Notas Semanais



1878

[13]
[2 junho]

HÁ HERANÇAS onerosas. ELEAZAR substituiu SIC, cuja pena, aliás, lhe não deram, e conseguintemente não lhe deram os lavores de estilo, a graça ática, e aquele pico e sabor, que são a alma da crônica. A crônica não se contenta da boa vontade; não se contenta sequer do talento; é-lhe precisa uma aptidão especial e rara, que ninguém melhor possui, nem em maior grau, do que o meu eminente antecessor. Onerosa e perigosa é a herança; mas eu cedo à necessidade da ocasião.

Resta que me torne digno, não direi do aplauso, mas da tolerância dos leitores.

II

Um pouco dessa tolerância, bem podiam tê-la as comissões sanitárias, cuja locomoção me tem feito pensar nas três famosas passadas de Netuno. Vejamos um claro exemplo de intolerância e de outra coisa.

Descobriu uma de tais comissões que certa casa da rua tal, número tantos, vende água de Vidago e de Vichy, sem que as ditas águas venham efetivamente dos pontos designados nos anúncios e nos rótulos. As águas são fabricadas cá mesmo. A comissão entendeu obrigar a casa a dar um rótulo às garrafas, indicando o que as águas eram; e, não sendo obedecida, multou-a.

Há duas coisas no ato da comissão: ingenuidade e injustiça.

Com efeito, dizer a um cavalheiro que escreva nas suas águas de Vidago estas não são de Vidago, são do Beco dos Aflitos — é exigir mais do que pode dar a natureza humana. Suponho que a população do Rio de Janeiro morre por lebre, e que eu, não tendo lebre para lhe dar, lanço mão do gato, qual é o meu empenho? Um somente: dar-lhe gato por lebre. Ora, obrigar-me a pôr na vianda o próprio nome da vianda; ou, quando menos, a escrever-lhe em cima esta pergunta: onde está o gato? é supor-me uma simplicidade que exclui a beleza original do meu plano; é fechar-me a porta. Restar-me-ia, em tal caso, o único recurso de comparar a soma das multas com a soma dos ganhos, e se esta fosse superior, adotar o alvitre de fazer pagar as multas pelo público. O que seria fina flor da habilidade industrial.

Ias pior do que a ingenuidade, é a injustiça da comissão, e maior do que a injustiça é a sua inadvertência. A comissão multou a casa, Porque supõe a existência de fontes minerais em Vidago e em Vichy, quando é sabido que uma e outra das águas assim chamadas são puras combinações artificiais. Vão publicar-se as receitas. Acresce que as águas de que se trata nem são vendidas ao público. Há, na verdade, muitas pessoas que as vão buscar; mas as garrafas voltam intactas, à noite, e tornam a sair no dia seguinte, para entrar outra vez; é um jogo, um puro recreio, uma inocente diversão, denominada o jogo das águas, mais complicado que o jogo da bisca, e menos arriscado que o jogo da fortuna. A vizinhança, ao ver entrar e sair muita gente, está persuadida de que há grande venda do produto, — o que diverte infinitamente os parceiros, todos eles sócios do Clube dos Misantropos Reunidos.

III

Quanto a receitas, não serão aquelas as únicas impressas. O Cruzeiro anunciou que um dos nossos mais hábeis confeiteiros medita coligir todas as suas, em volume de mais de trezentas páginas, que dará à luz, oferecendo-o às senhoras brasileiras.

É fora de dúvida, que a literatura confeitológica sentia necessidade de mais um livro em que fossem compendiadas as novíssimas fórmulas inventadas pelo engenho humano para o fim de adoçar as amarguras deste vale de lágrimas. Tem barreiras a filosofia; a ciência política acha um limite na testa do capanga. Não está no mesmo caso a arte do arroz-doce, e acresce-lhe a vantagem de dispensar demonstrações e definições. Não se demonstra uma cocada, come-se. Comê-la é defini-la.

No meio dos graves problemas sociais cuja solução buscam os espíritos investigadores do nosso século, a publicação de um manual de confeitaria, só pode parecer vulgar a espíritos vulgares; na realidade, é um fenômeno eminentemente significativo. Digamos todo o nosso pensamento: é uma restauração, é a restauração do nosso princípio social. O princípio social do Rio de Janeiro, como se sabe, é o doce de coco e a compota de marmelos. Não foi outra também a origem da nossa indústria doméstica. No século passado e no anterior, as damas, uma vez por ano, dançavam o minuete, ou viam ver correr argolinhas; mas todos os dias faziam renda e todas as semanas faziam doce- de modo que o bilro e o tacho, mais ainda do que os falcões pedreiros de Estácio de Sá, lançaram os alicerces da sociedade carioca.

Ora qual é nossa situação há dez ou quinze anos? Há dez ou quinze anos, penetrou nos nossos hábitos um corpo estranho, o bife cru. Esse anglicismo só tolerável a uns sujeitos, como os rapazes de Oxford, que alternam os estudos com regatas, e travam do remo com as mesmas mãos que folheiam Hesíodo, esse anglicismo, além de não quadrar ao estômago fluminense, repugna aos nossos costumes e origens. Não obstante, o bife cru entrou nos hábitos da terra; bife cru for ever, tal é a divisa da recente geração.

Embalde alguns fiéis cidadãos vão ao Castelões, às quatro horas da tarde, absorver duas ou três mães-bentas, excelente processo para abrir a vontade de jantar. Embalde um partido eclético se lança ao uso do pastel de carne com açúcar, conciliando assim, num só bocado, o jantar e a sobremesa. Embalde as confeitarias continuam a comemorar a morte de Jesus, na quinta-feira santa, armando-se das mais vermelhas sanefas, encarapitando os mais belos cartuchos de bon-bons, que em algum tempo se chamaram confeitos, recebendo enfim um povo ávido de misturar balas de chocolate com as lágrimas de Sião. Eram, e são esforços generosos; mas a corrução dos tempos não permite fazê-los gerar alguma coisa útil. A grande maioria acode às urgências do estômago com o sanduíche, não menos peregrino que o bife cru, e não menos sórdido; ou com o croquete, estrangeirize do mesmo quilate; e a decadência e a morte do doce parecem inevitáveis.

Nesta grave situação, anuncia-se o novo manual de confeitaria. Direi desde já que o merecimento do autor é inferior ao que se pensa. Sem dúvida, há algum mérito nesse cavalheiro, que vem desbancar certo sábio do século anterior. Dizia o sábio que se tivesse a mão cheia de verdades, nunca mais a abriria; o confeiteiro tem as mãos cheias de receitas, e abre-as, espalma-as, sacode-as aos quatro ventos do céu, como dizendo ao fregueses: — Habilitai-vos a fazer por vossas mãos a compota de araçá, em vez de a vir comprar à minha confeitaria. Vendo-vos este livro, para vos não vender mais coisa nenhuma; ou, se me permitis uma metáfora ao sabor do moderno gongorismo, abro-vos as portas dos meus tachos. Concorrentemente, auxilio o desenvolvimento das liberdades públicas, porquanto, alguns vos dirão que tendes o direito do jejum e o direito da indigestão: é apenas uma verdade abstrata. Eu congrego ambos os direitos sob a forma do bom-bocado: é uma verdade concreta. Abstende-vos ou abarrotai-vos; está ao alcance da vossa mão.

Não vai além o mérito do autor do novo manual. Sua iniciativa tem um lado inconsciente, que o constitui simplesmente fenômeno. Há certa ordem de fatos na vida dos povos, cujo princípio gerador está antes na lei histórica do que na deliberação do indivíduo. Aparentemente, é largo o abismo, entre um Confeiteiro Portátil e a última batalha de Pompeu, mas estudai em suas origens os dois produtos, e vereis que, se César desloca a base do poder político, põe por obra uma evolução da sociedade romana, — e se o nosso confeiteiro publica as suas trezentas páginas de receitas, obedece à necessidade de restaurar o princípio social do manuê. Naquele caso, a queda da república; neste, a proscrição do bife sangrento. Diferente meio; ação diversa; lei idêntica, análogo fenômeno; resultado igual.

Trata-se pois de nada menos que voltar ao regímen da sobremesa. Quando o Marechal López, nas últimas convulsões de seu estéril despotismo, soltava esta frase célebre: il faut finir pour commencer, indicava às nossas confeitarias, ainda que de modo obscuro, a verdadeira teoria gastronômica. Com efeito, importa muito que a sobremesa tenha o primeiro lugar; acrescendo que começar uma coisa pelo fim, pode não ser o melhor modo de a acabar bem, mas é com certeza, o melhor modo de a acabar depressa. Vejam, por exemplo, as conseqüências que pode ter este princípio da sobremesa antes da 50pa~ aplicado à organização dos Estados. A Banda Oriental do Uruguai, apenas se sentou à mesa das nações, ingeriu no estômago um cartucho de pralinas constitucionais, abarrotou-se, e nem por isso teve indigestão, ao contrário, digeriu todas as pralinas em poucos anos; digeriu mais uns quinhentos quilos de governos à la minute; mais uns dez ou dez pires de congressos em calda; viveu, enfim, numa completa marmelada política. É verdade que o estômago lhe adoeceu, e que a puseram no regímen de uns caldos substanciais à Latorre, para combater a dispepsia republicana; mas é também verdade que, se não acabou bem, acabou depressa.

IV

Não acabou menos depressa o paço municipal de Macacu, que aliás acabou mais radicalmente; ardeu. Sobre as causas do desastre perde-se a imaginação em conjeturas, sendo a mais verossímil de todas a da combustão espontânea. Se não foi isso, foi talvez o mau costume que têm todos os paços municipais de dormirem com luz e lerem até alta madrugada. O de Macacu parece que até fumava na cama. Imprudência que se não combina com a madureza própria de um paço municipal.

Seja como for, há de ser muito difícil achar agora os papéis do município, e fica truncada a história de Macacu. Também a história é tão loureira, tão disposta a dizer o sim e o não, que o melhor que pode acontecer a uma cidade, a uma vila, a uma povoação qualquer, é não a ter absolutamente, e para isso a maior fortuna seria aplicar o niilismo aos documentos. Entreguemos os sábios vindouros ao simples recurso da conjetura; aplicação higiênica, algo fantástica, e sobretudo pacífica.

Não sei se o paço municipal estaria seguro em alguma companhia. Pode ser que não. Eu inclino-me a crer que devíamos segurar tudo, até as casacas, sobretudo as carteiras e algumas vezes o juízo. Um paço municipal entra no número das primeiras: é a casaca do município. Se a de Macacu já estava sebenta, não era isso razão para que o município fique agora em mangas de camisa; é mais fresco, mas muito menos grave.

V

Sucessos em terra, sucessos no mar. Voa um prédio; inaugura-se a linha de navegação entre este porto e o de New York. No fim de uma coisa que acaba, há outra que começa, e a morte paga com a vida: eterna idéia e velha verdade. Que monta? Ao cabo, só há verdades velhas, caiadas de novo.

O vapor é grande demais para estas colunas mínimas; há muita coisa que dizer dele, mas não é este o lugar idôneo. Tinha que ver se eu entrasse a dar à preguiça dos leitores um caldo suculento de reflexões, observações e conclusões, acerca da boa amizade entre este país e os Estados Unidos! Que o digam vozes próprias e cabais. Mais depressa lhes faiaria do fonógrafo, se o houvera escutado. O fonógrafo. . . creiam que agora é que trato de suster o vôo, porque estou a ver o fim da lauda, e o fonógrafo era capaz de levar-me até o fim da edição. Virá dia em que o faça com descanso.

Que os Estados Unidos começam de galantear-nos, é coisa fora de dúvida; correspondamos ao galanteio; flor por flor, olhadela por olhadela, apertão por apertão. Conjuguemos os nossos interesses, e um pouco também os nossos sentimentos; para este há um elo, a liberdade; para aqueles, há outro, que é o trabalho; e o que são o trabalho e a liberdade senão as duas grandes necessidades do homem? Com um e outro se conquistam a ciência, a prosperidade e a ventura pública. Esta nova linha de navegação afigura-se-me que não é uma simples linha de barcos. Já conhecemos melhor os Estados Unidos já eles começam a conhecer-nos melhor. Conheçamo-nos de todo, e o proveito será comum.

