA - A nossa filantropia moderna feita de elegância e exibições é das cousas mais inúteis e contraproducentes que se pode imaginar. Entre todas as pessoas do povo aqui, no Rio de Janeiro, há uma condenação geral para as raparigas que se casam, no dia de santa Isabel, e saem da Casa de Expostos. Isto se dá para uma casa semi-religiosa, que só visa, penso eu, não a felicidade terrena, mas o resgate de almas das garras do demônio. Agora, imagina tu o que de transtorno na vida de tantos entes não vão levar esses "dispensários", essas creches etc. que lhes amparam os primeiros anos de vida e, depois, os abandonam à sua sorte!... Antes a sala do banco da Misericórdia que receita remédios de uma cor única e cuja dieta só varia na inversão dos pratos... É sempre a mesma... Essa caridade é espúria e perversa... Antes deixar essa pobre gente entregue á sua sorte... - És mau... E impossível que ela não aproveite muitos. - Alguns, talvez; mas muitos, ela estraga e desvia do seu destino, que talvez fosse alto. Nélson legou Lady Hamilton à Inglaterra; e tu sabes quais foram os começos dela. Chegaria até isso se andasse em creches, dispensários? - Não sei; mas não nos devemos guiar por exceções. - É uma frase; mas vou contar-te uma história bem singela que espero não me interromperás. Prometes? - Prometo. - Vou contar. - Conta lá. O narrador fez uma pausa e encetou vagarosamente: - Quando a portuguesa Gertrudes, que "vivia" com o italiano Giuseppe, um amolador ambulante, apresentou Adélia, sua filha, à sublimada competência do doutor Castrioto, do dispensário, a criança era só um olhar. As pernas lhe eram uns palitos, os braços descamados, esqueléticos, moviam-se nas convulsões de choro sinistramente. Com tais membros e o ventre ressequido e a boca umedecida de uma baba viscosa, a criança parecia premida por todas as forças universais, físicas e espirituais. O seu olhar, entretanto, era calmo. Era azul-turquesa, e doce, e vago. No meio da desgraça do seu corpo, a placidez do seu olhar tinha um tom zombeteiro. O doutor melhorou-a muito; mas, assim mesmo, até à puberdade, foi-lhe o corpo um frangalho e o olhar sempre o mesmo, a ver caravelas ao longe que a viessem buscar para países felizes. Depois de adolescente, porém, no fim das grandes concentrações íntimas, o brilho hialino das pupilas turbava-se, estremecia. Ninguém descobriu-lhe o olhar - quem repara no olhar de uma menina de estalagem? Olham-se-lhe as formas, os quadris e os seios; ela não os tinha opulentos, contudo casou-se. O casamento realizou-se a pé e a garotada assoviou pelo caminho. A noiva com calma estúpida olhou-os. Por quê? Casava-se a pé; era ignóbil. O padrinho não lhe notou modificação sensível. Não chorara, não soluçara, não tremera; unicamente mudou num instante de olhar, que ficou duro e perverso. O primeiro ano de casamento fez-lhe bem. A intensa vida sexual arredondou-lhe as formas, disfarçou as arestas e as anfractuosidades - emprestou-lhe beleza. Demais, o ócio desse primeiro ano afinou-a, melhorou-a; mas sempre com aquele olhar fora do corpo e das cousas reais e palpáveis. No fim de dois anos de casada, o marido começou a tossir e a escarrar, a escarrar e a tossir. Não trabalhava mais. Adélia rogou, pediu, chorou. Andou por aqui e por ali. Encontrou alguém amável que a convidou: - Vamos até lá, é perto. - Ó... Não... "Ele"... - "Ele"!... Vamos!... "Ele" não sabe; não pode mais. Vamos. "Foi, e foi muitas vezes; mas sempre sem pesar, sem compreender bem o que fazia, à espera das caravelas sonhadas. Ia e voltava. O marido tossia e tomava remédios. - Trouxeste? - Sim; trouxe. - Quem te deu? - O doutor. - Como ele é bom. "Aos poucos, infiltravam-se-lhe gostos novos. Um sapato de abotoar, um chapéu de plumas, uma luva... Morreu o marido. O enterro foi fácil e o luto ficou-lhe bem. O seu olhar vago, fora dos homens e das cousas, atravessava o véu negro como um firmamento com uma única estrela no engaste de um céu de borrasca. Um ano depois corria confeitarias, à tarde; mas o seu olhar não pousava nunca nos espelhos e nas armações. Andava longe dela, longe daqueles lugares. - Toma vermute? - Sim. - É melhor coquetel. - É. - Antes cerveja. - Vá cerveja. Não custou a embriagar-se um dia. Meteram-lhe num carro. Estava que nem uma pasta mole e desconjuntada. - Que tem você? - Nada, não vejo. - Você por que não abre mais os olhos? - Não posso, não vejo! - Lá vão os Fenianos... Você não vê? - Ouço a música. Teve carros. Freqüentou teatros e bailes duvidosos, mas seu olhar sempre saía deles, procurando coisas longínquas e indefinidas. Recebeu jóias. Olhava-as. Tudo lhe interessou e nada disso amou. Parecia em viagem, a bordo. A mobília e a louça do paquete não lhe desagradavam; queria a riqueza, talvez; mas era só. Nada se acorrentava na sua alma. Correu cidades elegantes e as praias. - Hoje, ao Leme. - Sim, ao Leme. A curva suave da praia e a imensa tristeza do oceano prendiam-na. Defronte do mar, animava-se; dizia cousas altas que passavam pelas cabeças das companheiras, cheias de mistério, como o vôo longo de patos selvagens, à hora crepuscular. Veio um ano que se examinou. Estava quase magra, quase esquálida. Foi-se fanando dai por diante. Diminuíram-se-lhe as jóias e os vestidos. Morreu aos trinta e poucos anos como a criança que se fora: um frangalho de corpo e um olhar vago e doce, fora dela e das cousas. Que é que adiantou o dispensário?" Calou-se o que narrava, e o outro só soube dizer: - Vou-me embora... Até amanhã. Anterior - Próximo
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