O Teatro Nacional
HÁ UNS BONS trinta anos o Misantropo e o Tartufo faziam as delícias da sociedade fluminense; hoje seria difícil ressuscitar as duas imortais comédias. Quererá isto dizer que, abandonando os modelos clássicos, a estima do público favorece a reforma romântica ou a reforma realista? Também não; Molière, Vítor Hugo, Dumas Filho, tudo passou de moda; não há preferências nem simpatias. O que há é um resto de hábito que ainda reúne nas platéias alguns espectadores; nada mais; que os poetas dramáticos, já desiludidos da cena, contemplam atentamente este fúnebre espetáculo; não os aconselhamos, mas é talvez agora que tinha cabimento a resolução do autor das Asas de um Anjo quebrar a pena e fazer dos pedaços uma cruz.
Deduzir de semelhante estado a culpa do público, seria transformar o efeito em causa. O público não tem culpa nenhuma, nem do estado da arte, nem da sua indiferença por ela; uma prova disso é a solicitude com que corre a ver a primeira representação das peças nacionais, e os aplausos com que sempre recebe os autores e as obras, ainda as menos corretas. Graças a essa solicitude, mais claramente manifestada nestes últimos anos, o teatro nacional pôde enriquecer-se com algumas peças de vulto, frutos de uma natural emulação, que, aliás, também amorteceu pelas mesmas causas que produziram a indiferença pública. Entre a sociedade e o teatro, portanto, já não há liames nem simpatias; longe de educar o gosto, o teatro serve apenas para desenfastiar o espírito, nos dias de maior aborrecimento. Não está longe a completa dissolução da arte; alguns anos mais, e o templo será um túmulo.
As testemunhas do tempo dizem que as comédias citadas acima acham sempre o público disposto e atencioso; era um sintoma excelente. É verdade que, depois do Tartufo, aparecia Pourcegnac e mais o cortejo dos boticários e dos truões, no dia seguinte ao do Misantropo, ia-se ver o doutoramento do Doente Imaginário. Neste ponto o teatro brasileiro de 1830 não podia andar adiante da Comédia Francesa, onde, segundo cremos, ainda se não dispensam os acessorios daquelas duas excelentes farsas, se é que se pode chamar farsa ao Doente Imaginário.
Os diretores daquele tempo pareciam compreender que o gosto devia ser plantado a pouco e pouco, e para fazer aceitar o Molière do alto cômico, davam também o Molière do baixo cômico; inimitáveis ambos. Fazia-se o que, em matéria financeira, se chama dar curso forçado às notas, com a diferença, porém, de que ali obrigava-se o curso do ouro de lei. Nem eram esses os únicos exemplos de preciosas exumações; mas nem esses nem outros puderam subsistir; causas, em Parte naturais, em parte desconhecidas, trouxeram ao teatro fluminense uma nova situação.
Não é preciso dizer que a principal dessas causas foi a reforma romântica; desde que a nova escola, constituída sob a direção de Vítor Hugo pôde atravessar os mares, e penetrar no Brasil, o teatro, como era natural, cedeu ao impulso e aceitou a idéia triunfante. Mas como? Todos sabem que a bandeira do Romanticismo cobriu muita mercadoria deteriorada; a idéia da reforma foi levada até aos últimos limites, foi mesmo além deles, e daí nasceu essa coisa híbrida que ainda hoje se escreve, e que, por falta de mais decente designação, chama-se Ultra-romanticismo. A cena brasileira, à exceção de algumas peças excelentes, apresentou aos olhos do público uma longa série de obras monstruosas, criações informes, sem nexo, sem arte, sem gosto, nuvens negras que escureceram desde logo a aurora da revolução romântica. Quanto mais o público as aplaudia, mais requintava a inventiva dos poetas; até que a arte, já trucidada pelos maus imitadores, foi empolgada por especuladores excelentes, que fizeram da extravagância dramática um meio de existência. Tudo isso reproduziu a cena brasileira, e raro aparecia, no meio de tais mons-truosidades, uma obra que trouxesse o cunho de verdadeiro talento.
Sem haver terminado o período romântico, mas apenas amortecido o primeiro entusiasmo, aportou às nossas plagas a reforma realista, cujas primeiras obras foram logo coroadas de aplausos; como anteriormente, veio-lhes no encalço a longa série da imitações e das exagerações; e o Ultra-realismo tomou o lugar do Ultra-romanticismo, o que não deixava de ser monótono. Aconteceu o mesmo que com a reforma precedente; a teoria realista, como a teoria. romântica, levadas até à exageração, deram o golpe de misericórdia no espírito público. Salvaram-se felizmente os autores nacionais. A estas causas, que chamaremos históricas, juntam-se outras, circunstanciais ou fortuitas, e nem por isso menos poderosas; há, porém, uma que vence as demais, e que nos parece de caráter grave: apontá-la é mostrar a natureza do remédio aplicável à doença.