VI

E agora um traço negro. Registrou a semana um fato triste e consolador ao mesmo tempo. Morreu um homem, que era inteligente, ilustrado e laborioso; mas que era também um homem bom. Os qualificativos estão já tão gastos que dizer homem bom, parece que é não dizer nada. Mas quantos merecem rigorosamente esta qualificação tão simples e tão curta? O grande assombra, o glorioso ilumina, o intrépido arrebata; o bom não produz nenhum desses efeitos. Contudo, há uma grandeza, há uma glória, há uma intrepidez em ser simplesmente bom, sem aparato, nem interesse, nem cálculo; e sobretudo sem arrependimento.

Era-o o Dr. Dias da Cruz; e se a sua morte foi um caso triste, o seu saimento foi um caso consolador, porque essa virtude sem mácula pôde subir ao céu sem desgosto. levou as lágrimas dos olhos que enxugara.



[14]
[16 junho]

I

ESTRUGIRAM OS últimos foguetes de Santo Antônio; não tarda chegar a vez de S. João e de S. Pedro. O último destes santos, com ser festivo, não o é tanto como os dois primeiros, nem, sobretudo, como o segundo. Deve-o talvez à sua qualidade especial de discípulo, e primaz dos discípulos. Não o era o Batista, aliás precursor e admoestador, e menos ainda o bem-aventurado de Pádua.

Indague quem quiser o motivo histórico deste foguetear os três santos, uso que herdamos dos nossos maiores; a realidade é que, não obstante o ceticismo do tempo, muita e muita dezena de anos há de correr, primeiro que o povo perca os seus antigos amores. Nestas noites abençoadas é que as crendices sãs abrem todas as velas. As consultas, as sortes, os ovos guardados em água, e outras sublimes ridicularias, ria-se delas quem quiser; eu vejo-as com respeito, com simpatia e se alguma coisa me molestam é por eu não as saber já praticar. Os anos que passam tiram à fé o que há nela pueril, para só lhe deixar o que há sério; e triste daquele a quem nem isso fica: esse perde o melhor das recordações.

II

Venhamos à boa prosa, que é o meu domínio. Vimos o lado poético dos foguetes; vejamos o lado legal.

Os dias passam, e os meses, e os anos, e as situações políticas, e as gerações e os sentimentos, e as idéias. Cada olimpíada traz nas mãos uma nova andaina do tempo. O tempo, que a tradição mitológica nos pinta com alvas barbas, é pelo contrário um eterno rapagão, rosado, gamenho, pueril; só parece velho àqueles que já o estão; em si mesmo traz a perpétua e versátil juventude.

Duas coisas, entretanto, perduram no meio da instabilidade universal: - 1.º a constância da polícia que todos os anos declara editalmente ser proibido queimar fogos, por ocasião das festas de S. João e seus comensais; 2º a disposição do povo em desobedecer às ordens da polícia. A proibição não é simples vontade do chefe; é uma postura municipal de 1856. Anualmente aparece o mesmo edital, escrito com os mesmos termos; o chefe rubrica essa chapa inofensiva, que é impressa, lida e desrespeitada. Da tenacidade com que a polícia proíbe, e da teimosia com que o povo infringe a proibição, fica um resíduo comum: o trecho impresso e os fogos queimados.

Se eu tivesse a honra de falar do alto de uma tribuna, não perdia esta ocasião de expor longa e prudhommescamente o princípio da soberania da nação, cujos delegados são os poderes públicos, diria que, se a nação transmitiu o direito de legislar, de judiciar, de administrar, não é muito que reservasse para si o de atacar uma carta de bichas; diria que, sendo a nação a fonte constitucional da vida politica, excede o limite máximo do atrevimento empecer-lhe o uso mais inofensivo do mundo, o uso do busca-pé. Levantando a discussão à altura da grande retórica, diria que o pior busca-pé não é o que verdadeiramente busca o pé, mas o que busca a liberdade, a propriedade, o sossego, todos esses pés morais (se assim me pudesse exprimir), que nem sempre sóem caminhar tranqüilos na estrada social; diria, enfim, que as girândolas criminosas não são as que ardem em honra de um santo , mas as que se queimam para glorificação dos grandes crimes.

Que tal? Infelizmente não disponho de tribuna, sou apenas um pobre-diabo, condenado ao lado prático das coisas; de mais a mais míope, cabeçudo e prosaico. Daí vem que, enquanto um homem de outro porte vê no busca-pé uma simples beleza constitucional, eu vejo nele um argumento mais em favor da minha tese, a saber, que o leitor nasceu com a bossa da ilegalidade. Note que não me refiro aos sobrinhos do leitor, nem a seus compadres, nem a seus amigos; mas tão-somente ao próprio leitor. Todos os demais cidadãos ficam isentos da mácula se a há.

Que um urbano, excedendo o limite legal das suas atribuições, se lembre de pôr em contacto a sua espada com as costas do leitor, é fora de dúvida que o dito leitor bradará contra esse abuso do poder; fará gemer os prelos; mostrará a lei maltratada na sua pessoa. Não menos certo é que, assinado o protesto, irá com a mesma mão acender uma pistola de lágrimas; e se outro urbano vier mostrar-lhe polidamente o edital do chefe, o referido leitor aconselhar-lhe-á que o vá ler à família, que o empregue em cartuchos, que lhe não estafe a paciência. Tal é a nossa concepção da legalidade; um guarda-chuva escasso, que não dando para cobrir a todas as pessoas, apenas pode cobrir as nossas; noutros termos, um pau de dois bicos.

Agora, o que o leitor não compreende é que esse urbano excessivo no uso das suas atribuições, esse subalterno que transgride as barreiras da lei, é simplesmente um produto do próprio leitor; não compreende que o agregado nada mais representa do que as somas das unidades, com suas tendências, virtudes e lacunas. O leitor (perdoe a sua ausência) é um estimável cavalheiro, patriota, resoluto, manso, mas persuadido de que as coisas públicas andam mal, ao passo que as coisas particulares andam bem; sem advertir que, a ser exata a primeira parte, a segunda forçosamente não o é; e, a sê-lo a segunda, não o é a primeira. Um pouco mais de atenção daria ao leitor um pouco mais de eqüidade.

Mas é tempo de deixar as cartas de bichas.

III

Uns devotos riem, enquanto outros devotos choram.

A providência, em seus inescrutáveis desígnios, tinha assentado dar a esta cidade um benefício grande; e nenhum lhe pareceu maior nem melhor do que certo gozo superfino, espiritual e grave, que patenteasse a brandura dos nossos costumes e a graça das nossas maneiras: deu-nos os touros.

Talvez poucas pessoas se lembrem que há bons vinte e cinco anos ou mais, creio que mais, houve uma tentativa de tauromaquia nesta cidade. A tentativa durou pouco. Uma civilização imberbe não tolera melhoramentos de certo porte. Cada fruto tem a sua sazão. O circo desapareceu, mas a semente ficou, e germinou, e brotou e cresceu, e fez-se a magnífica árvore, a cuja sombra se pode hoje estirar a nossa filosofia.

Na verdade, os prazeres intelectuais hão de sempre dominar nesta geração. Atualmente, é sabido que o teatro, copioso, elevado, profundo, puro Sófocles, tem enriquecido quarenta e tantas empresas, ao passo que só quebram as que recorrem às mágicas. Ninguém ainda esqueceu os ferimentos, as rusgas, os apertões que houve por ocasião da primeira récita do Jesuíta, cuja concorrência de espectadores foi tamanha, que o empresário do teatro comprou, um ano depois, o palácio Friburgo.

Faltavam-nos os touros. Os touros vieram, e com eles toda a fraseologia, a nova, a elegante, a longa fraseologia tauromáquica; enfim, veio o bandarilheiro Pontes. Não tive a honra de ver este cavalheiro, que os doutores da instituição proclamam artista de alta escala; mas ele pertence ao número das coisas, em que eu creio sem ver, digo mais, das coisas, em que eu tanto mais creio, quando menos avisto. Porque é de saber que, em relação a essa nobre diversão do espírito, eu sou nada menos que um patarata; nunca vi corridas de touros provavelmente, não as verei jamais. Não é que me falte incentivo. Em primeiro lugar, possuo um amigo, espírito delicado, que as adora e freqüenta; depois, sempre me há de lembrar Santo Agostinho. Conta o grande bispo que o seu amigo Alípio, seduzido a voltar ao anfiteatro, ali foi de olhos fechados, resoluto a não os abrir; mas o clamor das turbas e a curiosidade os abriram de novo e de uma vez, tão certo é que esses espetáculos de sangue alguma coisa têm que fascinam e arrastam o homem. Pode ser que algum dia também eu vá atirar lenços e charutos aos pés de algum bandarilheiro célebre; pode ser...

Por hora, não estou entre os inconsoláveis admiradores do Pontes que lá se vai, mar em fora. Perdão, do artista Pontes. Sejamos do nosso século e da nossa língua. No tempo em que uma vã teoria regulava as coisas do espírito, estes nomes de artista e de arte tinham restrito emprego: exprimiam certa aplicação de certas faculdades. Mas as línguas e os costumes modificam-se com as instituições. Num regímen menos exclusivo, essencialmente democrático, a arte teve de vulgarizar-se: é a subdivisão da moeda de Licurgo. Cada um possui com que beber um trago. Daí vem que farpear um touro ou esculpir o Moisés é o mesmo fato intelectual: só difere a matéria e o instrumento. Intrinsecamente, é a mesma coisa. Tempo virá em que um artista nos sirva a sopa de legumes, e outro artista nos leve, em tílburi, à fábrica do gás.

IV

Nesse tempo não viverá, decerto, um pobre velho que veio ontem lançar-se a meus pés. Mandei-o levantar, consolei-o, dei-lhes alguma coisa - um níquel - e ofereci-lhe o meu valimento, se dele necessitasse.

- Agradeço os bons desejos, disse ele; mas todos os esforços serão inúteis. Minha desgraça não tem remédio. Um bárbaro ministro reduziu-me a este estado, sem atenção aos meus serviços, sem reparar que sou pai de família e votante circunspecto; e se o fez sem escrúpulo, é porque o fez sem nenhuma veleidade de emendar a mão. Arrancou-me o pão, o arrimo, o pecúlio de meus netos, enfim, matou-me. Saiba que sou o arsenal de marinha. O ministro tirou-me as bandeiras, sob pretexto de que eu exigia um preço excessivamente elevado, como se a bandeira da nação, esse estandarte glorioso que os nossos bravos fincaram em Humaitá, pudesse decentemente custar 7$804, ainda sendo de dois panos! Era caro o meu preço, é possível; mas o pundonor nacional, não vale alguma coisa o pundonor nacional? O ministro não atendeu a essa grave razão, não atendeu ao decoro público. Tirou-me as bandeiras. Não tente nada, em meu favor, que perde o tempo; deixe-me entregue à minha desgraça. Esta nação não tem ideal, meu senhor; não tem coisa nenhuma. O pendão auriverde, o nobre pendão, custa menos do que um chapéu-de-sol, menos do que uma dúzia de lenços de tabaco; sete mil e tanto: é o opróbrio dos opróbrios.

Não menor opróbrio para a ciência foi a prisão de Miroli e Locatelli. Descanse a leitora; não se trata de nenhum tenor nem soprano, subtraído às futuras delícias da fashion. Não se trata de dois canários; trata-se de dois melros.

Não é melro quem quer. O primeiro daqueles merece dois dedos de admiração. Sucessivamente médico, domador de feras, volantim, mestre de dança, e ultimamente adivinho, não se pode dizer que seja homem vulgar; é um fura-vidas, que se atira à strugh for life com unhas e dentes, sobretudo com unhas. De unhas dadas com a dama Locatelli, fundou uma Delfos na Rua do Espírito Santo, e entrou a predizer as coisas futuras, a descobrir as coisas perdidas, e a farejar as coisas vedadas. O processo era o sonambulismo ou o espiritismo. Os crédulos, que já no tempo da Escritura eram a maioria do gênero humano, acudiram às lições de tão ilustre par, até que a polícia o convidou a ir meditar nos destinos de Galileu e outras vítimas da autoridade pública.

Pior que tudo é que, se a polícia os castiga neste mundo, o demo os castigará no outro; e aqui chamo eu a atenção do leitor para a estrita realidade da poesia. O famoso casal ficou neste mundo de cara à banda, como há de ficar no outro, segundo a versão dantesca; lá aos adivinhos como Miroli, torcem o nariz para trás, e os olhos choram-lhes pelas costas:

........... che'l pianto degli occhi
Le natiche bagnava per lo ferro.

