Dom Casmurro
CAPÍTULO XXIX / O IMPERADOR
Em caminho, encontramos o Imperador, que vinha da Escola de Medicina. O ônibus em que íamos parou, como todos os veículos; os passageiros desceram à rua e tiraram o chapéu, até que o coche imperial passasse. Quando tornei ao meu lugar, trazia uma idéia fantástica, a idéia de ir ter com o Imperador, contar-lhe tudo e pedir-lhe a intervenção. Não confiaria esta idéia a Capitu. "Sua Majestade pedindo, mamãe cede", pensei comigo.
Vi então o Imperador escutando-me, refletindo e acabando por dizer que sim, que iria falar a minha mãe; eu beijava-lhe a mão, com lágrimas. E logo me achei em casa, à esperar até que ouvi os batedores e o piquete de cavalaria; é o Imperador! é o Imperador! toda a gente chegava as janelas para vê-lo passar, mas não passava, o coche parava à nossa porta, o Imperador apeava-se e entrava. Grande alvoroço na vizinhança: "O Imperador entrou em casa de D. Glória! Que será? Que não será?" A nossa família saía a recebê-lo; minha mãe era a primeira que lhe beijava a mão. Então o Imperador, todo risonho, sem entrar na sala ou entrando, --não me lembra bem, os sonhos são muita vez confusos,--pedia a minha mãe que me não fizesse padre, -- e ela, lisonjeada e obediente, prometia que não.
-- A medicina, por que lhe não manda ensinar medicina?
--Uma vez que é do agrado de Vossa Majestade..
-- Mande ensinar-lhe medicina; é uma bonita carreira, e nós temos aqui bons professores. Nunca foi à nossa Escola? É uma bela Escola. Já temos médicos de primeira ordem, que podem ombrear com os melhores de outras terras. A medicina é uma grande ciência; basta só isto de dar a saúde aos outros, conhecer as moléstias. combatê-las, vencê-1as... A senhora mesma há de ter visto milagres Seu marido morreu, mas a doença era fatal, e ele não tinha cuidado em si... É uma bonita carreira: mande-o para a nossa Escola. Faça isso por mim, sim? Você quer, Bentinho?
-- Mamãe querendo.
-- Quero, meu filho. Sua Majestade manda.
Então o Imperador dava outra vez a mão a beijar, e saía, acompanhado de todos nós, a rua cheia de gente, as janelas atopetadas, um silêncio de assombro: o Imperador entrava no coche. inclinava-se e fazia um gesto de adeus, dizendo ainda: "A medicina, a nossa Escola." E o coche partia entre invejas e agradecimentos.
Tudo isso vi e ouvi. Não, a imaginação de Ariosto não é mais fértil que a das crianças e dos namorados, nem a visão do impossível precisa mais que de um recanto de ônibus. Consolei-me por instantes, digamos minutos, até destruir-se o plano e voltar-me para as caras sem sonhos dos meus companheiros. Índice - Capítulo XXX