Para que a literatura e a arte dramática possam renovar-se, com garantias do futuro, torna-se indispensável a criação de um teatro normal. Qualquer paliativo, neste caso, não adianta coisa nenhuma, antes atrasa, pois que é necessário ainda muito tempo para colocar a arte dramática nos seus verdadeiros eixos. A iniciativa desta medida só pode partir dos poderes do Estado; o Estado, que sustenta uma academia de pintura, arquitetura e estatuária, não achará razão plausível para eximir-se de criar uma academia dramática, uma cena-escola, onde as musas achem terreno digno delas, e que possa servir para a reforma necessária no gosto público.
Argumentar com o exemplo do estrangeiro seria, sobre prolixo, ocioso. Basta lembrar que a idéia da criação de um teatro normal já entrou nas preocupações do governo do Brasil. O Sr. Conselheiro Sousa Ramos, quando ministro do império, em 1862, nomeou uma comissão composta de pessoas competentes para propor as medidas tendentes ao melhoramento do teatro brasileiro. Essas pessoas eram os Srs. Conselheiro José de Alencar e Drs. Macedo e Meneses e Sousa. Além disso, consta-nos de fonte insuspeita que S. Ex.ª escrevera ao Sr. Porto Alegre pedindo igualmente o auxílio das suas luzes neste assunto e existe a resposta do autor do Colombo nos arquivos da secretaria de Estado. Não podemos deixar de mencionar com louvor o nome do Sr. Conselheiro Sousa Ramos pelos passos que deu, e que, infelizmente, não tiveram resultado prático.
A carta do Sr. Porto Alegre ocupa-se mais detidamente das condições arquitetônicas de um edifício para servir simultaneamente de teatro dramático e teatro lírico. Os pareceres da comissão é que tratam mais minuciosamente do assunto; dizemos os pareceres, por que o Sr. Dr. Macedo separou-se da opinião dos seus colegas, e deu voto individual. O parecer da maioria da comissão estabelece de uma maneira definitiva a necessidade da construção de um edifício destinado à cena dramática e à ópera nacional. O novo teatro deve chamar-se, diz o parecer, Comédia Brasileira, e será o teatro da alta comédia. Além disso, o parecer mostra a necessidade de criar um conservatório dramático, de que seja presidente o inspetor-geral dos teatros, e que tenha por missão julgar da moralidade e das condições literárias das peças destinadas aos teatros subvencionados, e da moralidade, decência, religião, ordem pública, dos que pertencerem aos teatros de particulares. A Comédia Brasileira seria ocupada pela melhor companhia que se organizasse, com a qual o governo poderia contratar, e que receberia uma subvenção, tirada, bem como o custo do teatro, dos fundos votados pelo corpo legislativo para a academia da música. Os membros do conservatório dramático, nomeados pelo governo e substituídos trienalmente, perceberiam uma gratificação e teriam a seu cargo a inspeção interna de todos os teatros.
O parecer do Sr. Dr. Macedo, concordando, em certos pontos, com o da maioria da comissão, separa-se, entretanto, a outros respeitos, e tais são, por exemplo, o da construção de um teatro, que não julga indispensável, e da organização do conservatório e da companhia normal. A maioria da comissão fez acompanhar o seu parecer de um projeto para a criação do novo conservatório dramático e providenciando acerca da construção de um teatro de Comédia Brasileira. O Sr. Dr. Macedo, além do parecer, deu também um projeto para a organização provisória do teatro normal, acompanhado de um orçamento de despesa e receita.
Esta simples exposição basta para mostrar o zelo da comissão em desempenhar a incumbência do governo, e neste sentido as vistas deste não podiam ser melhor auxiliadas. Dos dois pareceres o que nos agrada mais é o da maioria da comissão por ser o que nos parece abranger o interesse presente e o interesse futuro, dando à instituição um caráter definitivo, do qual depende a sua realização. Não temos grande fé numa organização provisória; a necessidade das aulas para a educação de artistas novos e aperfeiçoamento dos atuais, Pode ser preenchida mesmo com o projeto da maioria da comissão, e julgamos esse acréscimo indispensável, porquanto é preciso legislar principalmente para o futuro. O governo do Brasil tem-se aplicado um pouco a este assunto, e era conveniente aproveitar-lhe os bons desejos e propor logo uma organização completa e definitiva. Fora sem dúvida para desejar que a Comédia Brasileira ficasse exclusivamente a cargo do governo, que faria dela uma dependência do ministério do império, com orçamento votado pelo corpo legislativo. Nisto não vemos só unia condição de solenidade, irias também uma razão de segurança futura.
Criando um conservatório dramático, assentado em bases largas e definidas, com caráter público, a comissão atentou para uma necessidade indeclinável, sobretudo quando exige para as peças da Comédia Brasileira o exame das condições literárias. Sem isso, a idéia de um teatro-modelo ficaria burlada, e não raro veríamos invadi-lo os bárbaros da literatura. No regímen atual, a polícia tem a seu cargo o exame das peças no que respeita à moral e ordem pública. Não temos presente a lei, mas se ela não se exprime por outro modo, é difícil marear o limite da moralidade de uma peça, e nesse caso as atribuições da autoridade policial, sobre incompetentes, são vagas, o que não torna muito suave a posição dos escritores.