VI

Anuncia-se um congresso agrícola, um congresso oficial, presidido pelo Ministro da Agricultura, reunião que não tratará de coronéis, nem de eleições, mas de lavoura, de máquinas e de braços. A crônica menciona o fato com prazer; e atreve-se a manifestar o desejo de que seja imitado em análogas circunstâncias. A administração não perde nunca, antes ganha, quando entra em contacto com as forças vivas da nação, ouvir diretamente uma classe é o melhor caminho para conhecer as necessidades dela e provê-la de modo útil.

Só poderia haver um receio é que os interessados não acudissem todos ao convite. Mas além de ser gratuito supor que o doente se esquive a narrar o mal, podemos contar com o elemento paulista, que há de ser talvez o mais numeroso. Não é menos importante a lavoura fluminense, nem a das outras províncias convocadas; mas os homens que as dirigem são mais sedentários; falta-lhes um pouco de atividade bandeirante. Agora, porém, corre-lhes o dever de se desmentirem a si próprios.

Venhamos à política prática, útil, progressiva; metamos na alcofa os trechos de retórica, as frases-feitas, todos os fardões da grande gala eleitoral. Não digo que os queimemos, demo-lhes somente algum descanso. Encaremos os problemas que nos cercam e pedem solução. Liberais e conservadores de Campinas, de Araruama, de Juiz de Fora, batei-vos nas eleições de agosto com ardor, com tenacidade; mas por alguns dias, ao menos, lembrai-vos que sois lavradores, isto é, colaboradores de uma natureza forte, imparcial e céptica.



[15]
[7 julho]

I

HOJE É DIA de festa cá em casa, recebo Luculo à minha mesa. Como o jantar do costume é rústico e parco, sem os requintes do gosto nem a abundância da gula, entendi que, por melhor agasalhar o hóspede, devia imitar o avaro de uma velha farsa portuguesa: mandar deitar ao caldeirão "mais uns cinco réis de espinafres". Noutros termos, enfunar um pouco o estilo. Não foi preciso; Luculo traz consigo os faisões, os tordos, os figos, os licores, e as finas toalhas, e os vasos murrinos, o luxo todo, em suma, de um homem de gosto e de dinheiro.

É o caso que tenho diante de mim o relatório do diretor das escolas normais de uma das nossas províncias, cujo nome, aliás, não digo, por não ofender a modéstia daquele cavalheiro. Não havia nada que saborear num relatório, se o de que trato fosse parecido com os outros, seus anteriores e contemporâneos. Mas não; o distinto funcionário entendeu, e entendeu muito bem, que lhe cumpria temperar o estilo oficial com algumas especiarias literárias. Na verdade, o estilo oficial ou administrativo é pesado e seco, e o tipo geral dos relatórios poderíamos figurá-lo bem em um sujeito pautado, gravata de sete voltas, casacão até os pés, bota inglesa, sobraçando um guarda-chuva de família. Não foi esse o modelo do diretor das escolas normais. Escritor ameno, imaginoso, erudito, deu um pouco mais de vida ao tipo clássico, atou-lhe ao pescoço um lenço azul, trocou-lhe o casacão em fraque, substituiu-lhe o guarda-chuva por uma bengala de Petrópolis. Ao peito pôs-lhe uma rosa fresca. Talvez não agrade tanto aos pés-de-boi da administração: não faltará quem lhe ache um ar pelintra, nos ademanes de petit crevé. É natural, e até necessário. Nenhuma reforma se fez útil e definitiva sem padecer primeiro as resistências da tradição, a coligação da rotina, da preguiça e da incapacidade. É o batismo das boas idéias; é ao mesmo tempo o seu purgatório.

Isto dito, intercalarei nesta crônica de hoje algumas boas amostras do documento de que trato, impresso com outros submetidos ao presidente, e para em tudo conservar o estilo figurado das primeiras linhas, e porque o folhetim requer um ar brincão e galhofeiro, ainda tratando de coisas sérias, darei a cada uma de tais amostras o nome de um prato fino e especial, - um extra, como dizem as listas dos restaurants.

Sirvamos o primeiro prato.

LÍNGUAS DE ROUXINOL

Vassalo das normas legais e regulamentares, tenho a honra de vir, tirando forças da minha fraqueza, cumprir esse meu embargoso dever, depondo nas amestradas mãos de V. Ex.a, pelo ilustre veículo, que me é prescrito (a laureada diretoria de instrução pública), o fruto desenvolvido das emendas do meu secretário, esse tributo obediencial, que compete a V. Ex.a . ... assim, pois, com a paciência com que a misericórdia sói acompanhar a justiça, em sua marcha salutar , espero V.Ex.a, para compreender-me, me siga pelos andurriais por onde, perdido de monte em monte, serei forçado a peregrinar.

II

Não há patinação, não há corridas de cavalos, não há nada que nestes dias possa dominar o sucesso máximo, o sujeito que em Caravelas, na Bahia, deu à luz uma criança. Quando eu era pequeno, ouvia dizer que o galo, chegando à velhice, punha ovos, como as galinhas; não o averigüei mais tarde, mas já agora devo crer que o conto não era da carocha, senão pura e real verdade.

O sujeito de Caravelas é um quadragenário, que tinha cor de icterícia, e padecia há muito uma forte opressão no peito. Ultimamente, di-lo o médico, sentiu uma dor agudíssima na região precordial, movimentos desordenados do coração, dispnéia, forte edemacia em todo o lado esquerdo. Entrou em uso de remédios, até que, com geral surpresa, trouxe a este vale de lágrimas uma criança, que não era exatamente uma criança, porque eram as tíbias, as omoplatas, as costelas, os fêmures, trechos soltos da infeliz criatura, que não chegou a viver.

A mitologia deu-nos um Baco meio gerado na coxa de Júpiter; e da cabeça deste fez nascer Minerva armada. Eram fábulas naquele tempo; hoje devemos tê-las por simples realidade, e, quando menos, um prenúncio do nosso patrício. Assim o creio e proclamo. E porque não suponho que o caso de Caravelas deve ser o único, acontece-me que não posso ver agora nenhum amigo, opresso e pálido, sem supor que me vai cair nos braços, a bradar com um grito angustioso: "Eleazar, sou mãe!". Esta palavra retine-me aos ouvidos, e gela-me a alma... imaginem o que será de nós, se tivermos de dar à luz os nossos livros e os nossos pequenos; gerar herdeiros e conspirações;conceber um plano de campanha e Bonaparte.

Imaginem...

COXINHAS DE ROLA

Digitus Dei. As feridas abertas em minha alma precisavam do doce lenitivo desse bálsamo metafísico, superior em propriedades aglutinadoras aos mais afamados de Fioravanti.

III

Dize-me se patinas, dir-te-ei quem és. Tal será dentro de pouco tempo o mote da suprema elegância. As corridas de cavalos correriam o risco de ficar por baixo, e até perecer de todo, se não fora a poule, tempero acomodado ao homem em geral, e ao fluminense em particular. Digo fluminense, porque essa variedade do gênero humano é educada especialmente entre a loteria e as sortes de S. João: e a poule dá as comoções de ambas as coisas, com o acréscimo de fazer com que um homem ponha toda a alma nas unhas do cavalo. Não é nas unhas do cavalo que havemos de pô-la quando formos ao Skating-rink, mas nas próprias unhas, ou melhor dito, nos patins que as substituem. No Prado Fluminense a gente faz correr o seu dinheiro nas ancas do quadrúpede, e por mais que se identifique com este, o amor-próprio só pode receber alguns arranhões, mais ou menos leves. Na patinação, a queda orça pelo ridículo, e cada sorriso equivale a uma surriada. Sem contar que não se arrisca somente o amor-próprio, mas também o pêlo, que não é menos próprio, nem menos digno do nosso amor.

E daí, não sei por que não se há de introduzir a poule na patinação. É um travozinho de pimenta. Aposta-se no vestido azul e no chapéu de escumilha, e perde o último que chegar ou o primeiro que cair. Será mais um campo de rivalidade entre os vestidos e os chapéus... os chapéus de escumilha, entenda-se.

Quanto à Emília Rosa... Interrompamo-nos; chega outro pratinho.

PEITO DE PERDIZ À MILANESA

Não passarei adiante , sem lembrar a V . Ex.a . a que a nova organização dada ao curso pelo último dos regulamentos, tendo feito passar disciplinas do 2o para o 1o ano, e vice-versa, obrigou os normalistas que iam concluir seu tirocínio a freqüentarem em comum com os que o começavam, as aulas dessas disciplinas transplantadas, fazendo destarte o que em linguagem coreográfica se chama laisser croiser.

IV

Emília Rosa é uma senhora, vinda da Europa, com a nota secreta de que trazia um contrabando de notas falsas. Rien n'est sacré pour un sapeur; nem as malas do belo sexo, nem as algibeiras, nem as ligas. A polícia, com a denúncia em mão, tratou de examinar o caso. Desconfiar com mulheres! O Tolentino contou o caso de uma que dissimulou um colchão no toucador. Onde entra um colchão, podem entrar vinte, trinta, cinqüenta contos. A polícia esmiuçou o negócio como pôde e lhe cumpria, esteve a ponto de fazer cantar a passageira, a ver se lhe encontrava as notas falsas na garganta. Afinal, a denúncia das notas era tão verdadeira como a notícia das cabeças a prêmio, em Macaúbas, onde parece que apenas há um mote a prêmio, e nada mais: o mote eleitoral.

Trata-se, não de notas falsas, mas de salames verdadeiros, ou quaisquer outros comestíveis, que a passageira trazia efetivamente por contrabando. A diferença entre um paio e um bilhete do banco é enorme, posto que às vezes os bilhetes do banco andem nas algibeiras dos "paios", donde passam para o toucador das senhoritas. Valha-nos isso; podemos dormir confiados na honestidade das nossas carteiras.

Isto de notas falsas, libras falsas, e letras falsas, creio que tudo vai entroncar-se numa palavra de Guizot: Enriquecei! palavra sinistra, se não é acompanhada de alguma coisa que a tempere. Enriquecer é bom; mas há de ser a passo de boi, quando muito a passo de carroça d'água. Não é esse o desejo das impaciências, que nos dão libras de metal amarelo; o passo que as seduz é o dos cavalos do Prado,- o da Mobilisée, que se esfalfa para chegar a raia. Vejam o Secret, seu astuto competidor. Esse deixa-se ficar; não se fatiga, à toa, imagem do ambicioso de boa têmpera, que sabe esperar. Talvez por isso o desligaram da Mobilisée, nas corridas de hoje. Esta radical não quer emparelhar com aquele oportunista.

Sinto um cheiro delicioso...

FAISÃO ASSADO

Declaro a V. Ex.a algum tanto aflato de amor-próprio, que nenhum fato agraz perturbou durante o ano letivo a disciplina e boa ordem dos dois estabelecimentos a meu cargo. Diretor, professores, alunos e porteiros, todos souberam respeitar-se mutuamente. V. Ex.a não ignora que o respeito é a base da amizade.

Como Cícero, sou um dos mais ardentes apologistas da lei natural, da eqüidade; como ele, entendo que a lei é a equidade;- a razão suprema gravada em nossa natureza, inscrita em todos os corações, imutável, eterna, cuja voz nos traça nossos deveres, de que o Senado não nos pode desligar, e cujo império se estende a todos os povos; lei que só Deus concebera, discutira e publicara.

Partindo deste cantinho das minhas crenças, proponho a V. Ex.a que faça submeter o Sr. professor do 1.o ano a exame de uma junta médica...

Se achares três mil-réis, leva-os à polícia; se achares três contos, leva-os a um banco. Esta máxima, que eu dou de graça ao leitor, não é a do cavalheiro, que nesta semana restituiu fielmente dois contos e setecentos mil-réis à Caixa da Amortização; fato comezinho e sem valor, se vivêssemos antes do dilúvio, mas digno de nota desde que o dilúvio já lá vai. Não menos digno de nota é o caso do homem que, depois de subtrair uma salva de prata , foi restituí-lo ao ourives , seu dono. Direi até que este fica mais perto do céu do que o primeiro, se é certo que há lá mais alegria por um arrependimento do que por um imaculado.

Façam de conta que este último rasgo de virtude são uns óculos de cor azul para melhor encararmos a tragédia dos Viriatos. Hão de ter lido que esses malfeitores entrincheiraram-se em uma vila cearense, aonde o governo foi obrigado a mandar uma força de 240 praças de linha, que a investiram à escala vista; muito fogo, mortos, feridos; prisão de alguns, fuga dos restantes. Há revoluções na Bolívia que não apresentam maior número de gente em campo; digo de gente, sem me referir aos generais. Pobre Ceará! Além da seca os ladrões de estrada.