Sabemos que, além da comissão nomeada pelo Sr. Conselheiro Sousa Ramos, foi posteriormente consultada pelo Sr. Marquês de Olinda uma pessoa muito competente nesta matéria, que apresentou ao atual Sr. Presidente do Conselho um longo parecer. Temos razão para crer também que o Sr. Porto Alegre, consultado em 1862, já o tinha sido em 1853 e 1856. Vê-se, pois, que a criação do teatro normal entra há muito tempo nas preocupações do governo. À urgência da matéria não se tirava o caráter de importância. e assim pode-se explicar o escrúpulo do governo em não pôr mãos à obra, sem estar perfeitamente esclarecido. Os nomes das pessoas consultadas, o desenvolvimento das diferentes idéias emitidas, e sobretudo o estado precário da literatura e da arte dramática, tudo está dizendo que a Comédia Brasileira deve ser criada de uma maneira formal e definitiva.
Esta demora em executar uma obra tão necessária ao país pode ter causas diversas, mas seguramente que uma delas é a não permanência dos estadistas no governo, e a natural alternativa da balança política; cremos, porém, que os interesses da arte entram naquela ordem de interesses perpétuos da sociedade, que andam a cargo da entidade moral do governo, e constituem, nesse caso, um dever geral e comum. Se, depois de tantos anos de amarga experiência, e dolorosas decepções, não vier uma lei que ampare a arte e a literatura, lance as bases de uma firme aliança entre o público e o poeta, e faca renascer a já perdida noção do gosto. fechem-se as portas do templo, onde não há nem sacerdotes nem fiéis.
Na esperança de que esta reforma se há de efetuar, aproveitaremos o tempo, enquanto ela não chega, para fazer um estudo dos nossos principais autores dramáticos, sem nos impormos nenhuma ordem de sucessão, nem fixação de épocas, e conforme nos forem propícios o tempo e a disposição. Será uma espécie de balanço do passado: a Comédia Brasileira iniciará uma nova era para a literatura.
Terminaríamos aqui, se um ilustre amigo não nos houvesse mimoseado com alguns versos inéditos e recentes do poeta brasileiro, o Sr. Francisco Muniz Barreto. Todos sabem que o Sr. Muniz Barreto é celebrado por seu raro talento de repentista; os versos em questão foram improvisados em circunstâncias singulares. Achava-se o poeta em casa do cônsul português na Bahia, onde igualmente estava Emília das Neves, a talentosa artista, tão aplaudida nos nossos teatros. Conversava-se, quando o poeta batendo aquelas palmas do costume, que no tempo de Bocage anunciavam os improvisos, compôs de um jacto este belíssimo soneto.
Por sábios e poetas sublimado,
Teu nome ilustre pelo orbe voa:
Outra Ristóri a fama te apregoa,
Outra Raquel, no português tablado.
Ao teu poder magnético, prostrado,
O mais rude auditório se agrilhoa;
Despir-te a fronte da imortal coroa
Não pode o tempo, não consegue o fado.
De atriz o teu condão é sem segundo;
Na cena, a cada instante, uma vitória
Sabes das almas conquistar no fundo.
Impera, Emília! É teu domínio — a história!
Teu sólio — o palco; tua corte — o mundo;
Teu cetro o drama; teu diadema — a glória.
Ouvindo estes versos tão vigorosamente inspirados, Emília das Neves cedeu a um movimento natural e correu a abraçar o poeta, retribuindo-lhe a fineza, com a expressão mais agradável a uma fronte anciã, com um beijo. Foi o mesmo que abrir uma nova fonte de improviso; sem deter-se um minuto, o poeta produziu as seguintes quadras faceiras e graciosas:
Como, sendo tu das Neves,
Musa, que vieste aqui,
Assim queima o peito à gente
Um beijo dado por ti?!
O que na face me deste,
Que acendeu-me o coração,
Não foi ósculo de — neves,
Foi um beijo de vulcão.
Neves — tenho eu na cabeça,
Do tempo pelos vaivéns;
Tu és só — Neves — no nome,
Té nos lábios fogo tens.
Beijando, não és — das Neves;
Do sol, Emília, tu és
Como neves se derretem
Os corações a teus pés.
O meu, que — neve — já era,
Ao toque do beijo teu,
Todo arder senti na chama,
Que da face lhe desceu.
Errou, quem o sobrenome
De — Neves — te pôs, atriz.
Que és das lavas não das neves,
Minha alma, acesa, me diz.
Chamem-te, embora, das Neves;
Vesúvio te hei de eu chamar,
Enquanto a impressão do beijo,
Que me deste, conservar.
Oh! se de irmã esse beijo
Produziu tamanho ardor,
Que incêndio não promovera,
Se fora um beijo de amor! ...
Não te chames mais das Neves,
Mulher que abrasas assim;
Chama-te antes das Luzes,
E não te esqueças de mim.
Se me prometes, Emília,
De hora em hora um beijo igual,
Por sobre neves ou fogo
Dou comigo em Portugal.
Como dissemos, estes versos são ainda inéditos; e cabe aqui aos leitores do Diário do Rio o prazer de os receber em primeira mão.