Está-me a cair da pena um rosário de reflexões acerca da generalidade e da coronelite, dois fenômenos de uma terrível castelhana; mas iria longe...

Prefiro servir-lhes uns pastelinhos.

PASTELINHOS

A hipocrisia não tem um leito de flores no regaço da minha alma.

Sempre as finanças da província!... eterno clarão das almas timoratas!

As finanças e sempre as finanças, esse hipogrifo que...

... preferirá ver lacradas as portas das escolas primárias a ver sentados nas espinhosas cadeiras do magistério indivíduos cujos corações não foram cuidadosamente arroteados, antes de lhes acenderem almenaras em suas cabeças

...o mestre, esse grande Davi da lira psíquica da infancia...

VI

Parece que o Primo Basílio, transportado ao teatro, não correspondeu ao que legitimamente se esperava do sucesso do livro e do talento do Sr. Dr. Cardoso de Meneses. Era visto: em primeiro lugar, porque em geral as obras, geradas originalmente sob uma forma, dificilmente toleram outra; depois, porque as qualidades do livro do Sr. Eça de Queirós e do talento deste, aliás fortes, são as mais avessas ao teatro. O robusto Balzac, com quem se há comparado o Sr. Eça de Queirós, fez má figura no teatro, onde apenas se salvará o Mercadet; ninguém que conheça mediocremente a história literária do nosso tempo, ignora o monumental desastre de Quinola.

Se o mau êxito cênico do Primo Basilio nada prova contra o livro e o autor do drama, é positivo também que nada prova contra a escola realista e seus sectários. Não há motivo para tristezas nem desapontamentos; a obra original fica isenta do efeito teatral; e os realistas podem continuar na doce convicção de que a última palavra da estética é suprimi-la. Outra convicção, igualmente doce, é que todo o movimento literário do mundo está contido nos nossos livros; daí resulta a forte persuasão em que se acham de que o realismo triunfa no universo inteiro; e que toda a gente jura por Zola e Baudelaire. Este último nome é um dos feitiços da nova e nossa igreja; e, entretanto,sem desconhecer o belo talento do poeta, ninguém em França o colocou ao pé dos grandes poetas; e toda a gente continua a deliciar-se nas estrofes de Musset, e a preferir L'Espoir en Dieu a Charogne. Caprichos de gente velha.

COMPOTA DE MARMELOS

Era assim preciso; os recursos do regulamento isolavam, não atraíam. Mais tarde, entendo-me particularmente com os deputados, deram-me eles duas pequenas maçanetas para embutir nas portas das escolas; o § 8.o do art. 1.o da resolução n.o 1.079, e o § 8.o do referido artigo.

... a instituição que, devidamente reparada da terrível exaustão da vida que tem sofrido desde o seu primeiro instante, pode se dizer sem medo de errar, é o palácio da grandeza moral e da opulência material da pequena província que, em face do velho Atlântico, embriagada de perfumes, circundada de luzes, ergue para Deus, donde há de vir sua prosperidade, os olhos prenhes de esperança.

VII

Reúne-se amanhã o congresso agrícola; e folgo de crer que dará resultados úteis e práticos. Conhecida a nossa índole caseira, a tal ou qual inércia de espírito, que é menos um fenômeno da raça, que da idade social, a afluência dos lavradores parece exceder à expectação. A obra será completa, se todos puserem ombros à empresa comurn.

BRINDE FINAL

Aqui tenho a honra de concluir, fazendo votos para que, afeiçoando as idéias que, não edulcoradas para perderem o ressábio da origem, aí ficam mal expostas, digne-se tirar-lhes os ácidos...

VIII

Mas eu seria injusto, se não fechasse estas linhas notando um ato benemérito do digno diretor, que o confessa no relatório, tem auxiliado com dinheiro seu a matrícula de estudantes. Vê-se que é um entusiasta da pedagogia; e, se lhe recusarem o estilo, não lhe dão de recusar a dedicação. Há muitos estilos para relatar; há só um para merecer.



[16]
[21 julho]

I

UM RECENTE livro estrangeiro, relativo ao nosso Brasil, dá-me ensejo para dizer aos leitores que, se eu datei do Rio de Janeiro a minha última crônica, se faço o mesmo a esta e às futuras, é porque esse é o nome histórico, oficial, público e doméstico da boa cidade que me viu nascer, e me verá morrer, se Deus me der vida e saúde. O viajante estrangeiro, referindo-se ao erro que deu lugar ao nome desta cidade, admira-se de que haja sido conservado tão religiosamente, sendo tão simples emendá-lo. Que diria ele, se pudesse compreender a carência de eufonia de um nome tão áspero, tão surdo, tão comprido? Infelizmente,- e nesta parte engana-se o viajante,- o costume secular e a sanção do mundo consagraram de tal modo este nome, que seria bem árduo trocá-lo por outro, e bem audaz quem o propusesse seriamente.

Pela minha parte, folgaria muito se pudesse datar estas crônicas de Guanabara, por exemplo, nome simples, eufônico, e de algum modo histórico, espécie de vínculo entre os primeiros povoadores da região e seus atuais herdeiros. Guanabara tem, é certo, o pecado de cheirar a poesia, de ter sido estafado nos octossílabos que o Romantismo expectorou entre 1844 e l853; mas um banho de boa prosa limpava-o desse bolor, enrijava-lhe os músculos, punha-o capaz de resistir a cinco séculos de uso quotidiano. O ponto era acostumar-se a gente a lê-lo com solenidade, num título cientifico ou num edital de arrematação; porque o costume, leitor amigo, é metade da natureza. Só o uso do ouvido nos faz suportáveis ou indiferentes a baba-de-moça e o coco-de-catarro.

II

Ou Guanabara ou Rio de Janeiro, a cidade está ainda hoje debaixo de uma grande impressão de espanto, por motivo de um caso extraordinário, la chose la plus extraordinaire et la plus commune, la plus grande et la plus petite,- para usar a linguagem da mulher que mais se carteou, desde que há mulheres e cartas.

Com efeito, o anão da Libéria deu uma canivetada no contrato, deixando-se raptar, como qualquer sabina. Ou inclinação pessoal, ou capricho, ou simples rebelião das potências da alma, qualquer que fosse o motivo secreto da ação, o fato é que o homúnculo mostrou de modo afirmativo que um filho da Libéria deve amar, antes de tudo, a liberdade. Questão de cor local. Entendeu o anão, Sir Nathan Burraw, que o fato de não ter braços não lhe tira a qualidade de homem, a qual reside simplesmente nas barbas, que o dito anão espera vir a ter em tempo idôneo, e sabe lá, se barbas azuis, como as do marido de sete mulheres. Por enquanto, não muda de mulheres, mas de contratantes, e, preço por preço, inclina-se aos minas, que são seus malungos. Podemos dizer que é alma de Bruto no corpo de Calibã.

Agora, como se operou o rapto, é o que até hoje ninguém sabe. Dizem uns que ele foi arrebatado como uma simples ilha de Chipre, mediante um tratado secreto; e há quem queira ver no ato dos pretos minas uma imitação do velho Disraeli. É exageração; o mais que eu poderia admitir seria um pequeno reflexo. Outros dizem que não houve tratado, mas escada de seda, como num rapto de ópera-cômica.Qualquer que fosse o modo, a verdade é que com o empresário do anão, deu-se o inverso do que usualmente acontece. Há homens que deixam o ofício; aqui foi o ofício que deixou o homem. Vejam que triste exemplo deu a Pati! Todas as galinhas dos ovos de ouro querem agora pôr os ovos para si. No fundo deste incidente há uma questão social.

III

Mal convalescia o espírito público do abalo que lhe causou a notícia do rapto, surdiu o caso das coletorias de Minas, apostadas em roer algumas aparas do orçamento, caso triste, por qualquer lado que o encaremos, e sobre o qual pertence a palavra à autoridade pública.

Concorrentemente, quatro coletores da província do Rio de Janeiro deixaram as casas por motivo de lacuna nos cofres. Enfim, um empregado de uma casa desta corte, indo levar ao Tesouro certa quantia - 20 contos - desapareceu com eles.

Quanto a esta notícia, é incompleta. O negociante, estando ontem a almoçar, recebeu vinte cartões de visita, eram os 20 contos que voltavam por seu pé. Um dos contos referia-lhe então que o caixeiro, ao chegar à rua, os convidara a entrar no tesouro, ao que se opuseram 5 contos, e logo depois os restantes. Não querendo acompanhar o empregado, apesar dos mais incríveis esforços, este os deixou sozinhos, no meio de uma rua, que supõem ser a Ladeira do Escorrega, sítio nefasto aos contos. Então um deles propôs que voltassem para casa; teve a proposta 15 contos a favor e 5 contra, os mesmos 5, que primeiro se tinham oposto à entrada no Tesouro, os quais declararam que eram livres, em face dos princípios da revolução de 89.

O comerciante ouviu comovido esta narração dos acontecimentos, apertou as mãos de todos os contos e protestou sua adesão aos princípios de 89; acrescentando que, se haviam procedido mal, recusando entrar no Tesouro, tinham expiado a culpa, regressando voluntariamente ao casal paterno, donde aliás deviam seguir amanhã para o primeiro destino.

- Nunca! bradou um dos contos.

E sacando uma pistola, suicidou-se. Foi sepultado ontem mesmo. Um regimento de quatrocentos mil-réis a cavalo prestou as últimas honras ao infeliz suicida.

IV

Saibam, agora, que a Câmara resolveu autorizar o tesoureiro a comprar uma arca forte para recolher nela as suas rendas. Cáspite! Esta notícia derruba todas as minhas idéias acerca das rendas do município. A primeira convicção política incutida em meu espírito foi que o município não tinha recursos, e que por esse motivo andava descalçado, ou devia o calçado; convicção que me acompanhou até hoje. A frase - escassez das rendas municipais - há muito tempo que nenhum tipógrafo a compõe; está já estereotipada e pronta, para entrar no período competente, quando alguém articula as suas idéas acerca dos negócios locais. Imaginei sempre que todas as rendas da Câmara podiam caber na minha carteira, que é uma carteirinha de moça. Vai senão quando, a Câmara ordena que se lhe compre uma arca, e recomenda que seja forte, deita fora as suas muletas de mendiga, erige o corpo, como um Sisto V, e, como um primo Basílio tilinta as chaves da burra nas algibeiras. Diógenes batiza-se Creso; a cigarra virou formiga.

E notem que a riqueza da Câmara tende a crescer, à vista da proposta de um comerciante, que oferece ministrar todo o papel, apenas, tintas e mais artigos necessários às eleições (excluídas as cabeçadas), 30% menos do preço por que tais artigos têm sido fornecidos até hoje. Até hoje, quer dizer desde que há eleições, - o que não sei se abrange também os pelouros do antigo regímen. Se a Câmara lhe aceita a proposta, esse homem acaba estendendo a mão à caridade pública. Trinta por cento menos, é impossível que lhe não dê um prejuízo certo de outros quinze; salvo se os antecessores ganhavam demais.

V

Parece que se trata de organizar uma sociedade tauromáquica. Nada direi a tal respeito; os leitores conhecem as minhas idéias acerca da tauromarquia; idéias, digo mal; conhecem os meus sentimentos. Acho que é um dos mais belos espetáculos que se podem oferecer à contemplação do homem; e que uma sociedade já enfarada de tantas obras de arte, de um teatro superior, quase único, de tantas obras-primas do engenho humano, uma sociedade assim, precisa de um forte abalo muscular, precisa de repousar os olhos num espetáculo higiênico, deleitoso e instrutivo. Nem vejo motivo para que adotado o cavalo no Prado Fluminense, não se adote o boi em qualquer outro sítio. O boi não é tão épico nem tão elegante como o cavalo, mas tem outras qualidades próprias. Nem se trata do merecimento intrínseco dos dois quadrúpedes; trata-se da graça relativa dos dois divertimentos; e, a tal respeito, força é dizer que de um lado, o cavalo pleiteia com o cavalo, ao passo que de outro, o boi luta com o homem, - a força com a destreza, a inteligência com o instinto. Juntem a estes méritos a vantagem de enriquecer o vocabulário com uma chusma de expressões pitorescas, tais como a pega de cara, a pega de cernelha e outras, incluídas no novo método, e ver-se-á que a luta dos touros não é somenos à corrida de cavalos.

Para quem nada queria dizer, aí fica um período assaz longo e não menos entusiástico. Caiu da pena, e já agora não o risco, porque tenho pressa de chegar ao meu propósito, que é fazer uma barretada aos jesuítas. Já daqui estou a ver franzidas as sobrancelhas liberais do leitor, não mais liberais do que as minhas, que o são, e de bom cabelo; mas enfim, pode-se ser liberal e justo. Uma coisa implica a outra.

Que os espanhóis são doidos por touros ninguém há que o ignore, e ainda há pouco tivemos notícia da magnífica tourada de Madri, por ocasião do consórcio da malograda esposa do rei. O touro nivela todas as classes da Espanha; nos dias de tourada, só há uma entidade superior a todos os espanhóis, é o capinha ou como melhor nome haja, sujeito que, em chegando à celebridade, fica sendo o beijinho de todas as duquesas de Castela, ombreia com todos os Olivares e Osunas, e em certos dias reúne em si todas as forças vivas da razão. Nem lhe serão adversos os cônegos e monsenhores; os quais, não sei se ainda hoje, mas no século XVII, eram grandemente assíduos naquelas tremendas festas, não obstante uma bula papal de excomunhão.

Neste ponto é que eu tiro o meu barrete aos jesuítas. Um velho escritor inglês, Lord Charendon, que historiou a revolução de Cromwell, conta que as arquibancadas do clero e da Inquisiçao estavam sempre cheias de espectadores, sem contar os frades, que lá iam com seus hábitos. Só não iam os jesuítas, - os quais (conta o lord) marcavam sempre para aqueles dias algum solene exercício, que os obrigava a estar incorporados, - that obriges their whole body to be together. Não se pode pintar mais vivamente a sedução das touradas e a habilidade da Ordem. Esta sabia qual era a influência do meio social e a atração do exemplo, e vencia-as a seu modo, sem imposição. Digam-me se não é caso de lhe tirar o meu barrete.

Tirá-lo e copiá-lo. Nos dias de tourada, se o meu olho piscar de curiosidade, se o meu pé palpitar de impaciência, reúno-os a todos eles, olhos, pés e braços, em um exercício qualquer, quando mais não seja, em examinar as causas de um singular fenômeno: o das desarmonias da Sociedade Filarmônica, que, depois de dar o seu concerto no Conservatório, vem dar na imprensa um charivari.

VI

O sonambulismo tem sido aplicado à cura de moléstias, e ultimamente à busca das coisas perdidas e à predição do futuro, o que aliás a nossa polícia contestou de um modo formal e urbano. Faltava aplicá-lo à política dos Estados; é o que acaba de fazer o governo argentino. O governo argentino mandou, por descuido, o orçamento ao Senado, devendo mandá-lo à Câmara; o Senado, não menos sonâmbulo que o governo, pôs o orçamento em discussão. A Câmara estranhou esses dois cochilos; mas não podendo ser excluída da virtude sonambúlica, é muito provável que adormeça também, e vote a lei, com os olhos fechados. Resta que os contribuintes, ainda mais sonâmbulos do que os dois poderes, paguem a si mesmos os impostos; o que permitirá ao governo remeter então o orçamento ao congresso literário; e, caso este recuse, à biblioteca de Alexandria.

Generalizado o sistema, ninguém pode prever onde chegarão as nações mais policiadas do globo. Veremos os embaixadores fumarem as credenciais e apresentarem um charuto aos governos, darem satisfação a si mesmos dos insultos que houverem praticado, comerem com a mão e darem o garfo a apertar aos seus convivas. Nas Câmaras, os deputados deixarão o recinto quando se discutirem os projetos, e entrarão unicamente para votá-los: coisa que só se pode explicar no estado de sonambulismo. Tais e quejandas serão as conseqüências do sistema, se ele passar de Buenos Aires ao resto do mundo: o que Deus não permita, ao menos nestes séculos mais próximos.

VII

Não é de pequena gravidade a notícia, chegada esta semana, de que na ilha de Itaparica duas parcialidades se acham em armas e em guerra, tendo já havido mortos feridos. Disse-se a princípio que a causa do litígio era a posse das influências locais, como se influir em Itaparica fosse coisa tão superfina, que levasse um homem a perder as orelhas, as costelas, e, quando menos, a vida. Ainda se o vencedor pudesse ficar dono único da ilha, como Robinson, compreendo a fúria dos habitantes, não porque fosse mais nobre possuir algumas jeiras de terras sem gente, mas porque seria menos árduo. Antes Robinson que Sancho, que ao cabo de dez dias de governador, voltou desencantado a pôr a albarda no seu ruço. Nada; não há de ser isso; o motivo deve corresponder ao perigo e ao esforço; deve ser talvez o trono de Marrocos, vago esta semana, ou coisa assim.

E daí pode ser que o motivo do litígio seja este recente problema: - Quem quebrou o braço da menina Luzia? - o qual parece destinado a quebrar por sua vez todas as cabeças pensantes. O congresso de Berlim destrinçou mais depressa a questão turca, do que nós veremos resolver este caso, essencialmente nebuloso; salvo se aceitarem a minha solução, que combina todas as versões opostas: foi o tamanco e só o tamanco que quebrou o braço. Porquanto, só um tamanco podia ter a crueldade de bater numa criança, ao sair de um hospital. Nem seria acertado esperar caridade dos tamancos: não é esse o seu forte; outros dirão que não é o seu fraco.



[17]
[4 agosto]

I

HOJE, SIM; posso pôr as manguinhas de fora. Sendo positivo que nenhum cidadão correto almoça agora como nos demais dias, conto não ser lido com o repouso do costume. Na verdade, mal se pode crer que o leitor tenha tempo de tomar o seu banho frio, beber às pressas dois goles de café, enfiar a sobrecasaca, meditar a sua chapa de eleitores, e encaminhar-se às reuniões. Pode ser que leia antes, às carreiras, o jornal que lhe for mais simpático; mas, uma vez feita essa oração mental, nenhuma obrigação mais o retém fora da arena, onde os partidos vão pleitear amanhã a palma do triunfo.

Que monta uma página de crônica, no meio das preocupações de momento? Que valor poderia ter um minuete no meio de uma batalha, ou uma estrofe de Florian entre dois cantos da Ilíada? Evidentemente nenhum. Consolemo-nos; é isto mesmo a vida de uma cidade, ora tétrica, ora frívola, hoje lúgubre, amanhã jovial, quando não é todas as coisas juntas. Sobretudo, aproveitemos a ocasião, que é única; deixemos hoje as unturas do estilo; demos a engomar os punhos literários; falemos à fresca, de paletó branco e chinelas de tapete.

Que ele há de levar umas férias para nós outros, beneditinos da história mínima e cavouqueiros da expressão oportuna. Vivemos seis dias a espreitar os sucessos da rua, a ouvir e palpar o sentimento da cidade, para os denunciar, aplaudir ou patear, conforme o nosso humor ou a nossa opinião, e quando nos sentarmos a escrever estas folhas volantes, não o fazemos sem a certeza (ou a esperança!) de que há muitos olhos em cima de nós. Cumpre ter idéias, em primeiro lugar; em segundo lugar expô-las com acerto; vesti-las, ordená-las, a apresentá-las à expectação pública. A observação há de ser exata, afacécia pertinente e leve; uns tons mais carrancudos, de longe em longe; uma mistura de Geronte e de Scapin, um guisado de moral doméstica e solturas da Rua do Ouvidor...

II

... Uma coisa semelhante à situação recente de Campos. Campos reuniu duas coisas raras e não incompatíveis; deu-se ao tumulto e à goiabada. Ao passo que nós gastamos a semana a recear alguma coisa para amanhã. Campos iniciou a agitação no domingo último, e fê-lo de um modo franco, largo e agreste. Campos disse consigo que a reputação da goiabada é inferior a uma nobre ambição política, e que a gratidão do estômago, posto seja ruidosa, é por extremo efêmera; dura o espaço de um quilo, menos do que as estafadas rosas de Malherbe. Campos entendeu que lutar com a goiabada de Jacobina e a compota da Europa não satisfaz a vida inteira de uma cidade, e que era tempo de lançar o cacete de Breno na balança dos seus destinos.

Isto disse Campos; dizê-lo e atirar-se ao pleito eleitoral foi obra de um momento. Então começou uma troca de finezas extremamente louvável, capangas austeros começaram a distribuir entre si os mais sólidos golpes de cacete; e assim como Sganarello se fez médico a pau cada um deles buscou doutorar os outros na mesma academia. Antes do exemplo, poder-se-ia crer que as mãos habituadas a remexer o açúcar nos tachos não chegariam a praticar uma ação tão demonstrativa; erro manifesto, porque nenhuma lei divina ou humana impede cuidar, com igual mérito, da gulodice e dos direitos do homem.

A interferência da atriz Helena Balsemão, segundo o telegrama, é que tornou um pouco enigmática a agitação eleitoral de Campos. A atriz Helena, se tinha opiniões políticas, eram singularmente cambiantes, mudáveis e indecisas, visto que nunca as expôs (creio eu) de um modo formal. No mesmo caso estava o ator Rodrigues, que, se alguma vez representou Richelieu ou Bolingbroke, nunca ficou com a pele do personagem, ao ponto de entranhar em si mesmo as opiniões de cada um deles. Quanto ao ator Roland, que, com os outros dois, deu lugar à suspensão do espetáculo, o único vestígio político que lhe podíamos atribuir era o nome, nada mais. Não obstante esses antecedentes, o telegrama deu-o a todos três como órgãos e pacientes de opiniões contrárias. Verdade é que acrescentou serem ciúmes as causas da agitação dos três; mas ninguém ignora que os telegramas são dados ao eufemismo, à antinomia, à simulação; divergência é o que ele quis dizer.

Felizmente, o temporal foi dissipado, mediante uma brisa de conciliação. Os partidos chegaram a acordo. Cada um deles resolveu dar certo número de eleitores; e duvido que as urnas não correspondam fielmente a estas intenções pacíficas. De maneira que a atriz Balsemão foi a única que perdeu no jogo. Qu'allait-elle faire dans cette galère?

Cá pela corte estivemos toda a semana em simples preparativos.

Reuniões, sim, e de todos os partidos, inclusive o republicano, reuniões noturnas, sucessivas e até simultâneas. Naturalmente as de uns eram vigiadas por outros, tal qual como nos exércitos, que se espiam mutuamente. Há ardor e resolução; e, se nem todos os costumes eleitorais me agradam, antes esse ardor do que apatia.

Há ânimos generosos que presumem sermos chegados a um tempo em que a política é obra científica e nada mais, eliminando assim as paixões e os interesses, como quem exclui dois peões do tabuleiro do xadrez. Belo sonho e deliciosa quimera. Que haja uma ciência política, sim; que os fenômenos sociais sejam sujeitos a regras certas e complexas, justo. Mas essa parte há de ser sempre a ocupação de um grupo exclusivo, superior ou alheio aos interesses e às paixões. Estes foram, são e hão de ser os elementos da luta quotidiana, porque são os fatores da existência das sociedades. O contrário, seria supor a possibilidade de convertê-las em academias ou gabinetes de estudo, suprimir a parte sensível do homem, - coisa que, se tem de acontecer, não o será antes de dez séculos.

Vejo que o leitor começa a cabecear. Este período engravatado tem-lhe ares de mestre-escola.

Naturalmente, prefere saber alguma coisa das chapas eleitorais. Dir-lhe-ei somente que os operários de Niterói apresentam uma, declarando no cabeçalho, que é indispensável derrubar os casacos. Havendo, entre os candidatos dessa lista, dois tenentes, dois capitães e um major da guarda nacional, devo concluir que, em geral, ou os majores e capitães não trajam casaca, ou que os escolhidos eliminaram esse vestido. Único modo de explicar o programa dos autores e a presença dos majores. Quanto ao programa em si, parece um pouco fantástico, e é nada menos que naturalíssimo: é o sentimento das aparências. A casaca, por ser casaca, não faz mal nem bem, a culpa ou a virtude é dos corpos, e menos dos corpos que das almas. Tempo houve em que se fez consistir o civismo em uma designação comum: cidadão; ao que acudiu um poeta com muita pertinência e tato:

Appellons-nous messieurs et soyons citoyens.

III

Houve e há muita agitação nos assinantes da série ímpar do Teatro Lírico, que estão profundamente ressentidos, mas de um ressentimento que nada tem com a política, e tem tudo com o calendário e a aritmética.

Com efeito, o empresário Ferrari, - ou o diabo por ele, - teve notícia de que Josué mandara parar o sol, e quis enriquecer o nosso tempo com outro milagre análogo: decretou que a récita 6a antecedesse a récita 5a a despeito do Laemmert, do Besout, do Observatório Astronômico e da Câmara Eclesiástica. Isto feito deu aos assinantes da récita 6a a primazia dos Huguenotes e a estréia da Mariani e outras, e declarou que os assinantes da récita 5a teriam os sobejos dos seus colegas.

Era muito, era levar a audácia a um limite desconhecido de todos os sátrapas do Oriente; era manifestar que nenhuma consideração lhe merece este povo, o mais meigo de todos os povos. A razão, insinuada por ele, de que os assinantes da série par também são filhos de Deus e podem gozar uma ou outra estréia, revela da parte do Ferrari tendências enigmáticas. Acresce que é uma razão ridícula; o Ferrari não pode ignorar que o número é o número da perfeição. Mas se esta consideração não bastasse, poderíamos recordar que a série ímpar está toda assinada, ao passo que a série par apenas conta algumas raras assinaturas; prova evidente de que há na série par um princípio mórbido, uma feição sepulcral, que arreda daí a maior parte da gente. Conseqüentemente, se o maior grupo é o ímpar, ao outro grupo, que é o menor, só poderá caber, quando muito, o terço eleitoral.

Talvez o Ferrari imagine que, sendo igual o preço, iguais devem ser as vantagens; mas esse erro do empresário origina-se na persuasão de que ele fez um contrato igual e perfeito com todos os assinantes. Não fez. A igualdade única é a do preço; no mais, quem lhes sustenta a empresa são os assinantes da primeira série, - o maior número. Nem o preço serviu nunca de bitola à distribuição das vantagens. No antigo regímen, o terceiro estado pagava o imposto e não comandava os regimentos. Ora, esse sistema, se foi momentaneamente excluído da constituição dos Estados, não o foi nem o pode ser das organizações líricas; é até a graça especial delas.

Ao passo que a série ímpar, justamente magoada, protesta contra a escamoteação das estréias, a série par exulta de contentamento. Compreende-se; há felicidades que excedem o limite das esperanças quotidianas; tal é a dos assinantes que ouvem a primeira representação de uma ópera, em vez de ouvir a segunda; que assistem na quinta-feira a um espetáculo, que só lhes dariam dois dias depois. Meu Deus! os assinantes pares bem sabem que a ópera é a mesma, e os mesmos os cantores; mas que diferença entre a quinta-feira e o sábado! e sobretudo, que homenagem nessa transposição de números! Imaginem qual seria o prazer dos perus, se os preferissem aos pavões? Pois é a mesma coisa; com o simples acréscimo de que a empresa não faz acepção de aves, uma vez que lhe deixem as penas.

Se me permitem um conselho, direi que é conveniente a cada uma das partes ceder alguma coisa. A empresa deve atender um pouco mais a maioria, e a maioria deve fechar os olhos a uma ou outra facilidade da empresa. Ao cabo, é o único meio de ter uma companhia por ano. O Ferrari não é decerto o Messias da arte lírica, alguns querem até que seja o diabo, como já se disse nestas colunas; e confesso que, por certos indícios, começo a suspeitar que efetivamente o verdadeiro Ferrari ficou no mosteiro dos capuchos, onde continua a pregar aqueles sermões sobre o demo e suas pescarias. Mas permitam-me os tubarões que lhes diga: agora não tem remédio; fechem os olhos a alguma coisa menos aprazível, ou desistam de ouvir cantar, ao menos uma vez por ano. O melhor de tudo seria inventar um Ferrari de engonço alheio e superior aos interesses da caixa. Mas, por enquanto, não há remédio senão aceitar este, que é de carne e osso como nós.

Quanto às novas estréias, parece que a mais estrondosa foi a plástica da Fiorio. Ao passo que a Mariani deixou a voz na mala (dizem-no os entendidos), a Fiorio trouxe-a nas formas: é o seu único algodão. Acrescentam os entendidos que a Vênus de Médicis, se cantasse, cantaria do mesmo modo que essa gentil contralto. Creio, porque ainda a não vi. E acho que não é caso de lástima. A empresa obrigou-se a dar-nos os produtos de uma arte, se acrescenta a esses os produtos da escultura, tem ido além da sua obrigação: é benemérita.

IV

Nada direi das corridas de domingo, para não cair na repetição. A vida fluminense compõe-se agora de óperas, corridas, patinação e pleito eleitoral; é um perpétuo bailado dos espíritos. Felizes as províncias, onde há sempre um macróbio notável, uma correria de índios, um produto vegetal, qualquer coisa que matize a uniformidade da vida; quando menos, um retirante que gerou quarenta e dois filhos, como aquele de Jaguará.

Dizer que as corridas estiveram chibantes, e que a poule foi concorridíssima, é repetir o comentário feito a todos esses espetáculos; é perder o tempo e os leitores. Desta vez houve só dois episódios novos: o gatuno, que arrebatou um prêmio de seiscentos mil-réis, sem ser a unhas de cavalo; e o cavalo, que ganhou um prêmio de quinhentos, correndo sozinho. À vaincre sans péril, on triomphe sans gloire, dizia o poeta, é o caso do cavalo e não o do gatuno.

A patinação, que eu disse acima ser parte componente da nossa vida atual, começa a adicionar alguns hors-d'oevre, como a ondina, moça que respira debaixo d'água. Não gosto de ver esta ondina enrodilhada com a patinação; cheira-me aos saraus dançantes do Clube Politécnico, - duas coisas bem pouco conciliáveis. Bem sei que é um tempero a ondina; e, a dar crédito ao retrato que anda aí exposto na Rua do Ouvidor, um tempero de algum sabor, mas, enfim, é um tempero. Voltemos às comidas simples.


[18]
[ 11 agosto]

I

SUPÔS-SE por muito tempo que o Camões inventava a ilha dos Amores. Aqueles costumes, aquela corrida de ninfas e soldados, principalmente a do Leonardo, com a dama que lhe coube em sorte, e os famintos beijos na floresta, e o mimoso choro que soava, tudo aquilo fazia crer que se tratava de uma pura imaginação do poeta. Descobriu-se agora que a ilha dos Amores é nada menos que a ilha de Paquetá.

Entendamo-nos; não digo que em Paquetá haja Leonardos, nem que ali vá ter a caravela de nenhum Gama. Há um falar e dois entenderes. O que digo é que, no ponto de vista eleitoral, a nossa ilha vale a de Camões. Cá na cidade houve um ou outro desaguisado, duas ou três cabeças quadradas, várias contestações, enfim as competências do costume; não muitas, nem tais como faziam recear os espíritos medrosos. A profecia dos timoratos também falhou em relação ao interior, onde houve alguns conflitos, é certo, mas em raros pontos. O pior, e o mais recente, foi o de Irajá. Paquetá, entretanto, coroou-se de mirtos; fez-se a mais luminosa das auréolas.

Muito antes de começarem os trabalhos eleitorais, já os votantes de todos os credos políticos estavam na matriz. A manhã era linda; o mar espreguiçava-se sonolento, e o céu, um céu grego ou toscano, azulava-se a si e à consciência paroquial. A brisa que soprava parecia a respiração da própria Vênus. Dissera-se que não era Paquetá, mas Chipre ou Quio ou Tênedos, alguma daquelas ilhas que a natureza emergiu para eterna saudade da imaginação. Com um pouco de fantasia, poder-se-ia supor que a barca da carreira da corte era um navio do porto de Pireu, e que o cabo da guarda era o próprio Temístocles.

Reunidos os votantes no adro da igreja, entretiveram-se num fadinho neutro. Umbigos liberais tocavam os umbigos conservadores, ao som da viola republicana: era a fraternidade política e coreográfica. Fatigados da dança, e não tendo chegado a hora legal, um dos votantes sacou do bolso os Incas de Marmontel; idéia engenhosa, mas não única, porque outro votante tirou a Marília de Dirceu; ao que se seguiu uma longa troca de cortesias e finezas, querendo o primeiro que se lesse o livro do segundo, e o segundo que se lesse o do primeiro. Um mesário combinou os dois opostos desejos, propondo que em vez de um e outro livro, averiguassem amigavelmente um grave ponto histórico, a saber, se o eclipse de 1821 foi anterior ou posterior a Henrique IV.

Aceita a idéia, ocuparam-se os votantes em agradável palestra, que durou meia hora, ficando afinal unanimemente resolvido que, sendo Henrique IV anterior ao eclipse de 1821, este, quando muito, podia ser seu contemporâneo. Um dos votantes declarou que concedia a última hipótese, unicamente para o fim de se não quebrar a harmonia em que ali se achavam, mas que em consciência não podia admitir a contemporaneidade dos dois fenômenos. Todos os outros lhe agradeceram essa delicada atenção.

Aproximando-se a hora eleitoral, foi servido um lauto almoço, composto de iguarias, que não eram peixe nem carne: ervas, frutas, ovos, leite, confeitos e pão. Brindaram-se a todas as harmonias, desde a harmonia das esferas até a dos corações; leram-se madrigais; glosou-se o mote: Hei de amar-te até morrer. Seguiram-se as chamadas do costume, ao som de lindas peças executadas pela banda da sociedade particular Flor Paquetaense. Cada votante, por uma delicada competência de generosidade, votava nos candidatos do partido adverso. Esta competência repetiu-se na apuração; os escrutinadores, por efeito da mais honesta perfídia, liam nas listas dos candidatos do seu credo os nomes dos do credo oposto, donde resultou estabelecer-se a anterior proporção dos sufrágios. Acabada a apuração, todos os eleitos protestaram contra o resultado, declarando que, em consciência, os eleitos eram os outros. Não consentindo os outros, propôs um mesário anular o trabalho e votarem de novo em candidatos que não residissem na paróquia. O que se fez prontamente com o resultado seguinte:

Barba-Roxa ...................... 47 votos

João Sem Terra ................. 47    "

Nostradamus .................... 45    "

Gregório de Matos ........... 45    "

Pausânias .......................... 44    "

Maragogipe ...................... 44    "

Rui Blas .............................. 41    "

Logo que este resultado foi conhecido, houve em toda a assembléia os mais estrondosos aplausos, a que se seguiu um amplexo universal e único. Retiraram-se todos para suas casas, debaixo do mesmo céu, - toscano ou grego, - e ao som dos mesmos suspiros do mar, tranqüilo como um sepulcro. Paquetá dormiu o sono das consciências virgens.

Ri-se o leitor? Espanta-se talvez desta narração, que lhe parece fantástica? Não sei, entretanto, se poderá explicar de outro modo o fato de ter o subdelegado de Paquetá, promovido a retirada da força que para lá fora. Quando a autoridade pública, no interesse da ordem, buscava auxiliar as mesas eleitorais, armando-as com os meios de dominar qualquer tumulto, sempre possível no estado de exaltação em que se achavam os ânimos, Paquetá declarou dispensar a força que lhe mandaram, certa de fazer uma eleição pacífica. Este procedimento faz crer que Paquetá é o seio de Abraão, a morada da concórdia pública, o primeiro centro de uma forte educação política.

Cá na cidade, na freguesia da Glória, não correram as coisas inteiramente assim; deu-se um distúrbio, talvez dois; a mesma coisa aconteceu no Engenho Velho e em S. José. Quanto à primeira dessas paróquias, houve duas mesas, uma interior e outra exterior, uma congregada, outra dispersa e errante: pequena imagem da Igreja, ao tempo em que existiam duas cúrias, a de Roma e a de Avinhão. Qual das duas mesas fosse a de Avinhão, era o que nenhum estrangeiro estudioso poderia saber ao certo, pois a opinião variava de homem a homem. Quanto ao caso de Irajá, esse ataque de cem homens armados e entrincheirados contra doze praças que voltavam de cumprir o seu dever, foi simplesmente uma crueldade sem explicação.

Vem a propósito dar um conselho aos futuros legisladores. Provavelmente, teremos uma reforma eleitoral, em breves dias, reduzindo a um grau o sistema de grau duplo: sistema mais complicado que necessário. Penso que é a ocasião de retirar as eleições das matrizes,pois que inteiramente falhou o pensamento de as tornar pacíficas pela só influência do lugar. Já o finado Senador Dantas, que sabia dar às vezes ao pensamento uma forma característica, dizia em pleno Senado: "Senhores, convém que as coisas da igreja não saiam à rua, e que as coisas da rua não entrem na igreja". Referia-se às procissões e às eleições.

Que as procissões saiam à rua não há inconveniência palpável; mas que os comícios sejam convocados para a igreja, eis o que é arriscado, e em todo o caso ocioso. Na igreja reza-se, prega-se, medita-se, conversa a alma com o seu Criador; as paixões devem ficar à porta, com todo o seu cortejo de causas e fins, e os interesses também, por mais legítimos que sejam.

II

Desta vez parece que o Partido Republicano fez uma entrada mais solene no pleito eleitoral; lutou sozinho em alguns pontos; em outros, lutou com alianças; resultando-lhe dessa política algumas vitórias parciais.

O Partido Republicano, não obstante as convicções dos seus correligionários, nasceu principalmente de um equívoco e de uma metáfora: a metáfora do poder pessoal; e a este respeito contarei um apólogo... persa.

Havia em Teerã um rapaz, grande gamenho e maior vadio, a quem o pai disse uma noite que era preciso escolher um ofício qualquer, uma indústria, alguma coisa em que aplicasse as forças que despendia, arruando e matando inutilmente as horas. O moço achou que o pai falava com acerto, cogitou parte da noite e dormiu. De manhã foi ter com o pai e pediu-lhe licença para correr toda a Pérsia, a fim de ver as diferentes profissões, compará-las e escolher a que lhe parecesse mais própria e lucrativa. O pai abençoou-o; o rapaz foi correr terra.

Ao cabo de um ano, regressou à casa do pai. Tinha admirado várias indústrias e profissões; entre outras, vira fazer chitas, as famosas chitas da Pérsia, - e plantar limas, as não menos famosas limas da Pérsia; e destas duas ocupações, achou melhor a segunda.

- Lavrar a terra, disse ele, é a profissão mais nobre e mais livre; é a que melhor põe as forças do homem paralelas às da natureza.

Dito isto, comprou umas jeiras de terra, comprou umas sementes de limas e semeou-as, depois de invocar o auxílio do sol e da chuva e de todas as forças naturais. Antes de muitos dias, começaram a grelar as sementes; os grelos fizeram-se robustos. O jovem lavrador ia todas as manhãs contemplar a sua obra; mandava regar as plantas; sonhava com elas; vivia delas e para elas. - Quando as limeiras derem flor, dizia ele consigo, convidarei todos os parentes a um banquete; e a primeira lima que amadurecer será mandada de presente ao xá.

Infelizmente os arbustos não se desenvolviam com a presteza costumada; alguns secaram; outros não secaram, mas também não cresceram. Estupefação do jovem lavrador, que não podia compreender a causa do fenômeno. Ordenou que lhe pusessem dobrada porção d'água; e vendo que a água simples não produzia efeito, mandou enfeitiçá-la por um mago, com as mais obscuras palavras dos livros santos.

Nada lhe valeu; as plantas não passaram do que eram; não vinha a flor, núncia do fruto. O jovem lavrador mortificava-se; gastava as noites e os dias a ver um meio de robustecer as limeiras, esforço sincero, mas inútil. Entretanto, ele lembrava-se de ter visto boas limeiras em outras províncias; e muitas vezes comprava excelentes limas no mercado de Teerã. Por que razão não alcançaria ele, e com presteza, a mesma coisa?

Um dia, não se pôde ter o jovem lavrador; quis, enfim, conhecer a causa do mal. Ora, a causa podia ser que fosse a falta de alguns sais no adubo, ares pouco lavados, certa disposição do terreno, pouca prática de plantador. O moço, porém, não cogitou em nenhuma dessas causas imediatas; atribuiu o acanhamento das plantas... ao sol; porque o sol, dizia ele, era ardente e requeimava as plantas. A ele, pois, cabia a culpa original; era ele o culpado visível, o sol.

Entrando-lhe esta convicção no ânimo, não se deteve o rapaz; arrancou todas as plantas, vendeu a terra, meteu o dinheiro no bolso, e voltou a passear as ruas de Teerã; ficou sem ofício.

Conclusão: se soubéssemos um pouco mais de química social...

III

Ao que parece, negreja um grande temporal no horizonte lírico. Sobre a cabeça da empresa, aglomeram-se pesadas nuvens, não tarda roncar a Tijuca e a pateada. Esta semana trouxe novos vendavais, cujo desencadeamento será terrível, se o não conjurar algum deus benévolo.

Pobre Ferrari! Bem pouco durou a tua realeza. Há dois anos entraste aqui como uma espécie de Messias da fé nova. Tinhas inventado a Sanz, os maiores olhos que jamais vi, e que a faziam semelhante a Juno, a Juno dos olhos de boi, como diz Homero, ou olhitoura, como traduz o Filinto. Tinhas inventado a Visiack, uma artista, a Rubini, uma graça, e o Gayarre, um rouxinol. Acrescia que chegavas depois de um longo e impaciente jejum de música, porque o governo retirara, há muito, a subvenção ao teatro lírico; e neste assunto estávamos reduzidos a intermitências do Lelmi, a uma ou outra Parodi adventícia. Vieste; abrimos-te os nossos corações, cobrimos-te de flores, anagramas e assinaturas. Estas, a princípio, foram pagas à vista; e depois, antes da vista. Então começou a tua decadência; prometeste mundos e fundos, ficaste com os fundos, sem nos dar os mundos; perdeste a nossa estima, estás a pique de perder a nossa misericórdia.

A largueza pública, entretanto, foi condigna do nosso nome. Ninguém regateou os preços, que ao parecer de quase todos eram mais que razoáveis. Trazer bons cantores, boas óperas, bons coros e bons cenários, trazê-los a este recanto da América, revelar-nos a Aída, não era tarefa que se pagasse com pouco; era justo. Demais, sabe toda a gente que, abaixo do doce de coco, o que o fluminense mais adora é a boa música. Haverá, e não raros, que jamais possam suportar uma cena do Cid ou um diálogo do Hamlet, que os achem supinamente amoladores, tanto como os antigos dramalhões do Teatro de S. Pedro; mas nenhum há que se não babe ao ouvir um dueto. E isto vem desde a infância; nas escolas aprende-se a ler a carta de nomes cantando; e ninguém ignora que a primeira manifestação do menino carioca é o assobio.

Ora, o Ferrari deve ter aproveitado esta nossa disposição, em vez de fiar-se na benevolência pública, que é limitada como uma companhia inglesa. Que lhe pedíamos nós? Simplesmente o que nos deu há dois anos, quando lhe não pedimos nada. Ninguém exigia a Patti nem o Nicolini, - o que seria caro, - nem somente um dos dois, o que seria ainda mais caro, cruel. Mas entre a Repetto e a Patti não haverá um termo médio? Dizem que o Ferrari não está menos desgostoso do que nós; murmura-se que foi embaraçado. Acresce que os cantores não estão em excessiva harmonia com ele; e já ameaçam lavar os calções na rua; ameaça, a que o Ferrari retorquiu, desafiando-os. Vamos ter uma pega de cernelha.

IV

Pega de cara é o que se está dando com a questão da praça do mercado, que renasce, complicada de umas unturas políticas.

No Skating houve esta semana grande pega de pé, uma brilhante corrida, que congregou, no recinto do estabelecimento, a fina flor da nossa sociedade; concorrência de quatro mil pessoas, pelo menos. O grande prêmio coube ao jovem filho de um estadista. Noto que, por ora, o belo sexo é avaro das suas graças na patinação. Salvo algumas meninas de cinco a onze anos, creio que nenhuma dama, ou rara, desceu à arena. Pois era o meio de lhe comunicar um pouco mais de elegância e correção.

V

Da semana só me restaria falar da cabeça original, que se mostra na Rua do Ouvidor, a tanto por entrada. Venda-mo a idéia de que o empresário quer apenas caçoar conosco, fazendo crer que uma cabeça original é objeto tão curioso, entre nós, que se pode mostrar por dinheiro. Não, especulador! não possuirás o meu estilo.



[19]
[1 setembro]

I

O FATO culminante da semana foi talvez a proposta feita, anteontem, na Câmara Municipal, pelo Sr. Conselheiro Saldanha Marinho. Propôs o digno vereador a nomeação de uma comissão para examinar os atos em que a mesma Câmara tem sido despida de atribuições suas, e indicar medidas tendentes a restaurar as coisas, bem como um plano de reforma para aquela instituição, restituindo-se-lhe a força e o prestígio que perdeu. A proposta foi aprovada; e, posto me pareça que o seu resultado não pode corresponder ao pensamento que a formulou, acho que tanto a Câmara, como o eminente cidadão, procederam com intenção reta e animados de sentimentos liberais.

Não me obriguem os leitores a pôr os colarinhos do estilo grave, dizendo os graves motivos do meu parecer. Entende-se que daquelas colunas para baixo só podemos curar de minúcias, e este caso municipal é dos de máxima ponderação. Verdade é que, assim como a vida é entremeada de reflexões e pilhérias, também o folhetim pode, uma vez ou outra, sacudir a sua tosse parlamentar e deitar ao mundo uma ou duas observações de calibre sessenta. Vá que seja: imitemos a vida, por dois minutos.

Qualquer que seja a aquiescência dos poderes executivo e legislativo, acho que a proposta não terá o desejado efeito, e isto por um motivo estranho aos intuitos da Câmara e do Governo. Que seria útil e conveniente desenvolver o elemento municipal, ninguém há que o conteste; mas os bons desejos de alguns ou de muitos não chegarão jamais a criar ou aviventar uma instituição, se esta não corresponder exatamente às condições morais e mentais da sociedade. Pode a instituição subsistir com as suas formas externas; mas a alma, essa não há criador que lha infunda.

Não há muito quem brade contra a centralização política e administrativa? É uma flor de retórica de todo o discurso de estréia; um velho bardão; uma perpétua chapa. Raros vêem que a centralização não se operou ao sabor de alguns iniciadores, mas porque era um efeito inevitável de causas preexistentes. Supõe-se que ela matou a vida local, quando a falta de vida local foi um dos produtores da centralização. Os homens não passaram de simples instrumentos das coisas. É o que acontece com o poder municipal; esvaiu-se-lhe a vida, não por ato de um poder cioso, mas por força de uma lei inelutável, em virtude da qual a vida é frouxa, mórbida ou intensa, segundo as condições do organismo e o meio em que ele se desenvolve. É o que acontece com o direito de voto; a reforma que reduzir a eleição a um grau será um melhoramento no processo e por isso desejável; mas dará todas as vantagens políticas e morais que dela esperamos? Há uma série de fatores, que a lei não substitui, e esses são o estado mental da nação, os seus costumes, a sua infância constitucional...

Lá me ia eu resvalando neste declive das ponderações graves, que só a espaços, e ao de leve, podem ser lícitas à mais desambiciosa das crônicas deste mundo. Encerremos o período, leitor; e passemos a assunto menos crespo, um assunto de comestíveis.

II

Porquanto, a dita Câmara Municipal, perguntando-lhe o procurador se podia mandar fornecer jantar ao Tribunal do Júri, quando as sessões se prolongassem até tarde, respondeu que não, visto que tal despesa não se acha autorizada em lei.

Teve razão a Câmara, e teve-a duas vezes; a primeira, porque a lei o veda, e a obediência à lei é a necessidade máxima; a segunda, porque o jantar é, de certo modo, um agente de corrução. Não me venham com sentenças latinas: primo vivere, deinde judicare. Não me venham com considerações de ordem fisiológica, nem com rifões populares, nem com outras razões da mesma farinha, muito próprias para embair ignorantes ou colher descuidados, mas sem nenhum valor ou alcance para quem olhar as coisas de certa altura. A questão é puramente moral; e a presença do rosbife não lhe diminui nem lhe troca a natureza. Não me venham também com o jantar na política; porque, em certos casos, não há incompatibilidade entre o voto e o prato de lentilhas; e, politicamente falando, o paio é uma necessidade pública. O caso dos jurados é outra coisa.

A primeira e inevitável conseqüência do jantar aos jurados seria a condenação de todos os réus, não porque o quilo implique severidade, mas porque induz à gratidão. Como se sabe, absolvidos os réus, paga a municipalidade as custas; não é crível que um tribunal de homens briosos e generosos condene a mão que lhe prepara o jantar. Convém contar com o pudor dos estômagos. Acresce que a digestão é variável em seus efeitos. Umas vezes inclina ao cochilo, e não se pode calcular que inúmeros erros judiciários sairão de um tribunal que dorme a sesta; outras vezes, o organismo precisa de locomoção, e as sentenças cairão da pena, como frutas verdes que um rapaz derruba. Não cito o caso dos que fazem o quilo entre a espadilha e o basto, e ficariam impacientes por sair; caso verdadeiramente assustador, visto que a maior das nossas forças sociais é o voltarete.

Cotejem agora as inconveniências do jantar com as vantagens do jejum. O jejum, um estado de graça espiritual, é uma das formas adotadas para macerar a carne e seus maus instintos. A satisfação da carne torce a condição humana, igualando-a à das bestas; ao passo que a privação amortece a condição bestial e apura a outra; fortifica, portanto, o ser inteligível, aclara as idéias, afina e eleva a concepção da justiça. A sopa tem suas vantagens; o assado não é, em si mesmo, uma abominação; pode-se almoçar e querer bem; não há incompatibilidade absoluta entre a virtude e a couve-flor. A justiça, porém, requer alguma coisa menos precária, mais certa; não se pode fiar de hipóteses, de casualidades, de temperamentos.

O que me admira, neste caso, não é a decisão da Câmara, que aplaudo, desde que é fundada em lei, e o respeito da lei é a primeira expressão da liberdade. O que me admira é que só agora reclame o júri um bocado de pão. Pois nunca pediu o júri uma verbazinha para os seus pastéis? Só agora há estômagos naquele tribunal? Só agora há processos longos e juízes famintos? Tanto pior; se esperam tantos anos, podem esperar alguns mais.

III

Dizem os alemães que duas metades de cavalo não fazem um cavalo. Por maioria de razão se pode dizer que metade de um cavalo e metade de um camelo não fazem nem um cavalo nem um camelo. Isto, que parecerá axiomático aos leitores, é nada menos que um absurdo aos olhos dos partidos de uma das paróquias do Norte, a paróquia de S. Vicente; um absurdo, um paradoxo, uma monstruosidade.

Com efeito, os dois partidos daquela freguesia dividiram-se e trocaram as metades; feito o que, organizaram duas mesas, duas atas, duas eleições. Sendo por enquanto mui sumária a notícia, ignoro o modo pelo qual as duas metades dos dois programas foram coladas às metades alheias, e mais ignoro se fizerem sentido os períodos truncados. Há de ter sido muito difícil: talvez se reproduza o caso das duas notícias que apareceram ligadas, há anos, numa folha de New York. Tratava-se da prédica de um sacerdote e da investida de um boi.

O Rev. Simpson falou piedosamente dos deveres do cristão e das boas práticas a que está sujeito o pai de família; o auditório ouvia comovido as palavras do Rev. Simpson, o qual, investindo de repente contra todos, varreu a rua, derrubou mulheres e crianças, lançou enfim o terror em todo o bairro, até ser fortemente agarrado e reconduzido ao matadouro.

Verdade é que uma errata pode restituir o genuíno sentido dos dois programas, e estes aparecerão, reintegrados, na edição próxima. Se há uma arte para restaurar a primitiva escritura do palimpsesto, há outra para recompor devidamente os programas: questão de cola. O ponto mais obscuro deste negócio é a atitude moral dos dois novos partidos, a linguagem recíproca, as mútuas recriminações. Cada um deles vê no adversário metade de si próprio. O nariz de Aquiles campeia na cara de Heitor. Bruto é o próprio filho de César. Em vão busco adivinhar por que modo esses dois partidos singulares cruzaram armas no grande pleito; não encontro explicações satisfatórias. Nenhum deles podia acusar o outro de se haver ligado a adversários, porque esse mal ou essa virtude estava em ambos, não podia um duvidar da boa-fé, da lealdade, da lisura do outro, porque o outro era ele mesmo, os seus homens, os seus meios, os seus fins. Nunca vi mais claramente reproduzida a situação de Ximena, quando o amante lhe mata o pai; o partido que vencesse podia clamar como a namorada de Cid:

La moitié de mon âme a mis l'autre au tombeau.

IV

Ao que parece, não pega muito o espetáculo do soco inglês, - a box,- exercício inventado pela Sociedade Protetora dos Farmacêuticos; o que realmente me admira, porque a box é uma forma de luta romana inaugurada pelo professor Battaglia,- tendo, além disso, a circunstância de ser nova entre nós, e a virtude de dar extração à arnica,- "a grande arnica"- como dizia o finado Freitas. Pois não é que o soco seja um espetáculo desdenhado, quando no-lo dão casualmente aí nas ruas; acrescendo que, em tais casos, é irregular e sem método, ao passo que no estabelecimento da Rua do Costa está sujeito a certas fórmulas e regras de alta filosofia. Ao cabo é a mesma luta romana. Uma leva ao chão; outra leva aos narizes, é toda a diferença. Substancialmente, são duas ocupações recreativas e morais.

Que se perca a box! Cá nos fica o professor Battaglia, que padeceu, nesta semana, a sua segunda derrota,- a dar crédito ao adversário, e ao público, - ou mais uma vitória, - a dar-lhe crédito, a ele. O certo é que protestou e veio à imprensa desafiar o adversário para outra batalha decisiva, mediante condições magnânimas. O adversário afirmou o seu triunfo, mas recusou o repto. Acho que fez bem; se é certo que o professor caiu por engano, podia acontecer a mesma coisa ao seu vencedor, que perderia assim, de um lance, o prestígio e os quinhentos mil-réis.

Não obstante as derrotas, os reptos do professor Battaglia continuam a levar milhares de espectadores ao estabelecimento da Rua do Costa. Milhares: é a soma dos concorrentes nos grandes dias de patinação. Não esqueçam que a Rua do Costa é excêntrica, sobretudo para um povo, como somos, dado à pachorra e ao cansaço. Verdade é que a faculdade de conservar o chapéu na cabeça e o charuto na boca torna mais fácil e mais cômodo o acesso, e mais persuasivo o espetáculo.

Digo que continuaram os reptos, e devo incluir entre eles o do primeiro vencedor do Battaglia, que, animado com a vitória, também desafiou dali aos valentes que queiram pleitear com ele, mediante um prêmio de cem mil-réis. Foi o Hércules recente que lhe despertou esta idéia, a qual faz lembrar o caso dos sujeitos que começam a tratar pessoalmente dos seus processos, e tal gosto lhes acham, que acabam procuradores de causas. Não sei se teve adversários; é de crer que sim. Corre atualmente um frêmito de guerra pela espinha dorsal da sociedade.

Ignoro também se os noventa artistas, se os sessenta cavalos, as duas mulas, os dois veados e o asno da "Companhia Eqüestre de Combinação", têm correspondido à pompa dos seus anúncios. Dizem que sim; acrescenta-se que os espectadores, também aos milhares, têm aplaudido toda aquela arca de Noé. Parece que os artistas são habilíssimos, os cavalos educados, o asno um poço de sabedoria e um espelho de paciência.

V

Talvez o leitor lastime não ver em toda essa enfiada de recreios públicos alguma coisa que entenda com a mentalidade humana. Não a havemos de ir procurar no Teatro Lírico, aonde, em geral, só vão os dois primeiros sentidos. Nos teatros dramáticos encontraríamos essa coisa, se na mor parte não se compusessem de mágicas aparatosas, operetas medíocres, e o melodrama intenso, inofensivo e sepulcral. Danças, vistas, tramóias, tudo o que pode nutrir a porção sensual do homem, nada que lhe fale a essa outra porção mais pura; nenhum ou raro desses produtos do engenho, frutos da arte que deu à humanidade o mais profundo dos seus indivíduos.

Pobre espírito! Quem pensa em ti, nessa dança macabra de coisas sólidas? Quem oferece alguma coisa ao paladar dos delicados, não corrompido pelo angu do vulgo? Ninguém; tu és, não digo o réprobo, - seria supor que existes, pobre espírito! - tu és como que uma velha figura de retórica, um velho par de sapatos... Talvez lastimes isso, leitor, mas tens o meio de o lastimar, sem nada perder ou pouco. Recolhe-te, de quando em quando, fecha a tua porta, abre a tua despensa intelectual, e saboreia sozinho o manjar dos deuses. Agora, sobretudo, nestas noites de chuva ou de frio, é uma deliciosa volúpia. Goza e vinga-te, diria o Padre Vieira, parodiando-se a si próprio.

VI

Que nos divirtamos de um modo ou de outro, o Dr. Barbosa Rodrigues ocupa os seus lazeres em procurar um antídoto ao curare, e achou-o afinal, onde não supunha havê-lo. Fizeram-se no domingo as primeiras experiências, e continuam hoje, em presença de notáveis médicos, que afirmam ter o sal produzido todo o efeito que lhe atribui o jovem naturalista. Foi grande a satisfação, exceto nos porquinhos-da-índia, animais escolhidos para ensaiar o veneno e o remédio. É o destino dos fracos; servem de experiências aos mais fortes, quando lhes não servem de nutrição.

Pela minha parte, dou os parabéns ao Dr. Barbosa Rodrigues, e folgarei se a tal descoberta ficar ligado o nome brasileiro. Resta que o não deixemos eliminar por descuido ou outra coisa; e que alguma revista, - como indicarei adiante, - não faça grandes recomendações do antídoto, sem citar o inventor e sua nacionalidade .

VII

Vão os hóspedes saindo do banquete, à proporção que outros chegam e ocupam o seu lugar; é a perpétua substituição de convivas. Esta semana viu sair um, assaz venerando e digno das lágrimas que arrancou: Monsenhor Reis.

Monsenhor Reis era um dos sacerdotes mais populares, entre nós; ele, o Mont'Alverne, Monsenhor Marinho, Frei Antônio, o franciscano, foram os nomes que a nossa infância ouviu pronunciar com mais freqüência e veneração, sem esquecer o bispo, o excelso Conde de Irajá. Quase todos se foram, por aquela mesma e única porta. O que se retirou esta semana honrou o hábito que vestiu e a Igreja de que foi ornamento e lustre. Soube ser caridoso e útil, pacífico e bom.

Não fica eterno o nome de Monsenhor Reis; mais duas gerações, e ele cairá no perpétuo esquecimento. A humanidade conhece Caco, lembra-se de Cômodo, sem contar os malfeitores que o poeta florentino meteu entre as flamas eternas de seu verso; mas esquece os obscuros benfeitores, como este, que soube evangelizar, no sentido divino e no sentido humano, - com a esmola e com a educação.

VIII

Enquanto morre um padre, ressuscita um artista, - o Mesquita, que obteve nesta semana uma esplêndida manifestação do pessoal da Fênix, a que se associou o público. Trazem os jornais a narração dessa homenagem ao talentoso regente da orquestra, cujo brilhante talento de compositor há longos anos merece a estima e aplauso do povo fluminense. O Mesquita esteve às portas da morte; padeceu longamente, mas triunfou, enfim, não quis deixar tão cedo a sala da vida, onde é de desejar se demore longos anos.

A festa dizem que foi esplêndida; e tanto honra ao festejado como aos festejadores; prova certa de que se estimam e se merecem. Era esta a ocasião de dizer muita coisa do talento do Mesquita, de suas finas qualidades de compositor, se o espaço me não estivesse a fugir debaixo da pena, e o tempo no mostrador do relógio. Não faltará ensejo; e até lá não há de diminuir nem a vontade nem a admiração.

IX

Pois que falo de artistas, direi que, se o leitor tem aí, sobre a mesa, a Revue des Deux Mondes, folheie as páginas dos anúncios no fim, e leia o que se refere à Primeira Missa no Brasil, quadro do nosso Vítor Meireles, cuja cópia se vende em Paris.

Leia, e há de espantar-se de uma lacuna. O anúncio diz que o assunto "é o mais belo que até hoje tem aparecido"; que a cena "é uma das mais grandiosas do mundo"; que a reunião de trinta cinco cores faz com que "o quadro deixe a enorme distância de si tudo o que em tal gênero se tem obtido até agora". Diz tudo; só não diz o nome do autor, como se tal nome, nos termos do anúncio, não tivesse logo por si a imortalidade. Verdade é que o França Júnior nos disse ter achado a mesma lacuna no Fígaro, onde aliás lhe não aceitaram a notícia, que voluntariamente lhe foi levar. Tão certo é que até o merecimento precisa um pouco de rufo e outro pouco de cartazes. Ainda assim, antes a modéstia; é menos ruidosa, mas mais segura.

Já agora acabarei com uma sombra do sol: um calembour de Vítor Hugo. Essa triste forma de espírito teve a honra de ser cultivada pelo grande poeta; e quando? e donde? em Paris, por ocasião do cerco. Di-lo o Temps, que tenho à vista; e basta ler a estrofe atribuída ao poeta, para ver que é dele mesmo: tem o seu jeito de versificação. Um dia, - diz o jornal, - que alguns ratos, apanhados nas casas vizinhas, deram elementos para um pastel, o poeta improvisou este calembour metrificado:

O mes dames les hetaires,
À vos depens je me nourris;
Moi, qui mourais de vos sourires,
Je dois vivre de vos souris.

Cai-me a pena das mãos.